Filosofia

A Constituição Cidadã e o Consenso Imposto

por Andrea Faggion

O Brasil tem formado uma legião de bacharéis em direito, muito em razão do fato desse ser um dos cursos superiores mais baratos dentre os de alta procura. Para muitos, não é problemático que uma grande parte desse grupo sequer consiga se licenciar para exercer a advocacia, porque, em sua visão, seria desejável que todos conhecêssemos o ordenamento jurídico ao qual estamos submetidos. Talvez, seja mesmo. Mas essa posição também não deixa de trair uma mentalidade excessivamente burocrática e estatizante. Falo de um ideal bastante comum no Brasil. Todos os mínimos aspectos da vida em sociedade demandariam uma regulamentação específica para se tornarem funcionais. Assim, a boa sociedade seria aquela devidamente regulada, mas a regulação só seria eficiente se todos conhecêssemos todas as regulamentações e exigíssemos o seu estrito cumprimento, como bons fiscais de nossos próprios direitos legais. Pois eu tendo a pensar que essa sociedade, completamente regulamentada, em que todos, como bons estudantes do direito, se esforçam para fazer valer cada regulamentação seria uma sociedade tão engessada que restaria completamente paralisada. Em outras palavras, bem poderia ser uma sorte do Brasil que tantas regulamentações permaneçam ignoradas pela população.

Nossa “Constituição Cidadã”: consenso imposto?

Mas, em vez de dar exemplos concretos de leis que mais inviabilizam do que facilitam a coexistência social, hoje, pretendo dirigir o olhar mais acima no nosso ordenamento jurídico. A própria lei magna brasileira é um belo exemplo de superabundância, a ponto de também poder ser duvidoso o ideal de que ela seja amplamente conhecida e aplicada. Contudo, enquanto o excesso de regulamentações como dispositivos legislativos demonstra uma total desconfiança da possibilidade de que a sociedade contenha sua ordem intrínseca e possa, no mais das vezes, funcionar segundo ela, a superabundância constitucional representa uma desconfiança da própria capacidade dos legisladores, em outras palavras, uma desconfiança da política.

O fenômeno das constituições prolixas não é tipicamente brasileiro, é um advento do pós-guerra. O jusfilósofo Lon Fuller (1902-1978) teceu breves, mas importantes considerações sobre ele. Preocupado em preservar o ideal da fidelidade à lei, Fuller [1] nota a importância de que constituições escritas sejam aceitas, não apenas como lei, mas como boa lei, daí a existência, nos textos constitucionais, de preâmbulos e outras explicações que seriam reprováveis em estatutos ordinários. Um problema surge, então, quando essas constituições prolixas, incluindo a nossa, acabam incorporando toda uma gama de medidas econômicas e políticas do tipo que, ordinariamente, seria deixado para leis estatutárias. Em outras palavras, além de haver o afã de tudo regulamentar, que destaquei acima, a regulamentação ordinária, como destaca Fuller, a partir da II Grande Guerra, é transferida para o âmbito constitucional. Só que – eis o cerne do problema – essas medidas não vão parar no texto constitucional em função de alguma consciência política amplamente partilhada naquela sociedade de que sejam boa lei. Pelo contrário, como diz Fuller:

“É de se suspeitar que a razão para sua inclusão é precisamente o oposto, a saber, um medo de que elas não seriam aptas a sobreviver às vicissitudes de um exercício ordinário do poder parlamentar. Assim, as divisões de opinião que são um acompanhamento normal da legislação são escritas no documento que torna a própria lei possível.”[2]

Em outras palavras, pode-se dizer que o constituinte brasileiro, como outros do mesmo período histórico, sabia que aquelas medidas gravadas na constituição não seriam consensuais, ou aceitas por todos como boa lei, e, por isso mesmo, quis que aquelas decisões fossem tomadas em âmbito constitucional, impedindo que seus adversários prevalecessem no âmbito parlamentar. Com isso, é de se perguntar se o próprio texto constitucional não determina a instabilidade política que sempre ronda a frágil democracia brasileira. Não teríamos uma sociedade engessada pela política e uma política engessada pela constituição? Acima de tudo, nesta linha de raciocínio, é de se perguntar se a aclamada constituição cidadã, ao fazer prevalecer posições políticas e econômicas, retirando-as do diálogo parlamentar ordinário, não abalou a própria fidelidade à lei. Certamente, este era um risco contra o qual Fuller advertia: “Isto é, obviamente, um procedimento que contém sérios perigos para uma futura realização do ideal de fidelidade à lei” [3]

[1] Fuller, Lon. “Positivism and Fidelity to Law: A reply to Professor Hart”. Harvard Law Review, v. 71, n. 4 (Fev., 1958), pp. 642-643.

[2] Fuller, Lon. “Positivism and Fidelity to Law: A reply to Professor Hart”. Harvard Law Review, v. 71, n. 4 (Fev., 1958), p. 643.

[3] Fuller, Lon. “Positivism and Fidelity to Law: A reply to Professor Hart”. Harvard Law Review, v. 71, n. 4 (Fev., 1958), p. 643.

Andrea Faggion

Andrea Faggion é doutora em Filosofia pela Unicamp e professora de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)