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A política religiosa: o ópio dos homens poéticos

por Celina Alcantara Brod

“Quando dependemos de um sistema para a transformação da sociedade, estamos simplesmente evitando o problema, porquanto sistema algum pode transformar o homem; o homem sempre transforma o sistema, como prova a História”.
Jiddu Krishnamurti

“Quem pretende formular um veredito definitivo é um charlatão”.
Raymond Aron

Você acredita que uma ideia sublime pode fazer com que os homens dancem em harmonia, embalados por acordes devidamente alinhados? Crê que as pessoas agem com violência, ganância, mediocridade e fingimento apenas por que desconhecem ou violam imperativos de uma razão prática? E, por isso, você também suspeita que a plenitude política e social só não acontece porque, como pensava Platão, estamos acorrentados olhando para sombras ao invés de uma realidade inteligível e perfeita? Ou seja, estamos agrilhoados pela ignorância e basta sairmos desta caverna rasteira, para que algum tipo de moralidade ascética reine no mundo?

Você confia em determinado sistema de pensamento ou alguma teoria humanamente cataclísmica? Em alguma doutrina que invoca sua fé nos proletariados, ou quem sabe no povo unido, nos cidadãos de bem, em que o estado mínimo ou o estado máximo possam encabeçar o início de uma nova era? Que podemos, munidos de crítica social, aniquilar o mal do mundo com nossa racionalidade e máquinas de guerra teóricas? Que existe um destino emancipatório no fim da História, um mais solidário, justo e igual? Você espera ou deseja, mesmo que secretamente, uma conversão do velho ser humano?

Mas, contrariando estes ideais, não será o testemunho frio da História, ou seja, o testemunho de sua indecência, suficiente para nos convencermos de que ela está mais próxima do tumulto do que do progresso? Além do mais, é sabido que alguns que utilizaram a palavra progresso sentiram-se justificados em provocar, como escreveu o filósofo Isaiah Berlin, sacrifícios humanos “no altar dos grandes ideais históricos”.

Em razão disso, quem sabe você seja o tipo de homem que já se convenceu que nosso modo de ser é mais animalesco do que desejaríamos, e que não há uma racionalidade ou solução final que nos liberte de nós mesmos? E, que, talvez, muito provavelmente, a própria pressuposição de que exista tal solução é destrutiva? Neste caso, é possível que você já tenha averiguado, pela experiência e observação, que o conflito, é primeiramente uma experiência subjetiva e diante desta constatação, você não ambiciona salvar o mundo inteiro porque você mal consegue salvar a si mesmo?

Logo, por todos estes motivos, seu idealismo se resume a um pragmatismo e o exercício da responsabilidade individual? Em outras palavras, sua crença limita-se no otimismo de que podemos ir adiante, reformando nossas imperfeições e desigualdades, respeitando as singularidades e complexidades alheias, e conseguindo ao menos certos bolsões de estabilidade e menor sofrimento? Que o amor nada tem de teórico, pois é uma ação do espontâneo?  Que o caos é inevitável porque quem cria as coisas do mundo é o homem mesmo, e como nos lembra as memórias da criatura do subsolo de Dostoievski “os homens são sempre homens e não teclas de piano” e, por isso, você igualmente concorda com a seguinte passagem:

Podeis cobri-lo de todos os bem terrestres, afoga-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão de-ló, e cuidar da continuação da história universal – pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada , há de cometer alguma ignomínia”

Reconhecer a diferença que acompanha as perguntas acima é compreender as díspares intenções que separam o revolucionário do reformista, ou nas palavras do historiador e sociólogo francês Raymond Aron, em sua obra O ópio dos Intelectuais, o homem poético do homem prosaico. Enquanto o poético busca o fantástico, o prosaico questiona o ordinário. Um se volta para a liberdade ideal e o outro para a liberdade real. A reforma é prosaica, a revolução é poética.

Embora a crítica principal de Aron dirija-se aos intelectuais franceses de sua época  –  que negligenciavam as consequências do projeto comunista, eram indulgentes com a violência soviética e mantinham uma fé dogmática em relação ao presságio da ideologia marxista-leninista da História  –  sua análise estende-se a qualquer intelectual que eterniza o mito da revolução e exerce uma política da conversão. Segundo Aron, “para o intelectual que busca na política uma diversão, um objeto de fé ou um tema de especulação, a reforma é tediosa e a revolução, excitante”.

O conceito de revolução, que representa a mudança poética, perdura pois, para Aron, “ele exprime uma nostalgia que vai durar enquanto as sociedades forem imperfeitas e os homens quiserem reformá-las”. O revolucionário – seja ele de esquerda ou direita – por ater se a um profetismo e saber absoluto, é impaciente com a insuficiência das reformas e não hesita em queimar etapas. Embora tal conceito tenha sido abraçado pela esquerda, os valores absolutos que inspiram o homem poético trocam de roupagem e podem encarnar a tradição, a família e a nação, bem como o progresso e a igualdade.

Mas, qual é o raio de ação das ideias revolucionárias? A convicção poética leva o intelectual a crer que seu partido no poder é capaz de levar adiante um grande ideal e transformar radicalmente o cenário humano. Tamanha é a esperança que se deposita em tal realização, que o intelectual sacraliza a liberdade ideal, enquanto abraça o esmagamento da liberdade real. Não é raro encontrar indivíduos que reivindicam ampla democracia, garantia das liberdades constitucionais e o vigor do Estado de direito no país em que vivem, enquanto são permissíveis com sociedades que possuem, explicitamente, governos autocratas que burlam as regras para perpetuarem-se no poder. “Jogo duplo do rigor e da indulgência”, escreve Aron, ou seja, a permissividade é imediata quando determinado governo simboliza o mito da revolução.

A título de exemplo: por que aqueles que são oprimidos e explorados pelo o Estado ou pelo seu líder socialista não entram como indivíduos que merecem a solidariedade do radical de esquerda? Do mesmo modo, por que a liberdade que o radical de direita reivindica não se estende a liberdade social e, consequentemente, a laicidade do Estado? Ora, o respeito pelas liberdades individuais e pelos métodos pacíficos de governo não deveria ser um denominador comum entre os partidos?

Esquerda e direita são, na maioria das vezes, conceitos tão ocos quanto suas práticas. Serão de esquerda os que pedem dignidade para o povo chileno e não para o povo venezuelano? Serão de direita os que solicitam a volta da ditadura militar enquanto repudiam o sistema político cubano?  Este jogo duplo de rigor obriga-nos a suspeitar que a preocupação destes indivíduos não é a democracia, a liberdade ou, muito menos, a igualdade e sim uma espécie de ordem social abstrata e purificada.

Já o homem prosaico lida fundamentalmente com melhorias concretas e pessoas reais, não com entidades teóricas, categorias ou classes que pré-determinam as intenções ou natureza dos indivíduos. O reformista é dotado de ceticismo e pouca fantasia, por isso se atém ao que é possível e pacífico. Sua responsabilidade é com homens visíveis, não com seres coletivos. Seu julgamento funciona por comparação ao invés de maximização. O homem prosaico pode estar à esquerda ou à direita, como nota Aron: “socialista ou liberal, conservador ou progressista, o intelectual não fanático não ignora as lacunas do seu conhecimento. Sabe de que gostaria, sem nem sempre saber por quais meios nem com quais companheiros alcançá-lo.” O intelectual prosaico considera os fatos, os números e as probabilidades como questões relevantes, pois sabe que a economia moderna é inevitavelmente monetária e que, como diz Aron, “regime nenhum pode ignorar o egoísmo”.

Embora o ensaio político de Aron tenha sido escrito no século XX, em plena Guerra Fria, sua crítica vale para os novos “muros de Berlim”, que são erguidos mentalmente.  Não é apenas coincidência que a extrema direita que surge, aqui e em outros lugares é religiosa, explicitamente religiosa, afinal ela contrapõe-se a uma política ideológica que exerce outro tipo de fé, cuja tábua de mandamentos, embora secular, deseja pregar verdades autoevidentes. Os movimentos políticos contemporâneos expressam, de formas distintas, esperanças que desejam transcender a monotonia da vida como ela é. Estes blocos de coletivos fanáticos, perdidos em uma espiral conspiratória, rezam para seus falsos profetas e marcham com a missão de mudar o rumo do mundo. Logo, a disputa pelo poder do Estado tornou-se uma cruzada religiosa, uma mentalidade que crê, fielmente, que determinadas convicções políticas são: a verdade, o caminho e a luz. Crenças que se sustentam independentemente da materialidade dos fatos.

Agora, o que importa se o Deus é terrestre ou celestial? Se a posse do poder executivo se confunde com uma nova ordem de mundo, que se confunde com uma espécie de bem absoluto, que diferença faz a natureza dos gritos destas massas, quando ambas carregam as tintas em uma fé que resiste a qualquer argumento prosaico?  Aqueles que ainda não foram convertidos para essa espécie de política, assistem a tudo como se estivessem diante devotos; testemunham a tomada da discussão econômica e social por almas tribais iludidas por cantos de sereias.

Nem todos os homens querem gritar, como lembra uma passagem de Alexandre Soljenítsin, em seu célebre livro Arquipélago Gulag: “Na verdade só os revolucionários têm sempre as palavras de ordem na ponta da língua prontas a saltar, mas que dizer do pacato e simples homem comum, não implicado em nada? Ele não sabe, pura e simplesmente, o que é que deve gritar.

A União Europeia, no dia 19 de setembro deste ano, definiu que o Comunismo, assim como o Nazismo, não está em conformidade com o humanismo.  Por 535 votos a favor e 66 contra, ficou decidido que ambas ideologias estão em pé de igualdade pelos genocídios cometidos e o poder destrutivo que invocam. Para Aron, “quando admitimos a ignorância a respeito do que virá ao final e a legitimidade parcial das causas contraditórias, os rigores de um dogmatismo que decide em nome da verdade se atenuam”. Afinal de contas, como é possível adularmos projetos que violaram de forma arquitetada a liberdade dos indivíduos de descobrirem por si só como cada um poderia contribuir com a melhora do mundo?

Ser audacioso, no cenário atual, em que os simplificadores parecem ser a maioria, é defender o homem do centro e brigar contra o seu desaparecimento. Centro, não como posição política e sim como atitude diante da política. Para isso é preciso abandonarmos o bonapartismo, isto significa respeitar a aritmética; julgar por comparação; debochar dos falsos profetas; desencantarmo-nos dos intelectuais e seus bordões opioides.

Há apenas um tipo de revolução que não sacrifica ninguém, aquela que começa por nós mesmos: ser religioso no lugar certo, ou seja, na intimidade de cada um; ser comunista na prática cotidiana; liberal com aqueles que discordamos e conservadores com a tolerância. “É um erro esperar de uma catástrofe triunfal a salvação, é um erro perder a esperança na vitória das lutas pacíficas”, defendeu Aron, portanto, devemos tentar voltar nossa atenção para as pessoas radicalmente moderadas. Será que conseguiremos restaurar o centro nas discussões políticas e nos curar da intoxicação opioide da política religiosa?

Celina Alcântara Brod

Celina Alcantara Brod é mestre e doutoranda em Filosofia Política pelo Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).