Cinema

A fragilidade humana nos vilões de Hitchcock

por Carolina Starzynski

“Quanto melhor o vilão, melhor o filme”, afirma François Truffaut em uma das suas entrevistas com Alfred Hitchcock presentes no livro Hitchcock/Truffaut. Ao discutirem o filme Pânico nos Bastidores (1950), os diretores identificam sua falha na ausência de um bom vilão, figura em cuja força consiste a regra fundamental para garantir a efetividade de um bom suspense. Certamente ela também depende de diversos elementos técnicos e outros componentes da narrativa, mas uma análise cautelosa da filmografia de Hitchcock, o Mestre do Suspense – a unanimidade não é burra ao afirmar que esse título não deveria pertencer a outra pessoa –, revela o quão essencial a presença de um bom vilão é para o gênero.

Para delinear as características de um “bom vilão”, é imprescindível desprendermo-nos da visão maniqueísta do mundo. Hitchcock percebeu a ineficácia de um vilão plano, cujas ações são guiadas unicamente pelo mal, para causar o suspense. Personagens com várias camadas de profundidade são, portanto, mais interessantes, e causam nos espectadores um sentimento ambíguo – despertado por suas próprias contradições, inerentes aos seres humanos – de atração e repulsa.

Um vilão plano pode causar o efeito da “surpresa”, mas jamais o do “suspense”. Segundo a consagrada distinção de Hitchcock entre eles, ao colocar uma bomba debaixo de uma mesa à qual dois personagens se sentam, o diretor dispõe de duas opções: explodir a bomba, ou mostrá-la aos espectadores e deixar os personagens conversarem por mais quinze minutos antes de explodi-la. “No primeiro caso, demos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo, provemos o público com quinze minutos de suspense”, diz Hitchcock.

A preocupação do diretor ao criar seus vilões, portanto, está em garantir o despertar dessa tensão psicológica nos espectadores, os quais, reconhecendo neles traços de sua própria personalidade ou daquilo que lhes atrai em alguém, chegam a simpatizar com eles. Em seus filmes, os vilões frequentemente têm importância igual ou maior que a do protagonista – além de muitas vezes as perturbações internas dos protagonistas constituírem o elemento vil da narrativa, como em Rebecca (1940) e Quando Fala o Coração (1945).

Alfred Hitchcock estrangula um busto de si mesmo

O vilão de Pacto Sinistro (1951), Bruno Antony (Robert Walker), ilustra bem suas intenções. Ele e o protagonista, Guy Haines (Farley Granger), se conhecem em um trem, onde Bruno propõe uma troca de assassinatos engenhosa: ele assassinaria Miriam (Kasey Rogers), mulher de Guy, que, apesar de o ter traído, se recusa a se divorciar dele, e este, em retorno, assassinaria o pai de Bruno. Sem um motivo, nenhum deles seria descoberto, e ambos se livrariam de um empecilho em suas vidas. O senso de humor de Bruno e o caráter absurdo da proposta, porém, fazem Guy rir, e ele desce do trem em sua estação, esquecendo-se do encontro.

Assim como os caminhos de dois trens estão eternamente ligados por uma intersecção de seus trilhos, as vidas dos dois personagens também estariam, pois Bruno resolve prosseguir com seu plano e assassinar a mulher de Guy. Ele então passa a persegui-lo para garantir o cumprimento de sua parte do combinado. Por ser um homem charmoso e sedutor, Bruno conquista o ciclo social de Guy e consegue convites para frequentar eventos com a família de sua amante. Hitchcock, porém, também nos apresenta em seu vilão uma pessoa frágil, com uma mãe louca e um pai rigoroso, levando-nos a sentir pena dele, enquanto Guy chega a ser entediante e plano. Encontramo-nos, assim, em uma situação conflituosa entre nosso julgamento moral, ao reconhecermos a vileza de Bruno, e o emocional, ao simpatizarmos com ele.

