Literatura

A música sem notas da poesia grega

por Gabriel Nocchi Macedo

Quando manifestei em uma rede social meu desgosto com o prêmio Nobel de Literatura dado a Bob Dylan, um amigo americano, que me sabe classicista, comentou: “Se os antigos gregos não distinguiam música de poesia, por que nós deveríamos?” A academia sueca ela mesma aludiu à imbricação de música e poesia na Grécia antiga ao designar verbatim Dylan como herdeiro de Homero e Safo. Se a reflexão do meu amigo, cujo primeiro diploma universitário foi em Clássicas, não é desprovida de verdade, ela não basta à justificação do Nobel nem à pretensão de que Dylan não seria um simples cantor-compositor, mas de fato um poeta. A razão é simples. Pouco se sabe sobre a música que fazia parte da performance de poemas gregos (e latinos): raríssimas notações musicais antigas foram conservadas. A poesia épica e lírica grega nos foi transmitida sem música, sem música ela serviu de modelo a todas as tradições poéticas ocidentais, e sem música ela é, ainda hoje, admirada como uma das maiores realizações artísticas da história. Não me atrevo a profetizar como (ou se) as gerações futuras apreciarão a obra de Dylan, mas dúvido que, mesmo entre seus mais fervorosos admiradores, haja quem leia suas letras sem simultaneamente escutar as canções.

O papel da música na poesia grega não encontra paralelos nas associações que hoje se fazem entre as duas artes. Nenhuma forma poética antiga foi originalmente composta para ser lida, mas sim executada oralmente perante um grupo de auditores. Na época arcaica, quando viveram Homero e Safo, quase todas as formas de informação e conhecimento eram transmitidas oralmente. Não é um caso que as primeiras obras literárias, inclusive em civilizações mais antigas que a grega (lembre-se do Gilgamesh acádio ou da canção de Kumarbi hurrita), são em verso. A repetição de padrões métricos e rítmicos, sustentada pelo acompanhamento melódico, facilitava a memorização: as 15,693 linhas da Ilíada, por exemplo, foram transmitidas de boca em boca, desde a costa da Ásia Menor até o mar Jônico, durante ao menos um século, antes de ser escritas pela primeira vez.

Safo e Alceu. Pintura de Lawrence Alma-Tadema (1881)

Atenhamo-nos porém à poesia lírica, cujo próprio nome já revela a natureza musical. As composições dos poetas líricos eram cantadas por coros (lírica coral) ou em solo (lírica monódica) com acompanhamento instrumental, frequentemente com a lira (ou correlatos dessa, como o barbitos ou a cítara) e, em alguns tipos de poesia coral, com o aulos, um instrumento de sopro. Os poetas compunham o acompanhamento a seus próprios versos e amiúde os cantavam eles mesmos. Vários eram os contextos em que esses poema-canções (os gregos os chamavam melè, “canções”) eram executados: celebrações religiosas, festivais de teatro, competições esportivas, banquetes, matrimônios, funerais, etc. O tebano Píndaro celebrava as vitórias de jovens atletas nos jogos Olímpicos; Álcman compunha hinos para coros de jovens moças em Esparta, enquanto as canções de Tirteu incitavam bravura aos soldatos espartanos antes de batalhas.

À questão que preocupa compositores de ópera desde os primórdios do gênero, prima la parola o prima la musica?, os poetas gregos responderiam clara – e indubitavelmente – “a palavra”. Não somente a música era composta para servir ao texto, mas também era, por assim dizer, moldada por ele.  A métrica grega é composta por combinações de sílabas longas e breves (pense-se na oposição entre palavras “vôo”, onde o som ô é ‘alongado’, e “vô”). Os padrões formados por sucessões definidas de longas e breves ditavam o ritmo da música acompanhante que jamais podia desviar-se: cada nota correspondia à uma sílaba do texto. O canto era entoado de maneira simples, sem floreios vocais; coros cantavam sempre em uníssono e o acompanhamento instrumental simplesmente repetia as notas cantandas, uma oitava acima ou abaixo da voz. O canto devia ser claro e articulado para que as palavras, jamais afogadas pelo som instrumental, fossem entendidas sem dificuldade pelo público ouvinte.

Apesar de grandes avanços feitos por classicistas do século passado, ainda nos é impossível saber exatamente como soava a execução oral de um poema grego. Nos raros casos em que texto e notação foram preservados, resta ainda o problema da fonética da língua grega, em muitos aspectos diferente do que se conhece nos idiomas modernos. O acento, por exemplo, não era tônico, mas musical: a sílaba acentuada era expressa por uma alteração do tom de voz (formas de acentuação tonal existem em sueco e norueguês, o que explica a qualidade “cantada” dessas línguas).

Não obstante esses obstáculos, e os limites adicionais impostos pelo uso de uma transliteração, me aventuro, argumenti causa, a ilustrar, a partir de um fragmento de Safo, como a musicalidade de um poema lírico grego já reside nas palavras e na estrutura métrica.

Safo, fr. 31 Voigt

Parece-me ser igual aos deuses

ele, o homem que face a ti se

senta e, de perto, escuta

teu doce falar

e amável rir; mas isto

estremece no peito o meu coração;

se apenas por um átimo te vejo, já

não posso mais falar,

minha língua se quebra, e

de súbito um tênue fogo me corre sob a pele,

nada vejo de frente aos olhos,

meus ouvidos zunem

e um gélido suor me toma, um tremor

agarra-me toda, mais verde que a grama

eu estou, e a mim parece faltar pouco

para estar morta.

Safo  dá-nos aqui a primeira ilustração daquilo que se tornará um topos da literatura ocidental: os efeitos físicos do amor. A poetisa usa uma sucessão de metros que posteriormente receberá seu nome: a estrofe sáfica. Os dois primeiros versos são endecassílabos. A terceira e quarta linhas formam um só verso de dezesseis sílabas, proferido sem pausa métrica. Na transliteração da primeira estrofe, as sílabas em negrito são as longas, cujo som ‘dura’ mais que o das breves. Em maiúsculas, as sílabas que recebem o ritmo ascendente (arsis), onde a voz deve subir em tom:

PHAInetAI moi nos isOS theOIsin

EMmen’ÔNèr, OTtis enANtiOS toi

ISdaNEI kai PLAsion Adu PHÔnei

SAS upaKOUei

Uma tentativa grosseira de reproduzir o ritmo da estrofe seria (sílaba longa: “taa”; sílaba breve “ta”; sílaba em ritmo ascendente: letras maiúsculas):

TAAtaTAA taa TAAta taTAA taTAAtaa

TAAta’TAAtaa TAAta taTAAtaTAA taa

TAAtaTAA taa TAAtata TAA ta TAAtaa

TAA tataTAAtaa

A primeira sílaba longa e de ritmo ascendente dá ao verso um sentimento de urgência que parece continuar até a parte central, nas sexta e sétima sílabas, onde há uma breve trégua antes de um retorno à contudência inicial. O caráter sincopado, porém implácavel, do ritmo, reforçado pela sonoridade das palavras, cria um efeito monótono e passional, que convém perfeitamente à pungente enumeração das aflições corpóreas causadas pelo amor. A melodia interpretada junto a esse poema (da qual nenhum traço sobreviveu) seguiria o ritmo definido nos versos, sustentando a duração das vogais e intensificando o efeito emocional das palavras.

Assim, graças à métrica, rígida e rica em nuanças, e à natureza musical da língua grega, a música de Safo nos é acessível, mesmo se não conhecemos suas melodias. Em outras palavras, a música das palavras nos revela a música das notas perdidas. Ao contrário dos singer-songwriters de hoje, cujas letras devem “caber” na melodia, Safo e seus compatriotas extraíam a música das palavras e davam ao texto sua própria musicalidade.

A estrofe sáfica foi adotada por poetas romanos como Horácio e Catulo, que inclusive traduziu versos da poetisa em latim. Mediante a adaptação ao acento tônico, que se substitui ao acento musical no latim medieval e, consequentemente, nas línguas românicas, a estrofe foi usada em hinos cristãos na Idade Média e por poetas renascentistas na Itália e França. Desde então, grandíssimos poetas, de Thomas Hardy a Friedrich Hölderlin, de Ezra Pound a Allen Ginsberg, reconheceram a pungência emocional dessa antiga versificação e adotaram-na em suas composições.

Mesmo sem suas liras, os poetas gregos ainda cantam. Os versos de Safo, primeira entre todos a falar de amor na primeira pessoa, não cessam de fascinar não somente especialistas, mas leitores que nada sabem de grego e métrica. A brilhante tradução inglesa da poetisa canadense Anne Carson (2002) obteve merecido sucesso crítico e comercial. A recente descoberta de dois novos poemas de Safo em um papiro causou um verdadeiro furor mediático. Àqueles que, como eu, tentam desesperadamente não perder o respeito pela academia sueca (à qual a grande literatura do nosso tempo deve muito), resta-nos esperar que, daqui a 2000 anos, quando os arquivos sonoros do século XX estiverem há muito extintos, a qualidade poética das letras de Dylan exerçam um fascínio comparável naqueles que, condenados ao silêncio da leitura, as lerão.

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Gabriel Nocchi Macedo

Gabriel Nocchi Macedo é doutor em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidade de Liège (Bélgica) e leciona atualmente na Universidade do Michigan.