Literatura

A Memória Moldada no Barro

Conceição Evaristo. Foto: Rafael Arbex/Estadão

por Adriano Moraes Migliavacca

“A vida era a mistura de tudo e de todos, dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser”. O leitor talvez se pense diante de uma frase tomada de algum escrito do filósofo irlandês Edmund Burke. No entanto, a fonte dessas palavras está significativamente mais próxima de nós, afluência, no entanto, de um rio ainda mais antigo e longínquo. Trata-se do romance Ponciá Vicêncio, da ficcionista e poeta mineira Conceição Evaristo. Conceição se encontra naquele grupo de autores que foram conhecer a notoriedade na maturidade. Aos 71 anos agora, sua obra encontra um número crescente de leitores e cada vez maior prestígio, que não foram em nada abalados pela negativa, no dia 30 de agosto, da Academia Brasileira de Letras em aceitá-la como membro.

Há marcada polêmica quando se diz que alguém faz literatura negra ou afro-brasileira. Refere-se ao quê esse par de adjetivos intercambiáveis? À cor da autora? À temática da obra? Às duas coisas? Seja o que for, esse predicativo é aplicado com unanimidade à obra de Conceição Evaristo. Lendo o romance Ponciá Vicêncio, a questão toma outro escopo, mais amplo e produtivo para nossa literatura. A obra conta a história de uma família negra muito pobre vivendo no povoado ficcional de Vila Vicêncio. A família encontra-se na segunda geração após a abolição da escravatura, sendo formada pela mãe, Maria Vicêncio, a filha, Ponciá Vicêncio, e seu irmão, Luandi Vicêncio, tendo o pai morrido quando os filhos eram ainda muito novos. Mãe e filha são exímias na modelagem do barro, o qual elas transformam em jarros, potes e outros utensílios que vendem para os outros moradores do povoado. Diante das condições de vida miseráveis e uma angústia crescente, Ponciá ruma para a cidade, no que seria seguida, depois, pelo irmão. Empregada e casada, começa a ser acercada por uma espécie de vazio, que no início a apavora, mas depois a reconforta e vai, pouco a pouco, tomando a forma de um mergulho na própria ausência e um estiolamento de sua vontade de viver. A cura só virá com o reencontro com mãe e irmão e o retorno ao povoado natal.

Existe, em Ponciá Vicêncio, uma riqueza de elementos que vai dando complexidade a uma história já em si misteriosa. Essa história de desenraizamento e retorno ao seio familiar, seguido de renovação, Conceição Evaristo embebe em símbolos e imagens intimamente ligadas a cosmovisões africanas. Acima de tudo, Ponciá Vicêncio lida com o tema da viagem, dos diversos tipos de viagem que o ser humano faz em sua existência. Já no início, sob o arco-íris ameaçador, que promete trocar o sexo da pessoa que passar por debaixo dele, Ponciá Vicêncio, assustada, faz essa viagem; o que encontra do outro lado não é o outro sexo, mas o seu próprio quando, ao tocar entre as pernas para saber o que se encontrava ali após a viagem sob o arco-íris, descobre o prazer sexual. A autora se assegura de que, ao nos fazer acompanhar os personagens em suas viagens, é o interior delas que somos dados a conhecer.

No início dos anos 90, a antropóloga Margaret Drewal estabeleceu-se na Nigéria para conduzir um longo estudo sobre os diversos tipos de rituais praticados entre os iorubás. Conceitualmente, ela descobriu, o ritual era entendido como uma viagem “com uma relação sinedóquica com a ontologia do espírito humano viajando pelo nascimento, pela morte e pela reencarnação”, ou seja, uma viagem ontológica. A viagem se dá, evidentemente, pelos três reinos citados no início deste artigo: os que foram, os que estavam sendo e os que viriam a ser, ou, mais simplesmente, os mortos, os vivos e os não-nascidos. A interconexão desses três reinos é noção importante na teoria estética de Wole Soyinka, onde eles são acompanhados de um quarto, misterioso e alusivo: o abismo de transição entre eles, fonte última e fértil de toda a existência, mas na qual o ser humano periga se perder. A forma de não se perder, e de manter o ciclo da existência em movimento, é a manutenção de uma tradição, a produção artística, os rituais, a música, a poesia – as formas de encarnar na vida diária a memória e a história de um povo, de todos e de cada um individualmente. Não há dúvida de que, no romance que aqui examinamos, as obras em barro de Ponciá Vicêncio e sua mãe Maria Vicêncio cumpriam exatamente essa função em seu povoado, espalhadas pelas casas de seus viventes, costurando uma história no estilo artístico próprio daquela família – talvez a história dos negros, nos diz a narradora em terceira pessoa. O barro é, conforme uma diversidade de mitologias, a matéria primeira de nosso corpo, e o corpo do vaso construído, nos lembra um poema de Bruno Tolentino, “antes de ser forma, foi primeiro humildade de barro paciente”.

Não é à toa que, quando se afasta do povoado – e do barro de sua arte –, Ponciá Vicêncio passa a ser visitada crescentemente pelo vazio, o abismo de transição de que fala Soyinka. O ciclo se enfraquecera – o que restava era o abismo. Sua viagem à cidade tornara-se uma viagem de desencontro, talvez um ritual cujas ações perderam o sentido para seus próprios praticantes. Ela não sabia mais o que fazia lá, e o húmus de sua origem a chamava. Ponciá perdera tanto o barro entre as mãos quanto a palavra – sua expressão estando cortada, até de si mesma se perdia.

O recurso final consiste em retornar – mais uma viagem – ao povoado de onde viera, onde o rio e o barro a chamavam, mas retornar acompanhada de mãe e irmão quando os três se encontram na cidade. O recurso final é apelar aos poderes regenerativos da natureza, materializados no rio que reinstaura o fluxo de vivos, mortos e não-nascidos no correr biográfico de Ponciá. O rio, se tomarmos novamente uma referência da cultura iorubá, está representado pelo orixá Oxum, divindade feminina da fertilidade, da beleza e da regeneração, aquela que, como diz um de seus poemas litúrgicos, faz do corpo de uma mulher estéril um fruto suculento. Menos conhecida, no entanto, é sua face degenerativa, pois o orixá tem também tutela sobre a morte e a reencarnação. A água que flui no corpo de uma pessoa assim como lhe dá viço, também, em certo momento, para de fluir, para que o corpo possa secar.

Em um substancioso artigo sobre Ponciá Vicêncio, a poeta Eliane Marques urge que o estudemos amparados em, antes de tudo, referenciais teóricos e literários africanos, mais adequados para o entendimento de um romance como esse. Quanto a mim, não sei de outra obra literária brasileira que tenha tido tanto sucesso em dar tutano lírico à cosmovisão africana, uma cosmovisão que insistimos em desconhecer, apesar de estar tão próxima de nós.

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Adriano Moraes Migliavacca

Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul