Falando de Música

Os pactos de Isabelle Faust

por Leandro Oliveira

Em três dias consecutivos, Isabelle Faust e Alexander Melkinov realizaram a integral das sonatas de Beethoven para violino e piano – ou piano e violino? – no palco principal da Sala São Paulo. Encantaram o público com sua leitura cheia de cores e paixão, entrega sofisticada e criteriosa que, à luz específica da tradição interpretativa em que se insere, dificilmente poderia encontrar, nos dias de hoje, rival.

Digo da tradição interpretativa e, de fato, seria de grande efeito relacionar o “violinismo” de Isabelle Faust àqueles de outros célebres da atualidade como Leonidas Kavakos, Maxim Vengerov, Renaud Capuçon  ou Midori Goto – para ficar apenas entre aqueles contemporâneos de Faust (1972) – ou, extrapolando o mérito geracional, fazê-lo a luz de Kremer, Perlman, Oistrakh, Szeryng… Mas seria um despropósito e não podemos fazê-lo por questões essenciais. Estas tratam de questões estilísticas, mentalidades distintas do trato com o instrumento e o texto ao qual pretendem interpretar.

Pois o que reza esta “mentalidade”? Muitos aspectos específicos, talvez demasiados, que visualmente podem sintetizar-se na postura, forma de empunhadura, variedade do uso do arco no braço direito assim como o vibrato, entre outros elementos de digitação da mão esquerda – tudo, afinal, a refletir-se na produção de som e nos modos idiossincráticos de entender o texto musical. É a otimização mesma destas referências técnicas que permitem, no caso de Faust, uma conexão aparentemente supernatural (e não sobrenatural, na medida em que é explícita a concentração e foco da artista, não seu arrebatamento) entre os desígnios do texto e sua interpretação em ato. Uma interpretação filologicamente bem informada e de efervescência calculada foi a síntese poderosa alcançada pela versão de Isabelle Faust das sonatas de Beethoven.

Isabelle Faust e Alexander Melnikov

Falo de produção de som e retomo, a título de exemplo, um elemento específico da performance de Faust, não o mais importante, mas certamente o de efeito mais didático: seu obstinadamente cuidadoso e econômico uso do vibrato. “Vibrato” é o termo que trata de um conjunto de técnicas de oscilação do som após seu ataque, prevendo alguns efeitos específicos como maior projeção e energia, entre outros. Por princípio, é a violinística de tradição alemã aquela que se preocupa com a preservação de uma certa parcimônia no uso do vibrato, antevendo os dilemas de sua banalização (uma amaeaça desde o século XVIII e que se torna uma realidade em finais do século XIX). Em famosa passagem da literatura para o instrumento, Carl Flesch comenta em seu trabalho Die Kunst des Violin-Spiels (“A arte de tocar violino”), de 1923:

O meio de expressão de (Joseph) Joachim, por exemplo, consistia num muito rápido e curto tremolo. O mesmo para (Cesar) Thomson. Sarasate começou a usar oscilações cada vez maiores enquanto o vibrato de (Eugène) Ysaÿe, que seguia muito perto o rico temperamento de sua admirável personalidade, se tornou o ideal da geração de 1900. Mas foi Kreisler que, há quarenta anos, guiado por uma irresistível demanda interior, começou uma mudança revolucionária a este respeito, vibrando continuamente não apenas em cantilenas como Ysaÿe, mas mesmo em passagens técnicas. Esta metamorfose fundamental fez uma marca sem precedentes na execução do violino contemporâneo, não importa se concordemos com isso ou não…

