CinemaSociedade

Andrei Tarkovski: o homem que viu um anjo

por Astier Basílio

Estão todos prontos?”. A pergunta é feita pelo cineasta Andrei Tarkovski. Aos 52 anos, está realizado seu sétimo e último filme. Há uma intérprete ao seu lado que repete a pergunta em sueco. Vê-se um horizonte com grama e árvores. Ao fundo, uma bela casa de madeira. À esquerda, avistam-se as câmeras e demais integrantes da equipe de filmagens. “Vamos tocar fogo”, ordena o diretor. As imagens fazem parte do set de O Sacrifício. Na sequência, ouvimos a voz de um locutor, em off, anunciar em russo: “Andrei Tarkovski. O diretor russo mais celebrado do mundo. Ainda em vida foi chamado de gênio…“. 

Fachada do prédio da Nova Galeria Tretyakov.

É desta forma que se inicia o filme Andrei Tarkovski – é difícil ser um Deus. O título é uma referência a um romance homônimo escrito pelos irmãos Arkady e Boris Strugatsky, autores de Piquenique na estrada, narrativa da qual se originou o filme Stalker. O documentário foi apresentado e produzido, em 26 de fevereiro, por um dos mais populares canais abertos da televisão russa, a TV 1. Não foi a única produção a celebrar Tarkovski este ano. Em 13 de junho, a Rádio Liberdade, da Rússia, levou ao ar o programa, que também pôde ser visto no Youtube, O Homem que viu um Anjo, longa entrevista com o ator Nikolai Burlyayev que fez o papel principal em A Infância de Ivan

Em 1985, quando filmou seu último trabalho, na Suécia, Tarkovski havia um ano, anunciara que não regressaria mais à União Soviética. Quando soube que o filho decidira emigrar, o poeta Arseny Tarkovski tinha 76 anos. Enviou-lhe uma carta pungente e dolorosa. Chorou ao terminar de escrever. Parecia antever que nunca mais se reencontrariam, como de fato ocorreu. “Volte o mais rápido, filhinho. Como tu podes viver sem a língua russa, sem a natureza do teu país (…) eu sinto muitas saudades tuas, estou triste e aguardo teu regresso”. 

Tarkovski não viveu nem dois anos no exílio. Morreu de câncer em Paris, em dezembro de 1986, com a idade de 52 anos. O velho bardo Arseny sobreviveu à perda do filho e morreu três anos depois. Há dois meses, completaram-se 35 anos da emigração de Tarkovski à Itália. Passado todo este tempo, como é que a Rússia, que experimentou tantas mudanças nas últimas três décadas, vê hoje em dia o legado de um de seus mais importantes cineastas? 

Profeta de Chernobyl  

No ano em que Tarkovski morria na França era inaugurada em Moscou a Nova Galeria Tretyakov. O prédio, localizado próximo ao Parque Gorky, ocupa uma área de 12 mil metros quadrados. Quem entra se impressiona com o cartaz que se estende por toda fachada do edifício. A imagem em preto e branco de Tarkovski, de perfil, e usando boina, é percorrida pelo título: Voo livre. Trata-se de uma exposição dedicada ao cineasta com curadoria de Polina Lobachevskaya. Fica em cartaz até o dia 22 do mês que vem. 

Embora haja trabalhos de outros artistas, tais obras convergem para o universo de Tarkovski. Impressiona, por exemplo, na parte dedicada ao Stalker, quando também é exibido material de outro artista, a fotógrafa Victoria Ivleva. Foi montado um corredor, no qual se penduraram retratos, em paredes paralelas. À esquerda, estão dispostas imagens do filme e bastidores das gravações; à direita, paisagens devastadas que em tudo lembram o ambiente apocalíptico encenado na película, muito embora o que as imagens retratem não seja ficção: são as primeiras fotografias feitas do reator da usina de Chernobyl após o desastre. É como se aquela arquitetura de ruínas compusesse um mesmo cenário. A semelhança assusta. 

Fotografia do reator de Chernobyl por Victoria Ivleva.

Em um dos painéis, logo na entrada, o visitante se depara com fotografias de grandes cineastas de todo o mundo que celebraram o talento e a genialidade de Tarkovski.  Sobem pela parede escura em letras prateadas depoimentos de Kurosawa, Lars Von Trier, Ingmar Bergman, Wim Wenders. Dentre os diretores russos quem marca presença é Alexandr Sokurov. O único não cineasta a fazer parte daquele muro de louvações é o filósofo Jean Paul Sartre.  

Game, festival, tela grande e socos

Como se sabe, a ação de Stalker se passa, em um período indeterminado no futuro, após o mundo ter vivenciado uma catástrofe. A produção é de 1979. O acidente na usina atômica em Chernobyl ocorreu em 1986. A conexão entre estes dois eventos, flagrado na exposição, também serviu de base para um jogo de videogame. S.T.A.L.K.E.R.: Shadow of Chernobyl é de 2007 e foi posto no mercado por uma desenvolvedora de games da Ucrânia, a GSC Game World.  Ganhou uma prequela, em 2008, e uma sequência, em 2010.  

