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A Receita Federal, o STF e a República que nunca será

por Gabriel Heller

Auditores não são pessoas muito benquistas em geral. Se houvesse um ranking de estima dos cidadãos por funcionários públicos, os auditores da Receita Federal provavelmente apareceriam no “pódio”. Não é de se estranhar, afinal, o fiel cumprimento de suas atividades envolve adentrar a privacidade financeira dos indivíduos, o que leva, quase inexoravelmente, a um conhecimento relativamente profundo sobre sua vida particular; pior: a depender do que for encontrado na apuração do Fisco, o resultado pode ser a cobrança de tributo não pago, acrescido de multa.

A única coisa que torna tolerável essa realidade é a crença de que estamos todos no mesmo barco, isto é, de que a Receita age indistintamente sobre todos os cidadãos, segundo critérios impessoais de fiscalização e com indistinto rigor nas investigações tributárias. Aceita-se que o Fisco aja sobre nossas finanças porque se entende que, em uma República, todos são iguais perante a lei e perante o Estado, cabendo a cada um contribuir, nos termos do ordenamento jurídico, para bancar as despesas públicas.

A essa altura, o autor destas linhas já é objeto de riso zombeteiro daqueles que lhe deram a honra da leitura dos dois primeiros parágrafos. E ninguém poderá culpá-los, já que as últimas semanas reforçam a noção de que os ideais republicanos seguem distantes de incorporação na vida pública brasileira. Quem acompanhou o noticiário recente tem motivos para desconfiar que ainda vivemos em tempos nos quais muitos trabalham para o privilégio de uma nobreza encastelada, cujos membros protegem-se mutuamente de modo a manter-se em um Olimpo inalcançável, imune a fiscalizações de qualquer sorte.

Com o vazamento – em tese ilegal – da informação de que um Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) tinha sua vida financeira objeto de apuração pela Receita e de que havia indícios de ilícitos penais, logo se assistiu a uma reação com acusações de toda espécie contra o Fisco, que estaria, entre outras coisas, a realizar investigações criminais que não lhe competem.

Em relação a qualquer cidadão, verificando que eventuais ilícitos fiscais identificados constituem, também, indícios de ilícitos penais, os auditores devem apontar essa situação e remeter a matéria aos órgãos competentes. A Receita Federal inclusive editou a Portaria nº 1750, de 12 de novembro de 2018, tratando sobre a “representação fiscal para fins penais”, cujo artigo 15 é claro ao dispor que as representações fiscais para fins penais serão encaminhadas ao setor competente do Ministério Público Federal.

O que se deve diferenciar aqui é a ilegalidade da divulgação de procedimentos fiscais, que merece ser objeto de averiguação e, possivelmente, de punição, da legalidade das atividades fiscalizatórias dos servidores públicos, das quais não se pode eximir qualquer pessoa a priori, nem mesmo, ou melhor, muito menos as altas autoridades da República. Nos últimos anos, todos somos testemunhas de grandes processos judiciais em que ficou comprovada a prática de crimes e ilícitos administrativos ou fiscais envolvendo agentes dos três Poderes; é dever não apenas desconfiar, mas efetivamente apurar o que fazem as pessoas politicamente influentes do país. Apenas déspotas se isentam de prestar contas.

Dando sequência ao alvoroço iniciado pela divulgação da apuração da Receita, incluiu-se estranhamente a matéria no ainda mais controverso inquérito das fake news, instaurado de ofício pelo STF, convertido em inquisidor-julgador. Alegando que os procedimentos de filtragem de agentes públicos a serem fiscalizados representavam “possibilidade de ocorrência de manipulação e desvio de finalidade”, o Ministro Relator determinou a suspensão dos procedimentos investigatórios do Fisco em relação aos 133 (cento e trinta três!) contribuintes alcançados pela averiguação e o afastamento dos auditores supostamente envolvidos no vazamento, a despeito de já estarem respondendo a processos administrativo-disciplinares no âmbito do órgão fazendário.

O rigor da medida cautelar, que sugere desconsideração da presunção de inocência dos agentes públicos, e a inclusão da questão no inquérito das fake news transmitem, voluntária ou involuntariamente, duas mensagens: 1) qualquer forma, legítima ou ilegítima, de se contestar as condutas dos Ministros do Supremo poderá ser incluída nesse procedimento investigatório conduzido de maneira bastante inquisitorial pela Suprema Corte; 2) não ousem, meros mortais, questionar e investigar as nobrezas togadas!

