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A Ciência na Idade das Trevas

por Flávio Romero

A Ciência é a pedra fundamental das sociedades modernas. O respaldo científico acerca de um determinado assunto lhe dá peso e confiabilidade. Isso se deve à crença popular de que a Ciência está comprometida com a verdade e, para muitos, é a única fonte disponível de certezas acerca desta vida material. Será mesmo?

A dinâmica própria da Ciência parece não combinar com verdades absolutas em muitas situações. Tomar vinho tinto, por exemplo, já fez bem, pois ajuda a prevenir alguns tipos de câncer; também já fez mal, pois está positivamente correlacionado com outros tipos de câncer; voltou a fazer bem, pois previne doenças do sistema cardiovascular. É possível que, em breve, o vinho cure o Alzheimer. Vamos aguardar… Este é apenas um exemplo da incerteza que a Ciência traz – e, numa sociedade que quer respostas imediatas, o menor indício de verdade já é uma verdade plenamente satisfatória (ainda que incompleta, ou parcialmente falsa). A verdade, para a tristeza dos cientificistas, é que no mundo material as possibilidades são imensas e, provavelmente, não há e não haverá respostas claras e decisivas para toda e qualquer situação.

Parece que voltamos à Idade Média

A Idade Média, ou ainda Idade das Trevas – seu apelido carinhoso – é amplamente conhecida como um período sombrio e arcaico de dominação religiosa. Esta ideia iluminista permanece e, para muitos, é um símbolo de como seria a vida sem progresso. Posicionar-se contra pesquisas com embriões? – Parece que voltamos à Idade Média. Posicionar-se contra o aborto? – Parece que voltamos à Idade Média. Eutanásia? – Parece que voltamos à Idade Média. Testes em animais? – Parece que voltamos à Idade Média. A falácia – ligar a Idade Média ao obscurantismo – já é bem conhecida. E mais: o compromisso com a descrição da realidade observada não foi menor antes do que agora. Talvez aconteça o contrário. A Filosofia Natural e a Teologia geravam conhecimentos que, longe de serem excludentes entre si, estavam altamente integrados. Edward Grant, professor de História da Ciência nas Universidades de Indiana, Maine e Harvard (EUA), reflete em seu livro The Foundations of Modern Science in the Middle Ages sobre a ignorância do senso comum a respeito da Ciência na Idade Média, e ilustra como a Europa Medieval lançou as bases de diversas áreas do conhecimento humano – como a Física, Astronomia e Biologia – durante o conturbado período entre a queda de Roma e aquela de Constantinopla [1].

A Ciência moderna, com esta base, teve a possibilidade de expandir suas fronteiras, isto é um fato. O cientista contemporâneo médio, porém, parece viver em um limbo onde busca aquilo que ele pessoalmente acredita ser a verdade – algo, porém, que mais tarde se mostrará não ser a realidade. Ele deve estar disposto a tudo – seja ético ou não – para levar adiante seus experimentos e afirmar perante a comunidade científica suas certezas e brilhantismo. Torna-se, muitas vezes, uma questão de afirmação intelectual pessoal, misturada com a busca pela verdade ou pelo bem real derivado a ser produzido. Contando, é claro, com uma ajudinha da Estatística – afinal, a verdade pode ser construída a partir da realidade com um ou outro ajuste.

A despeito do desenvolvimento técnico atual, há um real declínio da confiabilidade das pesquisas científicas na contemporaneidade. Um estudo da revista Nature mostrou que em um universo de 1576 pesquisadores, mais de 70% deles tentaram e não conseguiram reproduzir experiências de outros cientistas e mais da metade não reproduziu seus próprios experimentos. Embora muitos deles acreditem que existe uma crise científica quanto à reprodutibilidade, menos de 30% dos avaliados acredita que os resultados, ainda que irreprodutíveis, são verdadeiros [2]. A pesquisa contou, ainda, com a opinião a respeito das possíveis causas desta irreprodutibilidade e as respostas variaram desde “falta de sorte” e “dificuldade das técnicas” até “pressão para publicar” e “baixo rigor estatístico”. Com relação à Ciência medieval, por outro lado, ainda que não encontremos estatísticas semelhantes, podemos afirmar a veracidade do seu estilo investigativo.