Praticamente, todos os anos, o público russo tem a oportunidade de ver Tarkovski na tela grande. Já está na décima terceira edição o festival Zerkalo (que significa “espelho”, em russo). Este ano, exibiu-se Stalker, em comemoração aos 40 anos de seu lançamento. Há dois meses, uma ação da tradicional revista de cinema Iskusstvo Kino, com apoio do governo, fez com que outra obra de Tarkovski, Espelho, entrasse em cartaz por 37 cidades de toda a Rússia. 

Vez por outra, Tarkovski é assunto nas conversas com personagens legendários da história do cinema russo em programas de televisão. Um exemplo? O ator Vasily Livanov, atualmente com 84 anos, famosíssimo por protagonizar a série soviética Sherlock Holmes. Em conversa com o entrevistador ucraniano Dmitry Gordon, foi-lhe relembrado um episódio escrito por Tarkovski em sua autobiografia. “Ele escreveu que um dia ficou bêbado e brigou com o senhor, mas não se lembra a razão”. O ator disse que “não era vantajoso para ele lembrar, mas eu me lembro”. Ao ser perguntado o motivo da briga, Livanov evadiu-se. “Não gostaria de falar sobre isso, ele foi o culpado e dei-lhe um direto no queixo”.

Museu em Moscou?

Quem fez questão de criticar a forma como a memória de Tarkovski é cuidada na Rússia foi o crítico de cinema russo Anton Dolin, um dos mais influentes críticos de cinema do leste europeu, com críticas assinadas para publicações como a The Hollywood Reporter. “Eu sempre aproveito as ocasiões para falar de Tarkovski para lembrar de alguns fatos vergonhosos. O primeiro, e mais importante fato vergonhoso, é que até agora, em Moscou, ninguém construiu o museu Tarkovski”, opina. 

O comentário foi feito em um programa de rádio, em 2017, àquela altura, se referia a uma mostra de filmes de Tarkovski que esteve em cartaz em Moscou, e Dolin atuou como debatedor. Para o crítico, um museu desta natureza seria referência para os astros de Hollywood, e turistas em geral, que viessem à capital russa. “Um fato que talvez possa surpreender a alguns de vocês, mas para o mundo, a Rússia é mais o país de Tarkovski do que, sei lá, Malevich, Tchaikovsky, Pushkin. É possível que Dostoiévski e Tolstói possam se comparar a Tarkovski”

Em março deste ano foi publicado uma matéria na qual se mencionava que há uma proposta encaminhada ao Ministério da Cultura da Rússia para que o museu venha a ser inaugurado em 2022, ocasião em que se celebrará os 90 anos de nascimento de Andrei Tarkovski. 

Modinha, senha e padre 

Antigamente, na Rússia, quem não tivesse assistido aos filmes de Tarkovski era como se não pudesse ser uma boa companhia. O diretor russo funcionava como uma espécie de senha. No começo da década, um tópico de discussão na rede social VK, pode nos dar a perspectiva de como o cineasta tem sido visto por aqui. Numa comunidade feita em sua homenagem, escreveram, em tom de reprimenda: “Tarkovski agora virou moda”. Houve 99 comentários no intervalo entre 2008 e 2015. 

Espectadora assiste ao filme Solaris.

Melhor deixar que Tarkovski, como se diz, vire ‘moda’, do que proibi-lo ou esquecê-lo”, escreveu a usuária Marina Bovt. “Entrou em moda admirar Tarkovski, mas não assistir aos seus filmes”, comentou Dmitry Korolyov. A opinião mais dura contra os neo-admiradores veio de Tatyana Ermishina. “Me parece que nos anos 80 Tarkovski era considerado um diretor da moda apenas para aqueles que queriam esconder sua estupidez e vazio sob o disfarce de conhecedor de cinema de arte. Tal como agora”. 

Por fim, em que lugar do mundo, senão na Rússia, um sacerdote religioso, numa palestra com fiéis vai receber a seguinte pergunta da plateia: “Amanhã é aniversário de Tarkovski. Qual sua relação com o cinema dele”. Isto aconteceu com um bispo da Igreja Ortodoxa, Andrey Tkachev. E o religioso discorreu longamente sobre cinema para uma plateia de crentes.  

Por estes e outros pequenos milagres, não é à toa que em sua lápide está escrito: Andrei Tarkovski – ao homem que viu um anjo. 

Astier Basílio

Astier Basílio é poeta e dramaturgo. Vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia, em 2014, com a peça Maquinista. É mestre em ensino de literatura russa para estrangeiros pelo Instituto Estatal Pushkin e doutorando pelo Instituto de Literatura Maksim Górki, ambos de Moscou, onde atualmente mora.