Entrevista

A Crise: “Um projeto de poder autoritário não coaduna com uma imprensa vigilante”, diz Vera Magalhães

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Há pautas que se impõem. É o caso do terremoto político do já histórico dia 24 de abril de 2020.
Demissão de Sérgio Moro, que atribui a possibilidade de uma série de graves crimes a Jair Bolsonaro, presidente da República, em rede nacional. Pronunciamento do Presidente, rebatendo, entre digressões e tergiversações, o ex-ministro da Justiça. Evidências apresentadas por Moro em horário nobre, novamente em rede nacional.

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Para analisar esse cenário em profundidade, preparamos uma série de entrevistas ao longo desta semana.

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Hoje, encerrando nossa série, trazemos o olhar de Vera Magalhães, jornalista, comentarista política, apresentadora do Roda Viva e colunista d’O Estado.

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(Foto: Gabriela Biló)

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Ainda no dia 22/04, em sua coluna do Estado, você apurou que o inquérito das fake news no STF avançou sobre empresários e a disseminação de notícias falsas, em relação direta com os atos contra as instituições a que Bolsonaro compareceu. Como essas investigações — bem como as novas revelações acerca da relação de Flávio Bolsonaro com milícias reais, e de Carlos Bolsonaro com as milícias digitais — podem ter impactado a performance de Jair Bolsonaro em seu confuso pronunciamento?

Certamente impactaram. A conversa de WhatsApp vazada pelo ministro Sérgio Moro para o Jornal Nacional após sua demissão comprova que o inquérito das fake news está na raiz da decisão de Bolsonaro de trocar o comando da Polícia Federal. Os dois tiveram um entrevero sério numa reunião com outros ministros, que foi gravada, na própria quarta-feira, dia 22. Nessa reunião, Bolsonaro cobrou Moro em alto e bom som para que a PF se contrapusesse a decisões de governadores e prefeitos sobre como coibir desrespeito às regras de isolamento social, algo que também não é atribuição federal. Ali já estava patente que a relação dos dois caminhava para se tornar insustentável. Bolsonaro, inclusive, ameaçou vazar o áudio da reunião, no que foi desaconselhado pelos ministros. O inquérito das fake news é bastante controverso do ponto de vista jurídico. Teve a constitucionalidade contestada pela procuradora-geral da República da época, Raquel Dodge. O Ministério Público questiona, a meu ver com razão, o fato de ele ser sigiloso. Mas ele de fato avançou bastante. O fato de não ter objeto determinado claramente nem prazo de conclusão também são elementos que fazem com que seja um instrumento poderoso. Bolsonaro sabe disso. Sabe que ele avançou sobre parlamentares bolsonaristas e seus gabinetes, sobre essa rede de empresários, e, pior: sobre a família Bolsonaro. Existem implicações diretas para Carlos e Eduardo vindas de lá. Isso, somado à preocupação já antiga com investigações sobre Marielle, a relação da família com as milícias e a rachadinha no gabinete de Flávio são o pano de fundo da decisão de trocar o comando da PF, que acabou por levar à demissão de Moro e ao agravamento da crise institucional, com a abertura de novo inquérito pelo STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça.

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(EBC)

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Antes da oficialização, você apontou, no BR Político, que Moro deixaria o governo. A exemplo da deputada Carla Zambelli — para ficar em um só —, bolsonaristas foram às redes atacar a imprensa, dizendo ser mentira, que Moro não sairia, etc. Até um ponto, sempre foi normal um certo tensionamento entre o poder e a imprensa; mas qual é o diferencial, agora, deste governo, a partir desses exemplos?