John Ioannidis, da Universidade de Stanford (EUA), em um trabalho no domínio do que hoje é chamado de Metaciência, sugere a partir de pesquisas que cerca de 94% dos trabalhos publicados entre 2000 e 2010 em revistas de renome na área de Medicina contêm falácias resultantes de problemas estatísticos [3]. Se as duas pesquisas são, elas mesmas, confiáveis, fica difícil acreditar que a Ciência contemporânea é a única capaz de nos tirar das trevas – Parece que voltamos àquilo que pensam sobre a Idade Média.

Fé cega, faca amolada

O filósofo e psiquiatra Karl Jaspers diz: Enquanto não houvermos compreendido três coisas: que a ciência absolutizada não é verdadeira, que o mundo cognoscível é infinito e que as cifras podem servir de expressão à realidade profunda, o mundo do moderno conhecimento científico e da técnica produtiva continuará – apesar de seu grandioso brilho próprio, mas nem por isto ilimitado – a ser, para o homem, um lugar de escuridão, justo o inverso daquilo de que ele tem necessidade [4]. A Ciência hoje tem o rosto do Naturalismo ou do Cientificismo, pensada que é como a única via para o conhecimento da verdade. Esta realidade excludente leva a duas posturas igualmente ignorantes: a crença absoluta na Ciência e a extrapolação da Ciência a respeito de assuntos que não lhe concernem. A “superstição da Ciência” – termo que Jaspers utiliza – não sabe o que de fato é Ciência. Ela “acredita poder aprender – por meio dos aparelhos que utiliza – a realidade em sua totalidade, como se fora um fragmento, e, ao mesmo tempo, a realidade e a felicidade; ela imagina que tudo o que existe pode ser conhecido desta maneira e que não há nenhuma outra forma de conhecimento. Esta superstição é, pois, incapaz de perceber tanto a verdade quanto a realidade.

A Ciência é “religião” moderna, sobretudo no meio acadêmico, pois é acreditada como a detentora das verdades a respeito do mundo e, potencialmente, a maior fonte de benfeitorias para a nossa espécie. Porém, na maior parte dos casos, um experimento científico descreve – ou tenta descrever – apenas uma fração diminuta a respeito de uma totalidade complexa. Habitualmente, muitas variáveis não são avaliadas e o resultado nem sempre corresponde à realidade. O método científico, para muitos, não é mais do que uma mera ferramenta para justificar uma visão de mundo prévia: o Cientificismo. Com uma fé cega nas glórias da Ciência, os fiéis dessa “religião” têm na ponta da língua os benefícios conquistados pelo homem a partir do desenvolvimento tecnológico: faca amolada. Mas o homem não é apenas um ente biológico; é também um ser transcendente, com desejos que vão além do material.

Karl Popper afirma que a Ciência progride em direção a um melhor conhecimento do mundo [5]. Diz, ainda, que o conhecimento científico é provisório. Segundo o filósofo da Ciência, nunca se chega a comprovar uma teoria científica, mas ao longo do tempo e trabalhando o falseamento das hipóteses pode-se chegar mais próximo da descrição do objeto investigado. Consciente dos limites do conhecimento humano e da sua falta de condições de estabelecer critérios de verdade, ele propõe a modéstia socrática como comportamento. Ainda que esta postura seja reputada – afinal Popper é um dos principais filósofos da Ciência no século XX –, e muito adequada em relação à Ciência e ao Homem, não costuma ser habitual.

Cientista-pitaqueiro

Não raro alguns defensores do naturalismo contemporâneo são figuras públicas amplamente conhecidas e exercem uma influência cultural significativa na sociedade. Os Aiatolás da Ciência são, por vezes, associados a áreas do conhecimento completamente distintas de suas carreiras científicas. Transformam, pelo peso de seus nomes, opiniões pessoais em fatos. Doxa e Episteme, a opinião e o conhecimento verdadeiro, andam nestes casos juntos e indiscriminados. A autonomia da Ciência esbarra nas ideologias dos cientistas. A visão individual de mundo sempre estará presente no processo científico. É ingênuo acreditar na neutralidade daqueles que produzem conhecimento. O cientista, para corroborar ideias, pode deformar, com ou sem consciência, as suas conclusões.

