Cinema

‘Aquarius’ e a regressão do cinema político

por Rodrigo Cássio Oliveira

Em entrevista à Folha de São Paulo, Kleber Mendonça Filho endossou uma comparação de Clara, personagem do seu filme “Aquarius”, com a ex-presidente Dilma Rousseff: “São duas mulheres que estão sendo despejadas e precisam lidar com homens corruptos para tentar manter a casa onde vivem”.

A atriz Sonia Braga vive a protagonista do filme de Kléber Mendonça Filho. (Foto: Divulgação)

Confesso que fiquei intrigado com a franqueza do diretor em relação aos sentidos do seu próprio filme. Não sei o que os leitores pensam a respeito, mas acho difícil levar a sério artistas que se sentem confortáveis diante de interpretações fáceis e politicamente oportunas das obras que eles mesmos criam.

A interpretação chancelada por Kleber Mendonça acaba dando alguma razão aos críticos que questionam a fragilidade dramática de “Aquarius”, pois destaca a caracterização de Clara como uma mulher vitimada e resistente (logo, virtuosa), dispensando qualquer nuance crítica que o filme tenha proposto sobre ela. Curiosamente, a maioria da crítica favorável ao filme insiste em argumentar na direção contrária, destacando as contradições que cercam Clara e diminuindo o peso da virtude na construção da personagem.

Esse desacordo entre o diretor e os críticos que elogiam o seu filme não poderia passar batido. Para nos ajudar a resolvê-lo, a fala de Kleber Mendonça poderia ter sido seguida de outra pergunta: se Clara é mesmo comparável a Dilma, e se a crítica que elogia “Aquarius” está correta ao diminuir o peso da virtude na personagem, como poderiam ter razão os que veem em Dilma uma mulher essencialmente virtuosa e vitimada por um golpe político? Não haveria aí uma contradição?

A alternativa a essa pergunta seria simplesmente não fazê-la, e cogitar que a crítica que elogia “Aquarius” pode não estar certa sobre a capacidade do filme de nuançar o seu próprio discurso político. Alertados pela autoridade irrecusável do diretor da obra, nós realmente não deveríamos deixar de ver Clara – e Dilma – como mulher essencialmente virtuosa e agredida pelos fatos.

Melodrama latente

Na verdade, a comparação de Clara com Dilma, aprovada por Kleber Mendonça, conecta-se a uma dimensão melodramática que permanece latente em todo o filme, e que tem na doença de Clara o seu elemento mais explícito.

Assim, a entrada do espectador nas polarizações da trama de “Aquarius” ofereceria a chave mais adequada para a obra, e talvez Eduardo Escorel estivesse enganado ao nomear os seus excessos de barrocos. Não seria, como nas narrativas barrocas, um acúmulo de camadas que tornam o filme mais complexo filme, desestabilizando a representação. O excesso resultaria, na verdade, do acúmulo de classificações que separam a virtude e a vilania. Digamos que, para entender “Aquarius”, seria preciso identificar e separar claramente os honestos e os corruptos, as mulheres (honestas) e os homens (corruptos), aqueles que resistem (mulheres honestas) e os capitalistas desumanos e sem escrúpulos (homens corruptos) etc.

Embora eu não veja “Aquarius” como um filme tão nuançado e sutil como os críticos favoráveis o veem, tampouco diria que a revelação deste melodrama latente é a melhor forma de ancorar uma crítica justa ao filme. Há algo mais fundamental, que impõe limites a “Aquarius” como uma obra política, e que não está propriamente no seu enlace com o melodrama: a sua relação com o passado do cinema brasileiro.

Identificação sem complexidade

Para discutir essa relação, podemos até admitir que “Aquarius” expõe as contradições da classe média brasileira. Mas isso não ocorre apenas pelo que o filme é, e sim pelo que ele não é, e sobretudo pelo discurso dos que o defendem por motivos políticos.

Voltemos um pouco no tempo. Quando o Cinema Novo começava a produzir os seus filmes urbanos, Gustavo Dahl dizia que a classe média finalmente seria representada na tela, e que essa representação resultaria em filmes “difíceis de engolir”. De fato, não foi fácil para a esquerda cultural se reconhecer nos personagens que Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Nelson Pereira dos Santos ou o próprio Gustavo Dahl criaram entre 1965 e 1969. A capacidade destes filmes de fazerem uma autocrítica da esquerda brasileira, logo depois de ela sofrer um golpe, é algo muito diferente de qualquer coisa que vemos hoje nas telas de cinema.

Todos os protagonistas daquelas obras dos anos 1960 são ambíguos e internamente divididos, oscilando entre a ilusão de possuírem uma boa consciência e a decepção pelo fato de não serem, no fundo, tão bons quanto gostariam de ser. O exemplo mais vigoroso destes personagens é Paulo Martins, protagonista de Terra em Transe, filme que Glauber lançou em 1967. Jornalista e militante político, poeta e bon vivant, Paulo é a personificação das contradições de uma classe média de esquerda. Para quem pertence a esse grupo social, assistir ao filme de Glauber – até hoje – é necessariamente incomodar-se com um espelho impiedoso e pontiagudo. Um espelho efetivamente barroco.

