BNFB

O antipluralismo populista

por Rodrigo Coppe Caldeira

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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com o projeto Bolsonarismo: Novo Fascismo Brasileiro, desenvolvido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o Labô.

Em uma investigação multidisciplinar e colaborativa que envolve pesquisadores voluntários de diversas instituições de ensino superior do Brasil, o projeto BNFB pretende unir esforços para compreender o atual estágio da crise da democracia liberal, constitucional e representativa, a ascensão de populismos de extrema direita, a degradação das instituições brasileiras e a ameaça política, social e humanitária representada pelo movimento social e político do bolsonarismo.

Uma das ideias chave que atravessa os populismos é a ideia de que apenas o líder político representa verdadeiramente o povo. Para o líder populista, esse povo é monolítico, tem os mesmos ideais que ele e precisa de um guia para que o conduza e defenda contra aqueles que desejam pervertê-lo. Por isso, foge das mediações, que para ele pervertem tudo. Quer falar diretamente à massa. Os populistas do passado certamente invejariam os do presente. Com as redes sociais, o sonho populista se concretiza em proporções inimagináveis. O líder estabelece uma relação direta com os milhões de seguidores. Buscar discutir atualmente a questão política sem refletir sobre o papel desempenhado pelas redes é perder uma parte central do fenômeno em sua faceta contemporânea.

O populista é fundamentalmente um antipluralista. Eis a sua face mais evidente. Ele deseja domar a realidade selvagem em que mundos diversos coexistem quase sempre de maneira desequilibrada e psicologicamente extenuante. Eis o que leva a recusar a democracia liberal: os mundos em choque, a exaustão do diálogo, os conflitos de valores, a ansiedade constante gerada pelos espaços abertos. O populista é um agorafóbico. Prefere os espaços em que pode viver sua ilusão de proteção. Deseja paz para os tormentos sociais e se entende como aquele capaz de conseguir. A não ser que tenha que lidar com críticas. São sempre ilegítimas. Estar na oposição não é estar contra o líder, mas contra o povo que o entende como seu representante moral exclusivo, como ensina Jan-Werner Müller em What is populism?. Por isso, aqueles que a proferem publicamente logo caem no rol de seus inimigos. Ao mesmo tempo em que visa censurar qualquer expressão dos “inimigos do povo”, buscando suprimir dados e informações que possam depor contra si, desenvolve o método de insuflar a polarização social com o intuito de levá-las às mais altas temperaturas. Os dogmatismos ideológicos e as recusas em aceitar a existência de um outro como player legítimo do campo político os inflamam, funcionando como um maquinário de excitação psico-política que deve permanecer sempre em alta rotatividade. O ódio, o afeto de base da negação do outro, gerenciado e canalizado para os seus fins do projeto em andamento, é produto de uma fantasmagoria. Por isso a irracionalidade que atravessa certa militância, parafraseando André Glucksmann, acusa sem saber, julga sem ouvir, condena a seu bel-prazer, dilacerando tudo com sua arbitrariedade. O radicalismo embebido em espírito de submissão ao líder e conformidade total aos seus desejos trazem a reboque pretensões hegemônicas, movidas pela imagem mítica de uma unidade perdida ou a ser alcançada. Em versões religiosas ou secularizadas, o mito tem como base a crença de que as contradições humanas podem ser sanadas com as respostas “corretas” – uma visão específica de mundo a que todos devem se dobrar. Visam organizar a moralidade dos cidadãos buscando desenvolver instrumentos de controle do que seja legítimo ou não na esfera das crenças e costumes. Querem, no final das contas, gerir as almas. Não sem a ajuda, muitas vezes, de intelectuais, jornalistas e outros agentes culturais que usam seus talentos com o intuito de convencer os cidadãos sobre as características virtuosas e libertárias do líder e seu projeto.

Um dos maiores ideais e trunfos da política liberal foi buscar distinguir religião e política. Tarefa nunca completa e assinalada por inúmeras contradições. As crenças políticas têm uma tendência a se sacralizarem. O filósofo canadense Charles Taylor afirma que um Estado não deve ser nem cristão, nem muçulmano, nem judeu, mas também nem marxista, kantiano ou utilitarista. O que significa assumir a pluralidade cultural e de valores como uma realidade intransponível, sem deixar de buscar um consenso mínimo que possibilite a convivência civilizada entre os diferentes e também assumindo as tarefas comuns na manutenção e funcionamento da cidade. Não devem prosperar assim projetos de controle ideológico que desejem calar as vozes que destoam de suas próprias. O desejo de impor um padrão moral específico pelo líder populista e seus sequazes deve ser amplamente combatido por aqueles que têm como causa o conhecimento e a liberdade. Parafraseando o político italiano do século XIX, Luigi Einaudi, lembrado por Merquior em “O liberalismo antigo e moderno”: ao governo, as leis; aos espírito, a anarquia.

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Einaudi

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Rodrigo Coppe Caldeira

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)