Política

Duas hipóteses fracassadas e o realismo que nos resta

por Alberto Aggio

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em parceria com o Horizontes Democráticos

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Duas hipóteses sobre a conjuntura política brasileira, ao que tudo indica, não deverão ser confirmadas: o impeachment de Bolsonaro e a formação de uma “frente democrática” eleitoralmente estruturada e com expectativa de poder. O movimento pelo impeachment não produziu, até o momento, combustão suficiente para ganhar a sociedade e impor-se institucionalmente. A proposta de “frente democrática” contra Bolsonaro não se conectou com o movimento do impeachment e tampouco parece contar com atores inclinados a apoia-la, capazes de lhe dar potência política e eleitoral. Ambas hipóteses parecem, enfim, não terem capacidade nem circunstância para se tornarem efetivas. Quiçá possam ser mantidas em seu espírito fundante, animando ações imediatas e expectativas de médio prazo.

A inviabilização do impeachment ficou explicita na rejeição à emenda do voto impresso, expressando a capacidade do governo em angariar apoio na Câmara dos Deputados, locus de origem institucional de um processo de impeachment do presidente da República. O impeachment não tem como ser instalado com a base de apoio que o presidente demonstrou poder contar. O que especialistas e políticos experientes já divisavam acaba de ser comprovado e o impeachment só passará em função de uma improvável hecatombe no cenário político. A oposição estará obrigada doravante a compreender que só poderá chegar à próxima estação e desembarcar se tiver muito sentido de finalidade para superar o desastre em que o País se meteu.

O que nos leva à segunda hipótese delineada acima. A proposição, concretização e mobilização de uma “frente democrática” contra um governo ou regime autoritário é uma fórmula política que tem história, razões e justificativas.[1] Ela foi originalmente pensada tendo em vista o estabelecimento de regimes fascistas ou autoritários nos quais as forças democráticas foram derrotadas e colocadas na defensiva. O reconhecimento de tal condição acabou por impor a aceitação da formação de algum organismo, oficial ou não, orgânico ou não, que pudesse agregar forças políticas contra a violência, a repressão, a agressão e a ameaça impostas por tais regimes. A origem dessa fórmula política está no combate ao fascismo em meados dos anos 30, com a organização das “frentes populares”, mas foi reelaborada na luta contra os regimes autoritários, em especial os latino-americanos. O Brasil é um case dessa estratégia no contexto de luta contra o regime ditatorial imposto em 1964.

Recolocar a estratégia de “frente democrática” nos dias de hoje, repondo, de certa maneira, os termos do enfrentamento virtuoso contra a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980, pode ser vista como uma proposição mais realista do que uma “frente de esquerda” — que busca a afirmação de identidades e de projetos alternativos de sociedade — porque carrega uma memória positiva e pode ser mais produtiva na luta política. Mas deve-se reconhecer também que é uma proposta que apresenta uma certa coloração passadista de difícil aplicabilidade num contexto político e institucional completamente diferente de pluralismo competitivo e de consolidação da chamada “democracia de audiência”[2]. O cenário político hoje é, portanto, muito mais complexo e difuso do que o de contraposição a um regime de espaços políticos fechados e de repressão aberta.

O pluralismo competitivo, uma vez instalado, não é terreno favorável à proposta de “frente democrática”. Os atores políticos, coletivos ou individuais, veem nele um ambiente político no qual podem disputar e vencer, carreando para seus apoiadores e para os projetos estruturais que defendem os institutos de poder e a máquina do Estado. A “democracia de audiência” tornou-se, por sua vez, a forma e o método pela qual a política se conecta com a sociedade por meio de vias comunicacionais que vão da TV às redes midiáticas, especialmente estas últimas. Isso produziu uma “metamorfose” na prática da política nas sociedades hodiernas. Nessa nova morfologia, importa mais a afirmação da imagem e/ou linguagem de um ator político (aferidas por pesquisas diárias) do que os partidos políticos ou qualquer projeto de sociedade[3].

O resultado é que pluralismo competitivo e “democracia de audiência” induzem mais à competição, disputa e dispersão de forças políticas, que se entendem vocacionadas à conquista do poder, do que à disposição para a unidade política de atores de coloração ideológica diferente visando retirar as forças democráticas da situação defensiva em que se encontram e leva-las a posições de poder por vias democráticas.

Não é casual, portanto, que ao invés de se caminhar para a unidade das oposições, uma vez que quase a totalidade delas julga o governo Bolsonaro como autoritário ou mesmo fascista, ampliou-se o número de postulantes à sucessão de Bolsonaro. Os apelos à formação de uma “frente democrática” parecem ser apenas retóricos e, na melhor das hipóteses, considerados para o embate do segundo turno em 2022, admitindo-se que Bolsonaro ainda se manterá competitivo até 2022. A proposta de “frente democrática”, com o passar do tempo, ficou visivelmente sem articuladores e perdeu substância como uma possível estratégia operacional, fazendo com que os principais postulantes contra Bolsonaro passassem a se movimentar a partir de cálculos e lógicas independentes entre si.

Mesmo nessa situação, não há outro caminho para o conjunto da sociedade senão isolar Bolsonaro como o candidato a ser batido. Isso é importante, inclusive para impedir as permanentes ameaças antidemocráticas ao processo de sucessão acionadas pelo presidente da República e assegurar a legitimidade do pleito. As forças democráticas terão que se tratar nas condições que estão dispostas, com as responsabilidades e os cuidados necessários diante dessas circunstâncias. Como haverá um candidato que postulará a reeleição, há uma dimensão plebiscitária na eleição para presidente da República. Para além dos nomes em disputa, há que se ultrapassar as ameaças de cancelamento da democracia e parar o processo de destruição institucional que se impôs nos últimos anos.

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(Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)

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Notas:

[1] Problematizei esse tema em alguns artigos, a saber, AGGIO, A., “Aporias da ‘frente democrática’” in O Estado de São Paulo, 17.11.2019: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,aporias-da-frente-democratica,70003091839; AGGIO. A. “O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022”: https://horizontesdemocraticos.com.br/o-fim-da-guerra-e-a-antecipacao-da-batalha-por-2022/. Ambos podem ser acessados em https://horizontesdemocraticos.com.br/.

[2] MANIN, Bernard. The Principles of Representative Government. New York: Cambridge University Press, 1997. Especialistas que lidaram com essa referência em traduções diversas para o português utilizam-se também as expressões “democracia de plateia” ou “democracia de público”; aqui mantivemos uma proximidade maior com a expressão original “audiency democracy”.

[3] DIAMANTI, Ivo. Democrazia ibrida. Roma: Laterza, 2014. Diamanti examina a transição na Itália para a “democracia de audiência”, considerando ainda as sobreposições com a situação anterior de “democracia de partidos”, daí a noção de “democracia híbrida”. A situação brasileira é, em nosso entendimento, distinta, especialmente pela fragilidade dos partidos.

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Alberto Aggio

Alberto Aggio é Professor Titular de História da UNESP e editor do https://horizontesdemocraticos.com.br/.