Uncle Charlie (Joseph Cotten), de A Sombra de Uma Dúvida (1946), assemelha-se a Bruno neste aspecto. Na primeira cena do filme, ele foge de dois investigadores e nos é apresentado como um homem suspeito. Ele resolve então passar um tempo na casa de sua irmã em uma cidade pequena, notícia recebida pela família com grande entusiasmo, principalmente por sua sobrinha Charlie (Teresa Wright), batizada em homenagem a ele. O espectador logo percebe o motivo de tamanho deleite: Uncle Charlie é um homem elegante e aprazível, capaz de conquistar todos ao seu redor com presentes caros e histórias fascinantes sobre o mundo. Não demora, porém, para seu comportamento idiossincrático se revelar. À mesa do jantar, a personagem de Teresa Wright assobia uma valsa chamada The Merry Widow, e Uncle Charlie fica incomodado ao ouvi-la. Depois, ele esconde uma parte do jornal da família, e sua sobrinha, por curiosidade e suspeita, vai à biblioteca e deduz que seu tio é um dos principais suspeitos do “Assassino das Viúvas Ricas”. Com isso, a relação deles se transforma, e ele passa a ser violento com ela, chegando a colocar sua vida em risco.

Uncle Charlie é um personagem intrigante, pois é um assassino com um ideal. Apesar de sofrer as consequências psicológicas de seus atos, ele mata viúvas por desprezo pelo modo como elas vivem da riqueza de seus maridos, e acredita fazer assim um favor ao mundo, já repleto de maldade. Contudo, ele está claramente preocupado em se inocentar, e seu amor por sua sobrinha é perceptivelmente verdadeiro, o que mostra ao espectador a vulnerabilidade da condição humana.

Norman Bates (Anthony Perkins), considerado por muitos o melhor vilão de Hitchcock, também escancara a fragilidade humana. Psicose (1960) revela o fascínio do diretor pela psicanálise, e Bates reúne diversos complexos teorizados por Sigmund Freud. O enredo se inicia com Marion Crane (Janet Leigh), apresentada ao espectador como a protagonista, roubando quarenta mil dólares e fugindo de seu trabalho insípido e de um amante que se recusa a se casar com ela. Na estrada chuvosa, ela encontra o Bates Motel, onde resolve passar a noite.

Bates a recebe e, depois de acomodá-la, lhe oferece um jantar no lobby, onde a conversa dos dois se desenvolve como uma espécie de preâmbulo para o assassinato de Marion. Frases proferidas por ele, como “a mãe é a melhor amiga de um garoto” e “um filho não é um bom substituto para um amante” nos revelam a sua essência: um pobre garoto não suficientemente amado por sua mãe, tão humano que nos emociona. Após o assassinato de Marion no chuveiro, cena que se tornou uma das mais famosas da história do cinema, o espectador é abandonado, desprovido de um protagonista, e o personagem presente para substituir esse vazio – mostrado imageticamente pelo espaço vazio no enquadramento de Leigh no chuveiro imediatamente antes da entrada do assassino – é Norman Bates. Quando ele está no banheiro limpando as evidências do assassinato, é quase impossível não torcer pelo seu êxito, e Hitchcock, de fato, confessou manipular as emoções dos espectadores nesse momento.

Isso se repete incessantemente em sua filmografia. Em Frenesi (1972), há uma cena na qual o “Assassino da Gravata”, Bob (Barry Foster), tenta se livrar de um cadáver escondendo-o em um caminhão de batatas. Depois de depositar o corpo, percebe a ausência de um broche em seu casaco e deve recuperá-lo. O caminhão, porém, começa a se movimentar com ele dentro, revelando um vilão humano e passível de erros em uma situação simultaneamente cômica e angustiante, pois o espectador se contorce torcendo que ele consiga escapar.

Como se pode perceber, há uma série de nuances dos vilões e, nas palavras de Hitchcock, eles “não são todos pretos, e heróis não são todos brancos; há cinzas em todos os lugares”. Era assim que o diretor via o mundo, e sua habilidade de incorporar esses elementos da condição humana às suas ficções, dialogando assim com as contradições dos espectadores, foi responsável por perpetuá-lo não apenas como o Mestre do Suspense, mas também como um dos diretores mais importantes – e provavelmente o mais influente – da história do cinema.

Carolina Starzynski é formada em cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP)