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A liberdade e seus limites: John Stuart Mill e Isaiah Berlin

por Leandro Bachega

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O filósofo britânico Isaiah Berlin (1909-1997) destacou-se como historiador das ideias, e era fascinado pelas mais diversas e obscuras personagens da história política, como Vico e Herder, Hamann e Herzen, entre outros autores de quem se dizia devedor. Não obstante, Berlin sempre foi sincero com suas influências: se para ele, por exemplo, o Iluminismo legou-nos a supremacia da razão sobre a superstição, também lá encontra o embrião dos governos totalitários socialistas; e se herdamos do Romantismo alemão a valorização da liberdade, é também em seus principais autores que Berlin identifica o nascimento de um nacionalismo extremado de consequências trágicas no século XX.

Sir Isaiah Berlin

Quando assumiu a cadeira Chichele na All Souls, em Oxford, em 1958, Berlin palestrou sobre os “dois conceitos de liberdade” que considerava, dados os acontecimentos dos últimos três séculos, as leituras mais urgentes a respeito da liberdade política. Essa conferência marcaria para sempre como seu pensamento seria conhecido. Se por um lado, a chamada “liberdade positiva” buscava responder à pergunta “por quem devo ser governado?”, encontrando sua resposta no autogoverno do indivíduo e, num momento posterior, reconhecendo que a razão conduziria todos os homens a um mesmo fim – a uma espécie de “vontade geral” rousseauniana – por outro, a “liberdade negativa” era a compreensão de que a liberdade individual era ampliada na medida em que os obstáculos que impediam a ação de alguém fossem eliminados. Berlin identificou os exageros da liberdade positiva nos governos totalitários de seu século, e foi um apaixonado defensor da liberdade negativa, embora admitisse os malefícios de seu uso sem limites.

Stuart Mill, retratado por G.F. Watts

Dos muitos autores que influenciaram Berlin na formulação de seu entendimento sobre a “liberdade negativa” está o utilitarista inglês John Stuart Mill (1806-1873), a quem ele chama de “o maior defensor desses princípios (liberais), o homem que os formulou da maneira mais clara e, assim, fundou o liberalismo”. De fato, em Sobre a liberdade (1859), Mill advoga que se garanta ao indivíduo uma liberdade quase irrestrita, limitada somente em eventuais ações que causassem males a terceiros; excetuado isso, cada pessoa deveria ser capaz de viver, agir e pensar como melhor lhe parecesse. Para Mill, essa liberdade era fundamental para que houvesse uma ampliação do espírito humano e, consequentemente, o encontro da felicidade.

Tamanha liberdade defendida por John Mill não se encontrava no pensamento de seu pai, James Mill (1773-1836), e nem no de seu mestre e mentor do utilitarismo, Jeremy Bentham (1748-1832). Influenciado pelo espírito do tempo, Bentham pretendia encontrar uma resposta racionalista que, uma vez aplicada à sociedade, concedesse uma vida feliz ao maior número possível de pessoas, mesmo que para isso fosse necessário tomar decisões arbitrárias: submetendo-se a um programa, às leis corretas, à forma ideal de comportamento e disposição social, a felicidade seria rapidamente estabelecida entre as pessoas.

James Mill era um discípulo convicto de Bentham, a ponto de educar seu filho, John, segundo as diretrizes do utilitarismo benthamita. Ao palestrar em homenagem a John Stuart Mill, Berlin descreveu a educação espartana que aquele recebeu: “o menino aprendeu grego aos cinco anos, álgebra e latim aos nove. Era alimentado com uma dieta intelectual cuidadosamente destilada, preparada pelo pai e composta de ciência natural e literaturas clássicas. Nada de religião, de metafísica, muito pouco de poesia – nada do que Bentham havia estigmatizado como o acúmulo da idiotice humana (…)”[2]. O resultado foi um jovem dotado de um intelecto brilhante, mas completamente carente de sentimentos; mais tarde, em meio a uma crise, sentindo-se privado de emoções e de vontade por conta de sua educação, John Mill reconheceria que não seria feliz mesmo que levasse a cabo o utilitarismo de Bentham, e por isso procurou alhures como, enfim, uma pessoa poderia encontrar a felicidade, tendo descoberto na liberdade individual a condição sine qua non para a busca de seu ideal. Avesso a todo tipo de padronização, Mill percebeu que o utilitarismo, tal como Bentham o havia idealizado, criaria aquilo que se tornaria seu maior medo: massas ignorantes, obedientes a uma ordem que lhes era exterior e que as conduziria para onde melhor lhe proviesse, para onde os reformadores sociais julgassem mais útil, não respeitando necessariamente o desejo ou as escolhas pessoais.

