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Abelardo e Heloísa – sua correspondência

Abelardo e Heloísa surpreendidos pelo Mestre Fulbert (Vignaud, 1819)

por Gabriel Nocchi Macedo

Pedro Abelardo (Le Pallet, 1079 – Chalon-sur-Saône, 1142), um dos maiores nomes da filosofia medieval, professor em Laon e Paris, ilustrou-se sobretudo nos campos da escolástica, da lógica e da teologia. Em 1117, iniciou uma história de amor com Heloísa, jovem de uma inteligência e cultura excepcionais, da qual nasce um filho, Astrolábio. O romance conhece um fim trágico no ano seguinte, quando Abelardo foi castrado às ordens do tio de Heloísa. O filósofo torna-se monge em Saint-Denis e incita sua amada a entrar no monastério de Argenteuil. Os dois se reverão, não mais como amantes, mas como irmãos de fé, anos mais tarde, quando Abelardo cede a Heloísa a chefia do monastério do Paracleto (“o Consolador”), que ele fundara perto de Troyes. A correspondência entre Abelardo e Heloísa, da qual se conservam oito cartas, conferiu à sua história uma fama incomparável, e admiração de romancistas, poetas e filósofos. Na carta III, traduzida aqui, Abelardo, enfraquecido pelas vicissitudes que enfrentara, pede o auxílio de Heloísa – outrora amada no mundo, agora amada em Cristo – por meio da oração. 

Heloísa e Abelardo em um manuscrito do Roman de la Rose, c. 1370 (Chantilly, Musée Condé, ms. 482/665, f. 160v)

A Heloísa, sua caríssima irmã em Cristo, de Abelardo, seu irmão em Cristo.

Após a nossa conversão do mundo[1]a Deus ainda não te escrevi nenhuma palavra de consolo ou exortação; mas isso não se deve imputar à minha negligência, mas à tua prudência, na qual eu sempre confio plenamente. De fato, não acreditei que precisasses de minhas palavras, tu a quem a graça divina concedeu em abundância tudo o que é necessário afim que possas ensinar, tanto por palavras quanto por exemplos, aqueles que erram, consolar os pusilânimes, exortar os tépidos e assim agir como te habituaste há pouco tempo, quando obtiveste a posição de prioresa sob a abadessa. Agora provês com tanta diligência às tuas filhas, quanto outrora às tuas irmãs, e isso basta a convencer-me que minha doutrina ou exortação te são de todo supérfluas. Porém, se à tua humildade não parece ser assim e se requeres meu magistério e meus escritos sobre assuntos que concernem a Deus, escreve-me o que queres saber e responderei como Deus me permitir.

Assim dou graças a Deus que, inspirando em vossos corações a ânsia sobre os graves e assíduos perigos que me ameaçam, vos fez partícipes da minha aflição, de maneira que, graças ao auxílio das vossas orações, a divina compaixão me protegerá e em breve esmagará Satanás sob os nossos pés.

Sobretudo por isso, irmã outrora cara no mundo, agora caríssima em Cristo, demorei a mandar-te o saltério que me pediste com insistência. Assim farás, sem dúvida alguma, continuamente um sacrifício de preces ao Senhor pelos nossos erros, grandes e muitos, e pela iminência quotidiana dos perigos que me ameaçam.

Nós dispomos de muitos testemunhos e exemplos de quanta força obtêm junto de Deus e dos santos as preces dos seus fiéis, e sobretudo as das mulheres por seus amados e as das esposas por seus maridos. O apóstolo, que se dedicou a esse assunto com diligência, urge-nos a rezar ininterruptamente[2]. Lemos que Deus disse a Moisés: “Vai e deixa que se inflame a minha ira”[3]e a Jeremias “Não rezes por esse povo…e não te oponhas a mim”[4]. Com essas palavras Deus mesmo manifestamente declara que as preces de seus santos põem um certo freio à Sua ira, pelo qual ela é certamente refreada, de maneira que ela não os castiga com tanta severidade quanto merecem as culpas dos pecadores. A justiça conduz Deus, como por vontade própria, à vingança, mas a súplica dos amigos O apazigua e O retém, quase contra a Sua vontade, por alguma força. Bem entendido se diz a quem reza ou rezará: “Deixa-me e não te oponhas a mim”[5]. O Senhor ordena que não se reze pelos ímpios. Se o justo reza, mesmo quando o Senhor o proíbe, ele recebe Dele aquilo que pede e muda a sentença do Juiz enfurecido. A propósito de Moisés, lê-se: “E o Senhor arrependeu-se da maldade que dissera que faria contra o seu povo”[6].  Em outra parte, é escrito a propósito de todas as obras de Deus: “Ele disse, e elas foram criadas”. Nessa passagem se recorda que ele anunciou o tormento que o povo merecera e pela força da prece ele foi impedido de fazer o que dissera.

Pensa então em quão grande é a força da oração, se orarmos como nos ordenam, já que o profeta obteve pela oração aquilo pelo qual Deus o proibiu de orar e O desviou daquilo que dissera. Ao Senhor diz um outro profeta: “Quando estiveres enfurecido, recordar-te-ás da misericórdia”[7]. Que os príncipes terrestres escutem essas palavras e reflitam, eles que, na hora de ordenar e de julgar, se mostram mais obstinados do que justos e se envergonham de parecer remissos se agem com misericórdia, mentirosos se mudam sua decisão, se não cumprem o que decidiram tolamente, ou se corrigem suas palavras com ações. Com razão eu os comparei a Jefté que tolamente jurou de matar sua única filha e ainda mais tolamente cumpriu seu juramento.[8]Àquele que deseja fazer parte da família do Senhor, ele diz-Lhe através do Salmista[9]: “Misericórdia e justiça eu canto a Ti, Senhor; a misericórdia, como está escrito, vence a justiça”[10], refletindo sobre o que Escritura avisa em outra passagem: “Justiça sem misericórdia àquele que não tem misericórdia”.[11] O próprio Salmista meditando diligentemente, escutou a súplica da mulher de Nabal do monte Carmel e retirou, movido pela misericórdia, o juramento que fizera, movido pela justiça, de destruir o seu marido e a sua casa. Ele preferiu assim a oração à justiça e a súplica da esposa apagou o crime do marido.

Aqui, irmã, há para ti um exemplo: se a prece dessa esposa obteve tanto de um homem, certamente a tua prece por mim muito pode obter de Deus. Além disso, Deus que é nosso pai ama seus filhos mais do que Davi amava a mulher suplicante. Ele era sem dúvida piedoso e misericordioso, mas Deus é a piedade e a misericórdia mesmas. E a mulher que o suplicou era pagã e laica e não unida ao Senhor pela profissão da santa devoção. Se não tens força para alcançar o que pedes, o santo convento de virgens e de viúvas que vive contigo obterá aquilo que sozinha não podes obter. A Verdade assim diz a seus discípulos: “Onde dois ou três se reúnem em meu nome, eu estou junto a eles”.[12]E mais: “Tudo o que dois de vós pedirem juntos isso será concedido pelo meu Pai”.[13]Quem não vê quanta força tem a contínua prece da santa congregação junto de Deus? Se, como o apóstolo afirmou, “muito vale a oração assídua de um homem justo”[14], o que se pode esperar da comunidade da santa congregação?

Sabes, caríssima irmã, tendo lido a homilia XXXVIII do beato Gregório, quanta ajuda a prece dos irmãos trouxe a bom tempo a um monge, mesmo se ele não a quisesse e se opusesse. A tua cultura não ignora o que está cuidadosamente descrito nessas páginas: levado ao extremo, quanta ânsia dos perigos sua pobre alma sofreu e com quanto desespero e desgosto da vida ele quis impedir seus irmãos de rezar.

Quem dera que tu e o convento de tuas santas irmãs vos dedicásseis com mais confiança à oração, para que Deus me guarde vivo para vós. Graças a Ele, como atesta Paulo, mulheres receberam de volta seus homens mortos pela ressurreição. Se folhares as páginas do Velho e do Novo Testamento, descobrirás que os maiores milagres de ressurreição foram mostrados somente, ou, na maioria das vezes, a mulheres, feitos ao favor delas ou por elas. Assim, o Velho Testamento recorda dois homens redivivos pelas súplicas maternas, como testemunham Elias e o seu discípulo Eliseu[15].

O Evangelho relata as ressurreições de três mortos realizadas pelo Senhor, que ocorreram sobretudo na presença de mulheres, como recordamos acima, o que confirma o dito do apóstolo: “As mulheres receberam seus mortos ressuscitados”[16]. Cristo, comovido pela compaixão, devolveu um filho ressuscitado à sua mãe em frente à porta da cidade de Naim.[17]Também seu amigo Lázaro, pela súplica de suas irmãs Maria e Martha, Ele ressuscitou. Ele concedeu a mesma graça à filha do chefe da sinagoga a pedido de seu pai: “as mulheres receberam seus mortos graças à ressurreição”. Como ela, ressuscitada, recebeu de volta seu próprio corpo, assim as mulheres receberam os corpos dos seus. E essas ressurreições foram feitas sem muitas súplicas. Vossas múltiplas orações obterão facilmente a conservação da minha vida. Tanta é a vossa abstinência e a vossa temperança consagradas a Deus! Tão gratas Lhe são essas virtudes que Ele será propício à vossa oração. Talvez a maioria daqueles que foram ressuscitados não fossem fiéis. Diz-se que nem a viúva mencionada tinha fé, mas o Senhor ressuscitou-lhe o filho, embora ela não o pedisse. Nós, porém, não somente a pureza da fé nos une, mas também nos liga a vida religiosa.

Agora, no entanto, devo deixar de lado o sacrossanto convento da vossa comunidade, onde a devoção de tantas virgens e viúvas serve continuamente ao Senhor, e vir a ti somente, cuja santidade, eu não tenho dúvida, pode obter muito junto a Deus. E tudo que podes fazer, deves fazê-lo principalmente por mim, sobretudo agora que estou sofrendo as mazelas de tanta adversidade. Lembra-te sempre, então, nas tuas preces, daquele que é teu e zela com tanta confiança a tua oração quanto reconheceres que é o teu dever; por isso mesmo, a tua prece é mais aprazível Àquele que devemos orar. Ouve, imploro-te, com os ouvidos do coração o que com mais frequência ouviste com os ouvidos do corpo. Nos Provérbios está escrito: “Uma esposa diligente é uma coroa para o seu esposo”[18], e mais, “Quem encontra uma boa mulher, encontra o Bem e recebe a felicidade do Senhor”[19], e ainda, “A casa e a riqueza se recebem dos pais, mas uma esposa prudente se recebe do Senhor”[20]. E diz o Eclesiastes: “Feliz é o marido de uma boa mulher”[21], e logo depois, “Uma boa mulher é uma boa sorte”[22], e, de acordo com a autoridade apostólica, “O homem que não crê é santificado pela mulher de fé”[23].

Edmund Leighton, “Abelard and His Pupil Heloise” (1882)

A divina graça deu uma prova especial disso no nosso reino do Francos quando o rei Clóvis se converteu à fé do Cristo mais pelas preces de sua esposa que pelas prédicas dos santos.[24]Todo o reino foi assim submetido às leis divinas, de modo que o exemplo dos soberanos levasse também os súditos à assiduidade da oração. A parábola do Senhor nos convida veementemente à assiduidade da oração: “ Se continuar a bater à porta, digo-vos que, se ele não lhe der [os pães] por que é seu amigo, levantar-se-á, por causa da importunação, e lhe dará tudo o que lhe for necessário, etc.”[25]. Foi certamente graças a essa, digamos, “inconveniência” da oração, como recordei acima, que Moisés amansou a severidade da justiça divina e mudou a sua sentença.[26]

Sabes bem, amadíssima, quanto sentimento de caridade o teu convento mostrava na oração quando eu estava junto de vós. Cada dia, ao fim do ofício, oferecíeis ao Senhor esta súplica especial por mim. Tendo entoado o refrão com o seu verso, juntáveis a esses as preces e a oração desta maneira:

Responsório: Não me abandones, não te afastes de mim, Senhor.
Verso: Acorre sempre à minha ajuda, Senhor.
Preces: Salva o teu servo, Senhor, que espera em Ti. Escuta minha prece, Senhor, e que meu clamor chegue a Ti.
Oração: Deus, que através do teu servo te dignaste a reunir as tuas servas em teu nome, pedimos que dês, a ele como a nós, perseverança na tua vontade. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, a sua graça conosco.

O socorro da vossa oração me é ainda mais necessário, agora que estou ausente, pois me oprime uma ânsia maior quanto aos perigos que me cercam. Peço implorando, então, e imploro pedindo que, na minha ausência, me façais sentir quão verdadeira é a vossa caridade para com aquele que é ausente. Ao fim do ofício acrescentai o canto dessa oração particular:

Responsório: Não me abandones, Senhor, Pai e Governante da minha vida, para que eu não desabe perante os meus adversários, para que não se ria de mim o meu inimigo.
Verso: Toma as armas e o escudo e acorre à minha ajuda, para que não se ria de mim o meu inimigo.
Preces: Salva o teu servo, Senhor meu Deus, auxílio do Santuário, que espera em Ti. Vem a ele e de Sião o protege. Sê-lhe, Senhor, uma fortaleza perante o inimigo. Senhor, escuta a minha prece e que o meu clamor chegue a Ti.
Oração: Deus, que através do teu servo te dignaste a reunir as tuas servas em teu nome, pedimos que o protejas de toda adversidade e que o devolvas incólume às tuas servas. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, a sua graça conosco.

Se o Senhor me entregar às mãos dos meus inimigos, se eles me dominarem e me matarem, ou se, por qualquer caso, eu tomar o caminho de toda a carne humana longe de vós, peço que tragais o meu corpo, onde quer que esteja enterrado ou exposto, ao vosso cemitério, onde as vossas filhas, irmãs em Cristo, possam ver amiúde o meu sepulcro e rezar mais intensamente por mim. Pois creio que não exista para uma alma dolorida, desolada pelo erro dos seus pecados, um lugar mais seguro e salutar do que aquele que é consagrado ao Paráclito, ou seja ao Consolador, e que Dele recebeu o seu nome. Também estimo que não exista um local melhor para uma sepultura cristã, entre todos os fiéis, do que perto de mulheres devotas ao Cristo. Foram de fato elas que, solícitas, vieram à tomba de Jesus Cristo com unguentos preciosos, seguiram-na e velaram em torno do sepulcro e choraram a morte do Esposo, como está escrito: “As mulheres sentadas perto do túmulo lamentavam-se chorando pelo Senhor”[27]. Essas mulheres foram primeiro consoladas pela aparição do anjo e pelo anúncio da ressurreição. Depois, Ele lhes apareceu duas vezes, pois mereceram sentir a alegria da Sua ressurreição e tocá-Lo com suas mãos.

Enfim, antes de tudo peço a vós, que agora vos preocupais demasiadamente com o perigo que ameaça o meu corpo, que vos preocupeis, após a minha morte, sobretudo da salvação da minha alma e que mostreis ao morto o quanto amastes o vivo, pelo único e especial auxílio de vossas preces.

Vive, fica bem, e que vivam e fiquem bem as tuas irmãs. Vivei, mas em Cristo, e peço que vos lembrai de mim.

Detalhe do túmulo de Abelardo e Heloísa no cemitério Père-Lachaise, Paris

[1]O latim saeculum designa aqui a vida laica, fora das ordens religiosas.
[2] Alusão a Paulo.
[3] Êxodo 32:20.
[4] Jeremias 7:16.
[5] Êxodo 32:10.
[6] Êxodo 32:14.
[7]Habacuque 3:2.
[8] Juízes 11:1-40.
[9] Ou seja, Davi.
[10] Salmo 100:1.
[11] Tiago 2:13.
[12]Mateus18:20.
[13]Mateus 18:19.
[14] Tiago, 5:16.
[15]III Reis 17:17-24 e IV Reis 4:32-37.
[16] Hebreus 11:35.
[17] Lucas 7:15.
[18] Provérbios 12:4.
[19] Provérbios 18:22.
[20] Provérbios 19:4.
[21] Eclesiastes 26:1.
[22] Eclesiastes 26:3.
[23]I Coríntios 7:14.
[24]Clóvis I (c.466-511), primeiro rei do Francos, cresceu pagão e converteu-se ao arianismo, religião majoritária na Gália. Casou-se com a princesa católica Clotilde da Borgonha que o persuadiu, com grande dificuldade, a deixar-se batizar na fé católica.
[25]Lucas 12:5.
[26]Referência ao episódio do bezerro de ouro, cf. Êxodo 32:10-14.
[27] João 20:11

Gabriel Nocchi Macedo

Gabriel Nocchi Macedo é doutor em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidade de Liège (Bélgica) e leciona atualmente na Universidade do Michigan.