Um bom exemplo disto é o outrora zoólogo, etólogo e evolucionista Richard Dawkins. Com uma carreira de sucesso em sua área, tendo sido professor e pesquisador em Oxford, Dawkins, ultimamente, fez de sua profissão a militância ateísta. Veja-se: não há aqui nenhum tipo de contraposição a respeito das suas convicções pessoais. Como evolucionista, Dawkins tem conhecimento a respeito do tema, mas parece extrapolar aquilo que é o seu objeto de estudo. Ao afirmar a não existência de Deus pela certeza da Evolução – o que comumente fazem também os seus coortes – o cientista opina, não faz Ciência, pois esta mesma não é capaz de dizer nada a respeito de Deus, que é imaterial. Ao recorrer à Ciência para justificar a sua visão cientificista do mundo, ele acaba por criar um claro vínculo entre Ciência e Ateísmo. As crenças – ou descrenças – de Dawkins e semelhantes não deveriam ser temas de divulgação em Ciência. Não para pessoas sérias. De maneira semelhante, o pitaqueiro adota uma posição crítica a respeito dos trabalhos de Freud e Jung, desqualificando-os com a autoridade de quem não tem autoridade.

Outro cientista célebre, o astrônomo Carl Sagan, gastou um pouco do seu tempo se ocupando de assuntos alheios à sua pesquisa. Ao promover a visão naturalista contemporânea nos seus best-sellers e na sua série Cosmos, Carl não é o cidadão Sagan, mas o Dr. Sagan, cientista. Apesar disto, como Dawkins, extrapola, dando opiniões e pontos de vistas pessoais com cara de Ciência. “O cosmo é tudo que existe, sempre existiu e sempre existirá”. Esta não é uma afirmação científica, uma afirmação baseada na evidência empírica. É muito mais uma afirmação metafísica acerca da realidade; Pode ser pensado também como um bom slogan para a abertura de sua série – o que de fato foi. Popper distingue Ciência – aquilo que pode ser falseado – da Metafísica – aquilo que não pode ser falseado. Obviamente, é difícil separar o que é opinião daquilo que é evidência. Uma vez que aqueles que divulgam Ciência não o fazem, cabe ao cidadão comum ser capaz de fazê-lo.

É possível acreditar na Ciência?

Certamente a Ciência se aproxima de muitas verdades parciais. É possível acreditar na Ciência, mas não de maneira dogmática. Devemos esperar o progresso científico. Ele acontece, ainda que aos trancos e barrancos. Mas é necessário ter em conta que o conhecimento científico não é absoluto e a insistência em ter a Ciência como única salvadora da humanidade nos condena à escuridão.

Na verdade não voltamos à Idade das Trevas para a Ciência, nós a inauguramos desde o século XIX. Pelas ideologias, por falar mais do que sabemos, pelos resultados falsos e/ou irreprodutíveis. Como o cidadão medieval médio, que acreditava nas verdades teológicas sem realmente compreendê-las, o cidadão atual médio acredita na Ciência sem saber como ela é feita e até onde ela é crível.

[1] Grant, E. (1996). The Foundations of Modern Science in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press.

[2] Baker, M. (2016). 1,500 scientists lift the lid on reproducibility. Nature 533, 452-454.

[3] Ioannidis, J. P. (2014). Why “An estimate of the science-wise false discovery rate and application to the top medical literature” is false. Biostatistics (15)1: 28-36.

[4] Jaspers, Karl. Ciência e Verdade. In O que nos faz pensar? (1989) Rio de Janeiro: PUC.

[5] Popper, K. R. (1983). Realism and the Aim of Science. London, Hutchinson.

Flávio Romero é Doutor em Genética pela USP