A liberdade individual, tal como John Mill a propõe em Sobre a liberdade, não vê restrições outras que não sejam um eventual prejuízo a terceiros. Influenciado pela leitura de Democracia na América, de seu contemporâneo, Alexis de Tocqueville (1805-1859), Mill temia tanto a padronização no estilo de vida das pessoas quanto um novo tipo de ditadura: o poder das massas sobre o indivíduo. Para que este fosse protegido de uma interferência prejudicial, o antídoto sugerido era a ampliação irrestrita da liberdade, prevendo inclusive a adoção de modos de vida que vão da excentricidade ao vício, sem que isso fosse visto (ou devesse ser visto) como imoral, contrário aos costumes ou lesivo à sociedade em geral: ao contrário, John Stuart Mill defende que somente através do fomento dessa liberdade individual é que as sociedades civilizadas encontrarão o progresso e o florescimento humano como um todo.

Sem dúvida alguma, Berlin deve boa parte de sua concepção de liberdade negativa ao pensamento de Mill. Contudo também estava consciente de que a “liberdade do tubarão é a morte para as sardinhas”[3], que a liberdade irrestrita já havia sido justificada para estabelecer sistemas opressores de sociedade, citando como exemplos o darwinismo social e o capitalismo desenfreado já verificado desde o tempo do próprio Mill. Afinal, “como uma sociedade que louva as virtudes da liberdade, da individualidade, da variedade e da tolerância se sustenta quando tais virtudes, levadas ao extremo, ameaçam subverter aquela mesma sociedade liberal e, com isso, as próprias virtudes?”[4] Berlin provavelmente se situaria mais próximo a Montesquieu, para quem “o lugar natural da virtude é ao lado da liberdade; mas ela não se encontra mais próxima da liberdade extrema do que da servidão”.[5]

Se, para Mill, a liberdade é o único meio pelo qual o homem pode progredir, para Berlin, a liberdade é apenas um entre os muitos bens que a humanidade deseja, e crê que a criatividade e o espírito livre das pessoas podem surgir mesmo em meio a um ambiente opressor. Ademais, a completa autonomia que Mill concede ao indivíduo soa utópica para Berlin: “a atividade de nenhum homem é tão completamente privada, que nunca venha a obstruir as vidas dos outros de uma forma ou de outra”.[6] A liberdade individual da maneira como definida por Mill não se comprova na observação da vida tal como ela é. Por esse motivo, Berlin defende que a coerção, ou seja, a interferência na liberdade alheia, embora cerceie a liberdade, muitas vezes é boa, senão necessária, ao passo que, diferentemente de Mill, a liberdade é um bem, mas não o único, e nem sempre o mais importante.

Berlin sustenta que a liberdade baseada na vontade, tal como Mill a propõe, não poderia ser considerada como uma liberdade política, uma vez que bastaria a qualquer um que simplesmente dirigisse sua vontade às coisas que poderia almejar, desprezando aquelas consideradas inatingíveis. Não bastasse, Isaiah Berlin percebia que em seu tempo, a garantia de liberdade não trouxe aos homens um progresso existencial: se Mill foi mais uma das vozes do século XIX a clamar por um pouco de ar em um tempo marcado pela “mediocridade coletiva”, também foi incapaz de prever que o aumento da liberdade levaria os homens do futuro a um período de grandes incertezas, temores, desconfiança sobre si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Para uma civilização cada vez mais ávida por liberdade e satisfação de desejos, a ponderação de Berlin parece mais pertinente do que a de Mill.

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Notas:

[1] BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 177.

[2] Idem, p. 178.

[3] BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 137.

[4] HIMMELFARB, Gertrud. Ao sondar o abismo: pensamentos intempestivos sobre cultura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2019, p. 100.

[5] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 124.

[6] BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 137.

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Leandro Bachega

Leandro Bachega é Doutorando em Filosofia pela PUC-SP; membro do grupo de Filosofia Patrística, Medieval Latina e Árabe da PUC-SP e do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.