O meio jurídico em geral vem assistindo a esse show de contorcionismo judicial de maneira praticamente inerte – ou mesmo aplaudindo –, sendo nobre exceção a Procuradoria-Geral da República. Voltaram à voga expressões como “estado policialesco” e “devassa”, bem como comparações disparatadas com órgãos do regime nazista, lembrando os derradeiros momentos da Operação Satiagraha, em 2008 e 2009. Observam-se, aqui, dois pesos e duas medidas para se apoiar ou criticar vazamentos à imprensa, para se questionar a abertura ou não de investigações contra procuradores ou juízes. Não se defendem mais ideias, e tudo cheira a casuísmo.

De seu turno, o Tribunal de Contas da União (TCU) não quis “ficar de fora” e determinou à Receita que informasse os nomes dos servidores que fiscalizaram ou acessaram dados fiscais de autoridades das cúpulas do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, além de seus cônjuges e dependentes, nos últimos cinco anos, e requereu os números dos processos autuados nesse período. Além de se tratar de aparente alargamento das competências do TCU, a decisão parece mais um exercício de pressão e “aviso” a servidores dos órgãos de controle – quiçá mesmo aos do TCU.

Em outra frente, paralisaram-se todos os processos e investigações em curso que se baseiem em dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e Bacen)[1], e se passou novo recado aos membros dessas instituições: “órgãos de controle (…) não são poder”, disse o Presidente da Suprema Corte – como se isso alterasse, em alguma medida, as competências (deveres-poderes) que as normas lhes atribuem.

Juntem-se a tudo isso, por fim, processos judiciais iniciados por diversos magistrados, de todas as instâncias, quando sofrem críticas mais ácidas ou mais incisivas a sua atuação. Não são raras as decisões que, exalando corporativismo, condenam cidadãos comuns, jornalistas e órgãos de imprensa ao pagamento de vultosas indenizações por “violarem a honra e a dignidade” de membros do Poder Judiciário – os quais, à primeira vista, têm uma dignidade muito mais sensível do que a dos demais indivíduos, corriqueiramente desprezados em seus pleitos indenizatórios sob alegação de que houve “mero aborrecimento”.

O caso mais recente divulgado pela mídia teve como réus a Folha de São Paulo e o jornalista Frederico Vasconcelos, condenados a pagar R$ 20 mil a um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) pela afirmação, baseada em dados do próprio TJSP, de que o magistrado possuía uma das “maiores gavetas” – isto é, tinha uma baixa produtividade. O assunto foi objeto de excelente matéria da plataforma especializada Jota que permite constatar como as liberdades de expressão e de imprensa são menos protegidas quando os sujeitos em questão são membros do Poder Judiciário. Não à toa, um dos advogados críticos à decisão do TJSP entrevistados pela equipe do Jota pediu para não ser identificado.

Em belo artigo escrito para este Estado da Arte[3], Jorge Caldeira cita editorial de Júlio Mesquita publicado no Estado de S. Paulo de 3 de março de 1927, tratando sobre nossa então jovem República e seus maus hábitos:

“Ia-se criando entre nós, por incessante acumulação de privilégios odiosos, uma casta que para si mesma estabelecera uma justiça especial, a refletir-se como se fora um astro de apocalipse, um sol de sombra, nos preceitos tortuosos de um código de escravização.”

Agora, a partir de uma suposta transgressão que pode ser coibida e punida pelos meios legais existentes, o Governo, sob o pretexto de despolitizar a Receita, estuda medidas justamente para que a política entre de vez no órgão.

A Constituição, desprotegida, tornou-se instrumento de retórica que se presta a qualquer decisão que se queira tomar; as altas autoridades, mutuamente protegidas, formam um estamento encastelado que, desconectado da realidade, simula perplexidade com a polarização que ajuda a acirrar e mantém presente entre nós uma nobreza que deixou de existir apenas formalmente com o fim da monarquia. A República que completa 130 anos no próximo novembro, de República, tem pouco mais que o nome. Fala-se em “República Inacabada”[2], em “República que ainda não foi”[4]. Pelo andar da carruagem, talvez seja mais acurado falar em “República que nunca será”.

Notas

[1] Os problemas jurídicos da decisão foram muito bem examinados pelos Professores Conrado Hübner Mendes (USP), Estefânia Barboza (UFPR) e Miguel Godoy (UFPR). Cf. https://www.jota.info/stf/supra/a-decisao-de-toffoli-nao-e-politica-e-ilegal-mesmo-31072019. Acesso em 12/08/2019.

[2] Título de obra que traz três ensaios de Raymundo Faoro, publicada pela Editora Globo em 2007.

[3] https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/olha-embaixo-estupido-do-poder-moderador-ao-fim-do-populismo-no-brasil/

[4] Título de coletânea publicada pela Editora Fórum em 2018, com artigos de juristas oriundos da Escola de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Gabriel Heller

Gabriel Heller é advogado e Mestre em Direito.