Isabelle Faust, ao contrário da demanda corrente, usa o vibrato como recurso expressivo extraordinário (os vibratos, para sermos objetivo, já que ela os realiza de diversa formas), preservando-o para momentos da partitura nos quais temos um sinal específico de ênfase da pena do compositor, ou em que a relação de tensão (harmônica, melódica ou rítmica) exige algum tipo de expediente; é quando a dicção mesma o faz (o vibrato) necessário. O efeito de uma performance com tais rigores, sobretudo numa integral como a realizada na Sala São Paulo, é o de um encantamento não apenas íntimo, mas mágico: encontramos um novo Beethoven, de outras cores, ganhamos um compositor que expressa de forma inequívoca sua verve melódica, evidenciando, ocasionalmente, os termos que permitirão o parentesco claro de seus sucessores, Schubert e Schumann. É como, se é que se pode dizer isso, pudéssemos ouvir a evocação de uma certa história da música…

Em parte, podemos reivindicar que seja tal cuidado fruto da conhecida e dedicada pesquisa com arcos e instrumentos de época, por parte de Faust e alguns de nosso melhores contemporâneos. Mas podemos também reconhecer – e aqui minha tese – a recuperação de uma certa tradição, aquela do violinismo alemão. Deixo a conclusão para os historiadores (sugiro recorrer aos tratados de Leopold Mozart e toda a fortuna crítica dali decorrente). O fato é que se esquivando da imponência e idiossincrasias de ciclos de antecessores imediatos como Anne-Sophie Mutter, Faust reorganiza com sua integral o jogo da leitura de Beethoven em nosso tempo. Eventualmente, poderíamos entender as performances deste início de semana na linhagem específica de integrais ainda por vir, como a que esperamos poder contar num futuro próximo de violinistas como Frank Peter Zimermann (que já há alguns anos realiza o ciclo com o pianista Christian Zacharias), Christian Tetzlaff (com Lars Vogt), Benjamin Schmid (Alfredo Perl), Viviane Hagner (com sua irmã Nicole), Anabella Steinbacher… O que quero dizer: a meu ver, a versão de Faust realiza um novo ‘benchmark’ para as sonatas de Beethoven, aquela a partir da qual, na hora e vez de novas integrais, os representantes da escola alemã deverão mirar-se.

A título de post scriptum:

1) Na integral apresentada, me ressenti ligeiramente pela ausência de um elemento caro à música de Beethoven segundo certa fortuna crítica atual: o humor, não irrelevante em diversos momentos do opus 12, ou mesmo no scherzo da sonata op. 24 (Primavera). “Rigor teutonicus”, concepção objetiva ou efeito casual? Não arrisco dizer.

2) Do mesmo modo, em raros momentos foi possível perceber a flexibilização teatral da duração de pausas ou cesuras para além do estritamente sugerido pelo compositor – o que talvez não seja necessariamente ruim, mas certamente não ajudou a compor o drama e tensão de algumas peças, como a segunda sonata do opus 30 (Heroica), por exemplo.

3) Alexander Melkinov é um grande pianista. Mais palavras deveriam ser ditas sobre ele, afinal, no ciclo, o piano é por vezes o mais importante entre os pares. Para além de toda delicadeza e postura necessária para tal alto grau de simbiose, Melkinov mostrou bravura, capacidade extraordinária de estabelecer atmosferas (a primeira sonata do op. 30 foi um assombro, neste sentido), além de todo virtuosismo exigido pelo compositor – que era um dos grandes pianistas de seu tempo e alguém que raramente deixava de se fazer valer deste papel.

Na leitura de Melkinov há um modo de realizar algumas entre as passagens rápidas que, ao fazer sumir a divisão métrica interna, aquela que permite a compreensão da tensão rítmica subjacente, por vezes fez-me incomodado. Encontrado em partes análogas de praticamente todas as sonatas, este aparente vício, ao longo dos dias, passou a ser por mim compreendido como efeito deliberado. Não é exatamente como eu o sinto, mas isso talvez seja questão de gosto.

4) Os “bis” de Isabelle Faust e Alexander Melnikov (obrigado Arthur Nestrovski):

Noite 1: John Cage, “Nocturne”
Noite 2: Webern, “4 Stücke, op. 7″/ i
Noite 3: Morton Feldman, “Vertical Thoughts”/ ii

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.