Literatura

A história de Simeão do Deserto

Simeão no Deserto, de Carel Willink (1939)

por José Francisco Botelho

Em 423 d.C., um anacoreta chamado Simão ou Simeão instalou-se no topo de uma coluna de pedra, nas vizinhanças da aldeia de Telnishe, na Síria. Seu objetivo era viver na mais absoluta solidão. Primeiro, habitou uma coluna de 2 ou 3 metros de altura; ao longo dos anos, foi-se mudando para outras, cada vez mais altas, até  fixar residência em um grande pilar cujo capitel ficava de 15 a 20 metros do chão. Dali não desceria pelos próximos 30 anos. 

O topo da coluna era um quadrado com cerca de 50cm por 60cm, talvez cercado por um anteparo, para impedir que o eremita tombasse ao dormir. Ali ficava exposto a todas as intempéries, no verão e no inverno. Seus discípulos se aglomeravam junto à base da coluna, escutando as palavras que ele às vezes lhes gritava; meninos da aldeia vizinha levavam-lhe as parcas refeições por meio de uma escada, mas jamais permaneciam muito tempo lá em cima. A fama de Simeão espalhou-se, granjeando-lhe o apelido de Estilita – do grego stylos, “coluna”. Pessoas de terras distantes vinham consultá-lo sobre questões teológicas. Correspondia-se com o imperador bizantino Teodósio e com o patriarca Basílio de Antioquia. As cartas eram ditadas lá do alto, aos berros. 

Canonizado, Simeão inspirou diversos seguidores entre os cristãos do Oriente. Houve três outros santos de nome Simeão, nos séculos seguintes; todos viveram empoleirados em colunas ou pilares. O mais extremo dos estilitas, contudo, foi Santo Alípio, que permaneceu de pé no alto de uma coluna perto de Adrianópolis por 53 anos; após perder o uso dos pés, deitou-se de lado e ficou lá em cima por mais uma década e meia.  

A história de São Simeão, o Antigo (assim chamado para diferenciá-lo dos emuladores) inspirou um relato da Legenda Áurea, um delicioso capítulo em Decadência e Queda do Império Romano de Edward Gibbon, e um célebre poema de Lord Tennyson: St. Simeon Stylites. Ah claro: o excêntrico santo fascinou também Luis Buñuel, que reimaginou essa estranha hagiografia no média-metragem Simón del Desierto, de 1965 (gravado no México). 

Contudo, meu interesse por São Simeão veio diretamente de outra fonte: um quadro pintado pelo holandês Carel Willink em 1939. A imagem ilustra a capa da Poesia Completa de T.S. Eliot, na tradução de Ivan Junqueira, publicada pela Nova Fronteira. Bati o olho nessa pintura há muitos anos, ao encontrar essa edição de Eliot na Biblioteca da PUCRS, em Porto Alegre, e desde então me persegue a expressão do santo, de pernas cruzadas sobre sua coluna ainda baixa, enquanto lá atrás se espalha a fumarada de uma conflagração apocalíptica. 

Levei anos para perceber que invejava o embevecimento maluco do anacoreta e que gostaria de me identificar com ele, se pudesse. 

Meu conto Simeão do Deserto, que faz parte de Cavalos de Cronos, foi escrito como resposta ao poema de Tennyson. Em gloriosos pentâmetros iâmbicos, o grande poeta inglês descreveu o ascetismo de Simeão como uma espécie de vaidade, uma espécie de arrogância; reimaginei a história, elaborando outro motivo para que meu personagem resolvesse passar a vida suspenso entre o céu e a terra, e conferindo-lhe aquela forma que eu entrevira pela primeira vez, ao ler o relato de sua vida: a de um conto fantástico. 

* * *

Simeão do Deserto

(Excerto de “A Jangada de Caronte”)

Para Jaime Pacheco.

I.

Simeão nasceu na Síria. Andou, criança,
Nos vendavais da vastidão deserta.
Ao vento, sussurrou sua esperança:
“Senhor, estou dormindo; me desperta.”
Cedo, havia notado que este mundo
É sonho, e o sonho é longa penitência.
Quis despertar, quis emergir do fundo
Da morna letargia da existência.
Na existência irreal, vagou sozinho
Por escarpas de vago pesadelo.
Portou pedras. Ouviu, pelo caminho,
Rosnarem os chacais, sem vir mordê-lo.
Tentavam-no. Andou na solidão
Da Capadócia árida e aberta.
E disse à brusca e seca imensidão:
“Senhor, estou dormindo; me desperta.”
Buscou na dor, no extremo da fadiga,
O fim do sonho, o despertar real.
Amarrou três cilícios na barriga
Ouvindo ainda o riso do chacal. 

II.

Viveu num vale, perto de um mosteiro,
Habitado por graves cenobitas.
Com os olhos rajados de vermelho,
Claudicavam nas celas derruídas.
Mal dormiam, aos sustos e tropeços,
Temendo ser tentados pelos sonhos.
Falavam pouco, respiravam tensos,
Pois o ar estava cheio de demônios.
Tudo o que apraz aos homens, detestavam.
Vigiavam-se, sem nunca esmorecer.
Nesta insônia fatal, esconjuravam
Os fantasmas do horror e do prazer.
Rezando à meia-noite, estremunhados,
Imaginavam vultos e espectros.
Trombavam uns nos outros, e seus brados
Perturbavam os mochos do deserto.
Do rochedo, Simeão os observava:
Medo à noite, e torpor durante o dia.
Sentiu pena. O fervor os enganava:
Sabia que era falsa essa vigília.
“Pensam estar despertos dia e noite,
Mas o Sonho os abarca, escuro e branco.
Agitam-se, sonhando estar insones;
Eu sonho, porém sei que estou sonhando.”
A pena o distraiu por um instante.
Redobrou os cuidados e orações.
Desnudou-se nas noites trovejantes
E deitou-se nos ninhos de escorpiões.
Alguns monges olhavam de soslaio
O solitário vulto de Simeão:
No alto do alcantil, sobre o penhasco
Frequentado por raio e por trovão.
“Os demônios o temem”, sussurraram
Ao vê-lo desgrenhado no arrebol.
Mas de tanto admirá-lo, se irritaram,
Pois seus olhos ardiam contra o sol.
E os monges do deserto, pouco a pouco,
Da emulação passaram ao despeito.
Murmuravam: “Lá vai aquele louco”
Quando passava, espinhos contra o peito.
“Quer ser melhor que nós, quer ser o Puro,
O filho favorito do Senhor.
Sua santidade esconde um lado escuro,
E existe uma arrogância em sua dor.”
Aquele anátema ofendia a vista.
Lançaram-lhe dejetos e pedradas.
“Fora daqui, relapso, arianista!”
Gritavam, com calúnias inventadas.
Simeão pensou: “Eu sonho”, em meio às vozes
E os flagelos cruéis que o afligiam.
“Pobres irmãos”, pensava dos algozes:
Eram parte do Sonho e não sabiam. 

III.

Ferido, percorreu as regiões
Onde o deserto não tem forma ou nome
E entre velhas ossadas de leões
Os abutres febris morrem de fome.
Mas na aurora um lamento desdenhoso
Ecoou sob as estrelas que morriam.
Tudo era sombra no ermo pedregoso.
Invisíveis chacais o perseguiam.
Ao pôr do sol, ergueu-se a forma escura
De tétrica ruína sobre um monte.
No meio, havia um fuste de coluna.
(E os chacais regougavam no horizonte.)
No capitel varrido pelo vento
Pairava o halo azul do lusco-fusco.
Simeão olhou, olhou por longo tempo.
(E os chacais o chamavam no crepúsculo.)
Estudou a coluna, absorvido,
E apreendeu cada fenda e reentrância.
Começou a escalar, como um menino.
(E os chacais gargalhavam na distância.)
Sentou-se no alto, e no alto havia o vento
E nada além do vento e o vasto mundo.
A imensidão clareou-se num momento.
(E os chacais na lonjura estavam mudos.)
E os dias como um fulvo rio passaram,
E misturou-se ao sol seu corpo exposto,
E fogaréus de vento o ressecaram,
E as estrelas gelaram o seu rosto.
(Às vezes, uma lenta caravana
Contornava a colina desgrenhada.
Sarracenos de longas espadanas
Fitavam-no na ruína encastelada.
E às vezes três ou quatro peregrinos
Rasgando o ermo em busca desnorteada
Olhavam para o tenebroso cimo
E traçavam no peito a cruz sagrada.)
Morreram sóis, nasceram sóis e luas,
E ele bebeu o orvalho da manhã.
E a noite ardeu nas suas costas nuas,
E o hoje confundiu-se ao amanhã.
Sentiu na boca o mel dos gafanhotos,
Sentiu que a carne enfim se dissipava,
E sorriu com seus pobres dentes rotos,
Pois viu que o véu do Sonho se rasgava.
Mas um rumor longínquo o interrompeu.
Vinham de longe multidões dispersas.
“Eis o Estilita!” – o grito percorreu
Toda a extensão das regiões desertas. 

(continua…)

José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.