Neste caso, o pânico e a negação parecem explicar a reação destemperada da deputada, de influenciadores bolsonaristas nas redes sociais e de ex-jornalistas que ainda tentam fazer parecer que estão em atividade. Na quinta-feira, a revista eletrônica Crusoé, publicada pelo mesmo grupo do site O Antagonista, levantou a lebre da crise entre Bolsonaro e Moro relatando a decisão do presidente de trocar Maurício Valeixo no comando da PF. Fui apurar e obtive a informação de que era fato que havia essa crise e mais: se Bolsonaro efetivasse a troca, Moro deixaria o governo. A fonte era indubitável. E eu cruzei a informação com outras ligadas aos personagens envolvidos na crise: Bolsonaro e Moro. Quem trabalha com informação em off, como eu há muitos anos, tem de adotar uma espécie de protocolo de checagem para evitar dar “barrigadas” ou comprar a versão de uma das partes interessadas. Fui repórter do Painel por cinco anos, em Brasília, depois editei a coluna por mais 4 anos. Fui repórter do dia a dia do Congresso ao longo de três anos, editora de política da Folha, editora do Radar e estou há quatro anos em rádio, TV e no Estadão. Digamos que tenho uma boa agenda de contatos e experiência em saber quando estão tentando plantar algo ou quando a notícia é quente. Foi em off que dei vários furos. Não publicaria se não tivesse certeza. Tentativas de desqualificar a imprensa sempre existiram e sempre existirão. A diferença deste governo é a disposição de aniquilar qualquer contraditório, fazendo uso ostensivo de milícias digitais e tendo o jornalismo profissional como alvo preferencial. Isso não é obra do acaso e faz parte de um projeto de poder muito claro, de cunho autoritário, que não coaduna com a existência de uma imprensa vigilante. A boa notícia é que em casos assim e em outros como uma pandemia, que vivemos agora, a diferença entre o que é fato e informação e o que é narrativa e desinformação fica muito nítida. Acho que o jornalismo sairá desse período tumultuado que vivemos fortalecido e prestigiado.

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Na esteira disso, mas por outro lado, há também comunicadores que aderiram ao bolsonarismo. Dada sua experiência com a cobertura jornalística política, que diferenças você vê entre (1) uma esfera de jornalismo de apoio massivo, quase militante, ao PT nos anos Lula-Dilma e (2) o atual engajamento de alguns pundits/comentaristas/ colunistas bolsonaristas? Você viu a ampla adesão ao lulismo de então; existe algo de diferente agora?

Naquela época houve a criação de blogs e sites de viés governista à base de amplo financiamento de empresas estatais e dinheiro de publicidade da Secom, a secretaria de comunicação da Presidência da República. Foi um movimento que começou no governo Lula 1, na época de Franklin Martins à frente da Secom, teve seu apogeu no governo Lula 2 e na campanha de 2010 e começou a entrar em crise nos anos Dilma Rousseff, diante dos atritos entre ela e Lula, primeiro, e depois em colapso depois das jornadas de 2013, da disputada eleição de 2014 e com a Lava Jato e o processo de impeachment. Esses veículos passaram a sofrer de falta de repasses e a claudicar no apoio fechado a Dilma. Mas os métodos estavam lá: difamação de jornalistas, ênfase em desconstruir jornalistas mulheres, usando para isso sua vida pessoal, sempre que possível, estigmatização da mídia profissional, por meio da sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista), martelada por Lula e pelos petistas e mimetizada por jornalistas do esquema, como Paulo Henrique Amorim, já morto. A diferença de agora é o uso muito mais massivo e profissional das redes sociais, que não tinham na época do PT a mesma influência, a sem-cerimônia do uso de fake news travestidas de notícias e a violência ainda maior com que adversários, jornalistas e mesmo aliados de anteontem são atacados, têm sua reputação destruída e, até pouco tempo atrás, ficavam atônitos e sem reação. O que ainda não está documentado é se há a mesma drenagem de recursos públicos para alimentar a engrenagem bolsolavista de destruição de reputação. A CPMI das Fake News e o inquérito correlato do STF avançam nesse sentido, e por isso causam pânico nas hostes bolsonaristas. A relação dos empresários bolsonaristas e da família na rede de “influenciadores” que apoiam o governo e atacam a imprensa também é algo que precisa ser mapeado: fazem isso a troco de proximidade com o poder, apenas, ou há algum mecanismo de financiamento? Talvez a CPMI e o inquérito avancem nisso. Por ora é possível constatar uma engrenagem de recursos que envolve grupos empresariais, parlamentares bolsonaristas e os chamados “blogueiros de crachá”, como batizou o Felipe Moura Brasil em reportagem seminal sobre o assunto na revista Crusoé, ainda em 2019. Quem são esses blogueiros? Assessores parlamentares, portanto pagos com dinheiro público, que alimentam sites pseudojornalísticos e as redes sociais com fake news para destruir adversários ou pessoas críticas ao governo.

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Jornalistas são obrigados a lidar com informações quase que instantaneamente. Recebem informações o tempo todo, de fontes das mais variadas, e têm exatamente a filtragem e a divulgação disso como tarefas da própria função. Como você monta um quadro mais amplo, como você toma o necessário distanciamento e tenta enxergar a conjuntura que se forma agora?

Como disse antes, a experiência de muitos anos (no meu caso já são 27) de cobertura ajuda a criar alguns protocolos, aguçar o feeling, saber quais fontes são confiáveis ou não e, principalmente, desenvolver uma capacidade de entender contextos e movimentos para além do presente. Quando vemos um presidente começar a negociar com o Centrão em busca de suporte político, isso aciona gavetas do passado, de antecessores que trilharam o mesmo caminho, alguns com sucesso (como Temer ou FHC) e outros sem (como Collor e Dilma). Quando se começa a falar de processo de impeachment, quem já cobriu um de perto e era cara-pintada no outro sabe que, para prosperar, ele precisa de um “alinhamento de astros”: apoio do setor empresarial e financeiro, crime de responsabilidade (mais ou menos, pelo menos) caracterizado, maioria congressual e apoio das ruas. No caso de Bolsonaro, esse alinhamento ainda não está configurado. E tenho dito e escrito isso. É isso que difere um jornalista que trabalhe com opinião e análise de outros comentaristas que apenas usam sua opinião e seu viés, sem checar informações ou ponderar os fatos: jornalistas não torcem. É claro que quando você trabalha com coluna de opinião, você a todo momento cruza a fronteira dos gêneros jornalísticos, mas é preciso fazer isso com honestidade intelectual e com respeito a fatos e apurações. Neste caso. Eu, Vera Magalhães, acho que Jair Bolsonaro é um presidente com pendor autoritário, que está colocando as instituições em teste de estresse e atrapalhando o combate à pandemia do novo coronavírus? Sim. Eu acho que ele tem de cair por isso? Precisa haver crime de responsabilidade configurado. Eu acho que estão dadas as condições para o impeachment? Não, de forma alguma hoje. Podemos chegar a que estejam dadas? Sim, certamente, esses processos são contínuos, e com Dilma vimos um impeachment inviável em janeiro e consumado em abril de 2016.

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(Reprodução: Acervo pessoal)

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No mesmo sentido, no papel da jornalista que cobriu o período diariamente, que leituras retro e prospectiva são possíveis acerca de Sérgio Moro? Como você vê o processo que levou ao embate entre o ex-ministro e o presidente, e o que lhe parece razoável supor que vem no horizonte da figura pública Sérgio Moro?