Comparado àqueles filmes, “Aquarius” evita a todo custo que alguém se sinta desconfortável com Clara. Ao contrário, o filme promove uma identificação plena com a personagem, aproximando-a “afetivamente” por meio de uma narrativa plácida e cheia de indulgências. Em seu texto na revista Cinética, Andrea Ormond afirma que Clara “não é muito diferente” de seu antagonista (o jovem empreendedor que quer comprar o seu prédio), e que ninguém “tem razão” em “Aquarius”. Essas afirmações falsificam a estrutura narrativa do filme, omitindo a sua óbvia preferência pela protagonista.

Jean-Claude Bernardet também repercute equívocos ao dizer que Clara é uma personagem de muitas facetas. O crítico que tão bem avaliou a evolução do Cinema Novo no clássico Brasil em Tempo de Cinema parece diminuir a exigência diante de “Aquarius”. Naquele livro, Bernardet celebra a consciência de Antônio das Mortes (personagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha) como a própria consciência incômoda da classe média, forçando-nos a questionar “a validade de nossa atuação” (p. 82 da edição de 1978). No filme de Kleber Mendonça Filho, porém, as contradições que tornariam Clara complexa e ambígua nunca penetram na consciência da personagem. E se as contradições não são internalizadas, Clara não pode problematizar a si mesma. Identificado com a personagem, o espectador de “Aquarius” nunca é confrontado com a necessidade de avaliar a sua própria consciência.

Por isso, nada é mais distante de Clara que o ritual autodestrutivo de Paulo Martins, lá pela metade de Terra em Transe; ou o gesto suicida do político que Paulo César Pereio viveu em O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl; ou o fastio rebelde de Ada com sua vida burguesa, em O Desafio, de Saraceni. Clara é virtuosa e por isso não pode vacilar, ceder, nem duvidar de si mesmo. Essas características fazem com que o conflito nuclear de “Aquarius” não consiga abrir mão daquele melodrama latente que comentei há pouco.

Nesse passo, a velha frase de Gustavo Dahl sobre a representação da classe média perdeu o sentido. Para o espectador ideal de “Aquarius”, que é de classe média e simpático à esquerda, é muito fácil engolir Clara. O espelho da identificação resplandece, apesar das inserções pontuais de elementos que colocam a personagem em uma posição de privilégio (sua relação com a doméstica, sua proteção especial pelo salva-vidas, seus contatos no meio jornalístico etc.). O espectador ideal do filme se associa a Clara e torce por ela, assim como se associa às boas vítimas de uma telenovela. Sai pra lá, capitalismo mau. Juntos, poderemos resistir.

Difícil autocrítica

Como não lamentar a regressão que significa “Aquarius” no que diz respeito à capacidade do cinema brasileiro de expressar a realidade política? No entanto, é assim mesmo que a polêmica ligada ao filme deixa ver as contradições da classe média de esquerda, atualizada para os nossos dias.

Ao dizer que Clara pode ser comparada a Dilma, Kleber Mendonça escancara o traço mais distintivo dos que chamam o impeachment de golpe e militam pelo PT: a dificuldade de fazer uma autocrítica. Essa contradição é flagrante toda vez que alguém se esforça para valorizar as nuances e sutilezas que cercam a protagonista de “Aquarius”, mas ao mesmo tempo se satisfaz com o deslumbre narcísico e autocomplacente estimulado pela identificação com a personagem.

Não quero parecer conclusivo nesse breve retorno aos anos 1960. Porém, chama atenção que o Cinema Novo tenha conseguido fazer uma autocrítica da esquerda, no preciso momento em que os artistas eram intimidados pela ditadura militar. Dahl, Rocha ou Saraceni poderiam ter criado personagens aptos a endossar um discurso de vitimização, sublinhando as virtudes do seu próprio grupo político. Mas não é isso que encontramos na força duradoura deste cinema político e reflexivo. Encontramos filmes bem melhores.

Já o cinema de esquerda atual – com o incensado filme de Kleber Mendonça à frente – não assume pra valer as suas próprias contradições, justamente quando isso poderia ocasionar uma reflexão digna e libertadora, colocando em perspectiva a soberba de um grupo político que conduziu o país para a crise, e ocasionou que o impeachment de Dilma Rousseff fosse apenas o clímax recente de uma narrativa ainda em construção. Não existe autocrítica nos discursos militantes dos cineastas de esquerda no Brasil atual, e menos ainda na forma dos seus filmes.

Rodrigo Cássio Oliveira

Rodrigo Cássio Oliveira é doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás. Confira mais ensaios sobre arte, estética e comunicação em www.rodrigocassio.com