História

A Reforma protestante e a gênese do Direito moderno

Gravura de um panfleto protestante de 1568: Lutero e outros protestantes suportam os ataques da igreja católica sob o Papa Leo X

por Davi Lago

Foi Nicolau Maquiavel (1469-1527) quem gerou a primeira grande ruptura no sistema ético tradicional que plasmava religião, moral e direito. Ele rompeu com as preocupações típicas do pensamento político medieval, sobretudo o problema da justa relação entre o poder dos príncipes e o da Igreja Católica. Para Maquiavel, a política deve ser guiada simplesmente por parâmetros políticos. O objetivo da política é o bem do Estado. Juridicamente, a consequência fundamental é a separação da política do direito, e do direito da moral. Em vez de ser a moral a regra e a medida das ciências e atividades sociais, a política passa, no seu campo, a ser independente e reguladora de todas as demais. Deu-se, então, o início da secularização e da nacionalização do direito, processo que ganharia impulso com a Reforma Protestante do século XVI.

A Reforma Protestante – que completa hoje 501 anos – exerceu um papel decisivo na modificação da cultura política europeia ao impulsionar alianças e inimizades entre príncipes, a formulação da mentalidade livre individualista, a valoração da consciência moral, a noção de tolerância, a liberdade de culto, entre outras contribuições. Neste artigo propomos uma breve análise de um aspecto particular: a gênese do Direito moderno. De modo mais objetivo, trataremos acerca de três implicações jurídico-políticas específicas da Reforma: (1) a redução da esfera jurídica na tradição luterana; (2) a ruptura completa com as estruturas estatais na tradição anabatista; e (3) o equilíbrio do poder colegiado na tradição calvinista; para então concluirmos com uma avaliação dos diferentes protestantismos na gênese do direito moderno.

Podemos partir de 31 de outubro de 1517, quando o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) teria afixado 95 teses contra o comércio de indulgências na porta da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha. Lutero questionou dogmas e práticas da Igreja Católica Apostólica Romana, sobretudo a venda de indulgências autorizadas pelo papa Leão X. No clássico estudo Martinho Lutero: um destino, Lucien Febvre afirmou que o protesto de Lutero não foi um ato isolado, mas “dirigia contra a indulgência uma acusação essencial, uma acusação de fundo: a de conferir aos pecadores uma falsa segurança”. Quentin Skinner destacou em As fundações do pensamento político moderno:

Para o reformador, a crença na eficácia das indulgências não passava da mais perversa entre as perversões de uma doutrina mais ampla que ele, na qualidade de teólogo, viera a considerar inteiramente falsa: a doutrina de que está em mãos da Igreja capacitar um pecador a alcançar a salvação, por meio de autoridade e sacramentos.

Reforma luterana: a não-essencialidade do direito  

Lutero percebeu, desde logo, a importância de contar com o apoio político dos nobres e soberanos dos diferentes principados existentes na Alemanha. Originalmente alheio a esse tipo de questão, o monge passou a desenvolver ideias sobre o direito e a escrever obras sobre questões políticas. De fato, o luteranismo interessou aos príncipes e soberanos territoriais, uma vez que, aderindo ao movimento reformista, ficariam livres da interferência, não apenas religiosa, mas também político-militar, do papa e do Kaiser em seus domínios. A doutrina luterana sustentou que na Igreja não existia nenhuma distinção hierárquica entre os fiéis, mas no reino temporal a desigualdade era necessária, sem a qual a ordem não poderia subsistir. Assim, as ideias luteranas estabeleceram uma aparente tensão.

Lutero advogava que a obediência à Lei de Deus não era um meio de se alcançar a salvação. Desse modo, a teologia do reformador libertou o cristão dos vínculos do direito canônico e tornou-o senhor de si. Contudo, segundo Lutero, essa liberdade só funciona no “reino de Cristo”, isto é, na esfera espiritual. É do ponto de vista da salvação que o cristão é totalmente livre em relação a qualquer lei, e a qualquer regra de direito. Mas, além do reino de Cristo, existe o “reino terrestre”, um reino dominado pelos “maus”. Essa é a noção geral da doutrina luterana dos dois reinos, exposta na obra Sobre a autoridade secular (1523). Nela, Lutero tratou do direito de forma marginal, reticente. A não-essencialidade do Direito na tradição luterana éindicativa das tendências da filosofia jurídica moderna: tampouco Hobbes, Locke, Hume ou Kant situaram no direito seu centro de interesse principal.

Reforma anabatista: ruptura radical com estruturas estatais

Segundo movimento influente da Reforma Protestante, a Reforma radical também ficou conhecida como Reforma anabatista, pois foi realizada por grupos que repudiaram o batismo infantil em favor do batismo de crentes. Essa ala da reforma é chamada de radical porque, diferentemente de Lutero e Zwinglio, que trabalharam em colaboração com as autoridades civis, os anabatistas defenderam a separação entre a Igreja e o Estado e rejeitaram a coerção secular nas questões religiosas. Poucos radicais compartilhavam das noções luteranas sobre os dois reinos. Estado e sociedade não eram claramente separados no pensamento radical. A sociedade era vista em termos religiosos e políticos.

Os radicais/anabatistas não possuíam pensamento homogêneo. Certo grupo preconizou uma orientação pacifista e se recusava a obedecer às ordens do Estado, quando contrárias à lei divina, mas adotava uma posição de não-resistência. Outros, no entanto, eram a favor da destruição da ordem social — má — e ensaiavam a instauração imediata da sociedade perfeitamente cristã. Essa ala do anabatismo desempenhou papel crucial nas revoltas camponesas que eclodiram na Alemanha em meados de 1520. A rebelião irrompeu de maneira espontânea, mas logo um teólogo anabatista ocupou sua liderança: Thomas Müntzer (1489-1525). Para Müntzer, a Reforma não poderia se limitar a assuntos litúrgicos e dogmáticos, mas deveria iniciar a construção de uma nova sociedade, radicalmente distinta da que existia.

Reforma calvinista: sistema de poder colegiado

João Calvino (1509-1564) temia essas tendências anárquicas entre os reformados e também percebeu a necessidade de produzir uma obra que introduzisse, de forma clara, os fundamentos da teologia reformada, justificando-os com base nas Escrituras e defendendo-os da crítica católica. Assim, em 1536 publicou sua obra magna, Instituição da religião cristã ou Institutas, com seis capítulos. A edição final ocorre em 1559, dessa vez com 80 capítulos divididos em quatro livros. O final da obra trata da Igreja e de seu relacionamento com a sociedade. John Witte Jr. defende que: “Calvino antecipou um número de concepções modernas de separação, acomodação e cooperação entre igreja e Estado que mais tarde dominariam o constitucionalismo ocidental” (The Reformation of Rights: Law, Religion and Human Rights in Early Modern Calvinism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p.76.).

Os textos legados por Calvino transmitiram a seus seguidores uma forma mais equilibrada de política civil e eclesiástica e uma jurisdição mais limitada da igreja. Calvino defendeu explicitamente uma forma de governo aristocrática ou mista no interior da igreja. Assim, a melhor forma de governo civil deveria ser rigorosamente paralela à eclesiástica.

Diferentes protestantismos e gênese do Direito moderno

De modo geral, a teologia dos reformadores colocou em xeque a relação entre o poder espiritual, exercido pelos sacerdotes (e, no grau mais alto, pelo papa), e o poder temporal, cujos detentores eram os príncipes e os reis. Marcelo Campos Galuppo explica que no âmbito jurídico este período de rupturas teve alguns resultados:

A separação entre direito e religião, ou seja, a dissolução do amálgama normativo ou do núcleo arcaico do normativo que caracterizava a Antiguidade . . .  Com a Reforma e a Contra-Reforma, os pensadores tentaram fundamentar o direito como uma esfera de existência distinta da religião. Hugo Grócio (1583-1645) fala inicialmente na existência do Direito Natural Racional (subjetivo), mesmo se Deus não existisse. A ordem jurídica e a ordem religiosa passam a ser concebidas como duas realidades distintas. (Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 62-63)

Avaliando, no entanto, as linhas específicas do nascente protestantismo podemos perceber diferentes nuances. Um breve olhar sobre as diferentes linhas do protestantismo revela a existência de diferentes “protestantismos”– muitas vezes conflitantes entre si. Desse modo, as diferentes tradições do protestantismo inicial legaram diferentes influências na gênese do Direito moderno.

Como pontuam historiadores do Direito como Michel Villey, Gustav Radbruch e Arthur Kaufmann, no pensamento luterano o direito perderá seu prestígio anterior, uma vez que, na Idade Média, a Igreja Católica estava impregnada de estruturas jurídicas. Assim, o direito é reduzido a um instrumento apenas da vida temporal. Essa concepção luterana do direito estabelece linhas importantes do direito moderno: sua finalidade é reduzida a um objetivo transitório e puramente instrumental, a repressão dos “pecadores”, a fim de preservar um pouco de ordem neste mundo terrestre. Como o direito é repressivo, um de seus aspectos essenciais torna-se a sanção, a coerção. Em Lutero, o direito deixa de ser algo a ser buscado e descoberto, trata-se de fazer respeitar as leis, seja a legislação positiva divina contida nas Sagradas Escrituras, seja a legislação positivas dos príncipes.

Já a postura radical dos anabatistas e o contraponto calvinista deixam também marcas na construção jurídica posterior. Na lição de Fábio Konder Comparato:

Calvino preconiza a instituição de um governo coletivo, pelo qual se busca evitar, com a atuação de diversos conselhos, o abuso de poder. Pode-se, aliás, afirmar que, ao regular a forma de organização da Igreja Presbiteriana, o Reformador de Genebra preparou, de certo modo, a criação da democracia representativa moderna. (Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 152)

No curso dos séculos seguintes, calvinistas europeus e americanos desenvolveram as intuições das Institutas numa robusta teoria constitucional de governo republicano, que deixou os pilares para o império da lei, os processos democráticos e a liberdade individual. Na tradição calvinista a estrutura dos governos políticos deveria ser autolimitada. Apesar de o reformador jamais sintetizar os variados elementos democráticos de sua teoria política, seus seguidores na França, na Holanda, na Inglaterra e nos Estados Unidos os englobaram numa teoria política democrática.

Davi Lago

Davi Lago é Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autor de Brasil Polifônico.