Há várias correntes de opinião em relação a Sérgio Moro, uma das figuras públicas mais importantes da última década, mas também ainda pouco esmiuçada e muito nuançada. Não me alinho àqueles que condenam toda a atuação de Moro na Lava Jato, seja porque sempre o fizeram, por serem simpatizantes da esquerda lulopetista ou de fato garantistas dentro da doutrina e filosofia do Direito, ou que passaram a condenar toda essa atuação depois das revelações da Vaza Jato. Olhando tudo isso em retrospectiva, vejo Moro como alguém metódico, obstinado, muito preparado do ponto de vista técnico enquanto juiz, que estudou com essa obstinação a operação Mãos Limpas e construiu um xadrez para tentar evitar que aqui houvesse os mesmos erros. Conseguiu controlar todas as variáveis por muito tempo, se antecipando, graças ao conhecimento do caso italiano, a possíveis tentativas de se contrapor às investigações, que tinham funcionado bem em casos anteriores no Brasil, como a operação Castelo de Areia em 2009 e 2010, por exemplo. Os problemas demonstrados pela Vaza Jato, a meu ver, demonstram que sim, se cruzou por muitas vezes a linha que deve separar a atuação de um juiz daquela do Ministério Público. Está nas mãos do STF decidir se isso é o suficiente para se anular sentenças e processos ou não. Mas não vejo ali forja de provas ou subversão significativa do processo que permita dizer que as condenações foram injustas, ou que o edifício de crimes revelados e confessados na Lava Jato seja uma cortina de fumaça. E aí temos o Moro que deixa a magistratura e esse legado e aceita o canto de sereia da política. Acho que ele se apequenou já no momento em que aceitou o convite para ser ministro de Bolsonaro. A imprensa apontou isso, eu mesma escrevi inúmeras colunas a respeito. E depois foi se apequenando a cada sapo que engoliu, e foram vários no primeiro ano de mandato. Certamente ele mostrou que não tinha a mesma argúcia para a política que demonstrou como magistrado. Sempre se perguntava quanto ele estava disposto a transigir. Foi muito, mas quando ficou evidente para ele que Bolsonaro de fato não queria combater a corrupção, e sim proteger os seus usando os meios de Estado para isso, algum limite foi atingido. O do magistrado, provavelmente. Ele parte agora numa jornada de resgate da própria biografia. Nesta empreitada, o juiz deve voltar à cena. Ele certamente guardou provas bem mais robustas que as que mostrou até agora, e fará da desconstrução de Bolsonaro o único caminho possível para recompor a própria imagem, bastante desgastada pela Vaza Jato e pelas concessões ao bolsonarismo ao longo de um ano e quatro meses.

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(Foto: Hélvio Romero/Estadão)

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Também no BR Político, você disse que “Moro deixa o Ministério da Justiça para se tornar, ato contínuo, pivô de um agora mais provável processo de impeachment de Bolsonaro”. Qual é a perspectiva da jornalista Vera Magalhães sobre o momento e clima político em Brasília para um possível impeachment?

Acho que já respondi essa pergunta nas considerações anteriores. Moro será um personagem central para que se avance ou não para o alinhamento de planetas necessário a um impeachment. Caso apresente provas de que Bolsonaro agiu sistematicamente para interferir politicamente na Polícia Federal, dará o elemento jurídico necessário ao coquetel a que me referi. Ele tem estatura para encarnar, sozinho, dois personagens importantes em todo processo de impeachment: o do “insider” que rompe e denuncia o esquema, como foi Pedro em relação ao irmão Fernando Collor, e o do jurista que dá o caminho jurídico para o processo, como foram Janaina Paschoal, Miguel Reale Jr. e Helio Bicudo para Dilma Rousseff. O STF, aqui, terá o papel que a CPI do PC Farias e o TCU tiveram em 1992 e 2016: dar o caminho jurídico. E é preciso saber como se portará o Congresso. Isso é uma evolução e depende de haver um articulador e o bafo da rua. Eduardo Cunha assumiu esse posto em 2016, com métodos nada convencionais. Não está dado se Rodrigo Maia tem a mesma força nem se se lançará com o mesmo apetite na tarefa. Da mesma maneira, a quarentena ditada pela pandemia e o fato de que Bolsonaro ainda tem 30% de apoio em diferentes pesquisas tornam mais fraco o componente de apoio popular necessário a um impeachment. Mas isso são construções, e muitas vezes a virada acontece muito rapidamente. Será preciso acompanhar a gravidade dos fatos daqui para a frente, a forma como o próprio Bolsonaro pode agravar sua situação e torná-la insustentável e como esses agentes políticos vão mover as peças do xadrez.

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Por fim, se o confuso solilóquio de sexta-feira, 24/04, fosse uma coletiva, e você lá estivesse, qual seria a pergunta que você teria feito a Jair Messias Bolsonaro?

Presidente, o que o aquecedor da piscina do Alvorada tem a ver com sua tentativa de intervir politicamente na Polícia Federal para proteger seus filhos e seus aliados?

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(Foto: Gabriela Biló)

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