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A História não se repete: nosso entendimento e nossas reações, sim

por Vinícius Müller

A História não se repete. O que se repete é o modo como nós, atores históricos, buscamos encontrar em nossos dias elementos que tornam o passado inteligível. E, de modo dialético, olhar para o passado em busca de algo que padronize nosso entendimento sobre o presente, ou sobre o que está entre o presente e pontos variados do passado. Que nos dê parâmetros.

Os exemplos são múltiplos. Em um passado não tão distante, discutíamos se houve feudalismo no Brasil colonial. Ou seja, se era possível entender as persistentes desigualdades brasileiras a partir de um modo de controle e uso da terra que, no passado europeu, ensejou uma sociedade hierarquizada e socialmente estática por séculos. Este modelo, transferido ao Brasil por meio da expansão europeia do início da modernidade, encontrou aqui uma maneira de se ajustar e reproduzir. O engenho de cana, o latifúndio, as relações de trabalho e pessoais no interior das unidades produtivas agrícolas, a mentalidade do coronel: todos seriam elementos que mostrariam o feudalismo em funcionamento no Brasil.

Hoje sabemos que não houve feudalismo no Brasil, não obstante ser possível encontrar elementos análogos que, isoladamente, justificaram o debate sobre a existência ou não do modelo feudal durante a colônia. Contudo, há uma diferença fundamental entre as abordagens que buscam encontrar essas repetições na história. Uma delas entende a repetição como o ressurgimento de elementos que, embora tenham ficado escondidos durante certo tempo, reaparecem quando o contexto lhes é favorável. São os mesmos elementos, é a permanência que se revela em contextos diferentes. Desta forma, poderíamos traçar uma linha que unifica o latifundiário dono de escravos do Império, os membros da UDN nos anos de 1950, os neoliberais (?) dos anos 90 e os membros do atual governo nacional.  Outra, diferentemente, entende que os contextos se sucedem de modo repetitivo. Assim, após um período de governos democráticos, teríamos um outro de governos autoritários. Depois de Vargas, democracia populista; depois dela, governo militar, que por sua vez foi sucedido pela democratização dos anos 80 e que agora, em 2019, é superada por um governo de militares.

Hoje sabemos que não houve feudalismo no Brasil, não obstante ser possível encontrar elementos análogos que, isoladamente, justificaram o debate sobre a existência ou não do modelo feudal durante a colônia

Então, seja pela permanência de elementos que de tempos em tempos reaparecem, seja pela repetição cíclica de contextos, buscamos identificar os elementos que comprovem a repetição e que nos tornem o presente mais inteligível. Neste caso, inúmeros momentos de nossa História podem servir para que tenhamos algum parâmetro. Por exemplo, em 1850, após uma década de instabilidade enfrentada pelo governo imperial de Pedro II, um conjunto de propostas de reorganização institucional foi apresentado. Entre as mudanças, a Lei de Terras, o fim do tráfico de escravos (A lei Eusébio de Queirós) e a criação do código comercial.

Esta mudança institucional apontava, em sua essência, para uma preparação e/ou para uma aproximação entre a economia brasileira e o capitalismo moderno. Regularização do uso da terra voltada à definição do conceito de propriedade, o fim do tráfico como antessala para o fim da escravidão e a lei que e regulava a criação de empresas. Todas alinhadas à preparação institucional que nos levaria, mesmo que parcialmente, ao capitalismo. Contudo, tal tentativa não logrou êxito. Parte porque o que cercava a proposta de reparação institucional era pouco compatível com seus propósitos. A modernização do capitalismo brasileiro não ocorreria com a concentração de riqueza tamanha, com a infraestrutura precária, com a educação praticamente inexistente. Por outro lado, não avançou em seus objetivos porque, mesmo aparentemente sendo uma proposta de mudança institucional modernizadora, em sua essência carregava elementos ou brechas que reforçavam o atraso. Nesta hipótese, a progressiva crise da escravidão, entendida pela ampliação da posição abolicionista – tanto internamente quanto pelos britânicos -, foi ‘compensada’ pela garantia do controle sobre a terra aos proprietários que seriam prejudicados pelo fim da escravidão. Teriam trocado, em essência, a posse de escravos pela terra.

Outra possibilidade para entender o relativo fracasso das mudanças de 1850 é a baixa capacidade de garantir a aprovação e o cumprimento da lei. Os debates que se seguiram às propostas de mudanças institucionais foram capazes de diminuir e no limite eliminar os efeitos modernizadores que elas teriam. Quando aprovadas, já estavam desfiguradas de seus objetivos originais. O que nos leva a uma última hipótese: que as reações às propostas de mudanças institucionais foram não só variadas, mas também produziram ponderações cuja combinação resultou em algo diferente do que havia sido proposto. Ou seja, que o resultado dependeu menos do que foi proposto e mais das reações que recebeu.

seja pela permanência de elementos que de tempos em tempos reaparecem, seja pela repetição cíclica de contextos, buscamos identificar os elementos que comprovem a repetição e que nos tornem o presente mais inteligível

Neste caso, quatro reações podem ser facilmente identificadas. A primeira, já citada, foi a tentativa de desconfigurar a proposta original. Fundamentalmente, por aqueles que se sentiam prejudicados. A segunda, também já tangenciada, foi a aposta que mesmo desconfigurada, as leis não seriam cumpridas e fiscalizadas por falta de capacidade do governo. A terceira, em 1850 pouco relevante, foi a recusa por atacado da proposta, como uma negação absoluta da sua relevância. Por fim, uma quarta reação que misturou certo ceticismo, resistência e objetividade. Esta esteve ligada àqueles que reconheciam que algumas das partes que compunham a proposta de mudança institucional seriam impostas pela própria realidade. O fim do tráfico e consequentemente da escravidão, poderia demorar – como de fato aconteceu -, mas ocorreria. Que a propriedade seria transformada, mesmo que deixasse brechas para a manutenção de modelos pré-capitalistas de controle sobre a terra. E que tal transformação pressionaria, mesmo que em tempo mais demorado do que o desejado, mudanças no sentido de profissionalização e modernização tecnológica na produção agrícola.

Os resultados relacionados às propostas de mudanças institucionais de 1850 foram derivados da ponderação entre todas estas reações. Mesmo que elas tenham produzido um resultado mais amplo, também apresentaram diferenças que explicam os impactos diversificados que promoveu. Quem apostou que poderia resistir ao fim do tráfico de escravos, se enganou. Quem achou que a proposta teria imediatos resultados, sem resistências, relacionados à criação de um mercado de terras e ao fim da escravidão, também se precipitou. Quem simplesmente negou a pertinência das propostas de mudanças institucionais mal entendiam o que estava ocorrendo na sociedade. Já aqueles que reagiram de modo mais ponderado, tentando adaptar seus interesses mais específicos aos desafios que a realidade nos impunha, foram os que melhor se prepararam para o fim do tráfico e da escravidão e para a mudança da propriedade da terra e consequentemente, da produção em suas exigências técnicas e tecnológicas.

Portanto a depender de qual história e de qual item destacamos como parâmetros, entendemos nosso presente e reagimos às propostas de mudanças de modo diferente. Se também usamos nosso entendimento sobre a História para identificar como ela se repete, se por continuidade de alguns elementos ou se por movimentos cíclicos, nos comportamos de modo variado frente às mudanças que enfrentamos. A qualidade desta identificação e, assim do próprio modo como reconstruímos a História, é determinante de nossas reações no presente. E nossas reações interagem de modo que os resultados que teremos serão, entre nós, diferentes. A questão, portanto, é: vivemos um momento de propostas significativas de mudanças institucionais? Como a entendemos? A partir de qual parâmetro, construído pelo entendimento que temos de nossa História? E mais importante, como reagiremos às mudanças?

Possíveis respostas podem esclarecer quem sofrerá menos com os resultados das mudanças que estamos vivenciando. E, claro, quem sofrerá mais.

Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.