Cinema

Arquitetura da solidão: sobre Kiyoshi Kurosawa

por Rafael Dornellas

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Há um plano em Kairo (2001), imediatamente posterior ao seu breve prólogo, no qual a primeira percepção é o estranhamento: um computador ocupa seu centro em uma escrivaninha bagunçada de um quarto escuro. O que chama mais atenção é sua textura. Kiyoshi Kurosawa parece imprimir diretamente no quadro uma imagem digital, a tela do próprio computador. Ela é ruidosa, escura e falha em solavancos.

A primeira aparição fantasmagórica no filme também será via digital, quando um disquete é resgatado na casa de Taguchi (Kenji Mizuhashi) por sua colega de trabalho Michi (Kumiko Asô). Inserido no computador, é revelada a mesma imagem de antes. Há, porém, alguém parado no canto da tela. Em um movimento inesperado, o som é suprimido e o plano mergulha naquele fotograma operando aproximações sequenciadas de um rosto sem vida. Além de reforçar seu aspecto macabro, a sequência ocasiona uma quebra: uma variação de registro como procedimento que voltará a ser utilizada por Kurosawa, traduzindo uma diversidade de opções estilísticas subordinadas majoritariamente ao seu efeito e à construção do todo.

Há outros momentos, em sua filmografia, em que a suspensão narrativa é atingida via algum ruído formal.  Em A Cura (Kyua, 1997), por exemplo, logo após o detetive Takabe (K?ji Yakusho) descobrir a residência de Mamiya (Masato Hagiwara) e nela um palco mórbido de experiências relacionadas à hipnose, Kurosawa insere no filme uma série de imagens mentais de Takabe editadas como uma sequência experimental. Elas produzem um curto-circuito e acusam, como um delírio premonitório, o início de sua desintegração psicológica resultando na visão traumatizante da esposa enforcada na cozinha.

Conhecendo seu objeto a fundo, o cineasta parece saber exatamente o que tirar de cada plano, de cada transição, de cada escolha formal — resultado provável de mais de uma década de aprendizado e aprimoramento, filmando por encomenda para o vídeo e para a TV antes de realizar seus primeiros grandes filmes no final dos anos 90. Além do horror, gênero tangenciado em Sweet Home (Sûîto Homu, 1989), A Cura, Kairo, Sessão Espírita (K?rei, 2000), Loft (Rofuto, 2005), Crimes Obscuros (Sakebi, 2006), Creepy (Kur?p?: Itsuwari no Rinjin, 2016), nota-se o mesmo prazer de contar histórias em dramas extremamente líricos e outros filmes inclassificáveis que superam amarras de gênero, como License to Live (Ningen g?kaku, 1998), Barren Illusion (Ôinaru gen’ei, 1999), Carisma (Karisuma, 1999), Futuro Brilhante (Akarui Mirai, 2002), Sonata de Tóquio (T?ky? Sonata, 2008), O Sétimo Código (Sebunsu kôdo, 2013), Para o outro lado (Kishibe no tabi, 2015), entre outros.

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Kairo, de 2001 (Reprodução)

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Os melhores filmes de Kurosawa são construídos como enigmas, como extensas narrativas encriptadas em corpos estranhos, a princípio pouco reconhecíveis. Cada sequência, como um tatear na escuridão, torna-se uma pequena descoberta. Cada conclusão, um arrebatamento sentimental. As escolhas do diretor, subordinadas às possibilidades e aos limites cinematográficos, parecem almejar o resgate de uma euforia visual adormecida nos primórdios do cinema.

Por vezes um arroubo se dá em um plano, por vezes em uma sequência atravessada intensamente pela trilha sonora, outras ainda pela postura de seus atores. Quase sempre tudo se funde e é incorporado à finalidade da cena: as inusitadas mudanças de iluminação dentro do mesmo plano, suprimindo o corte, fazem da luz a condutora principal de suas nuances, como no interrogatório com a garota sobrevivente em Creepy ou na belíssima cena ao piano em Para o outro lado.

De uma decodificação laboriosa das interações filmadas há a representação de um mundo cuja solidão dos seres resulta na reorganização de suas leis físicas, de suas regras preexistentes, culminando consequentemente em uma mudança radical na maneira dos personagens compreenderem aquelas regras. Desvela-se um olhar novo como epifania: uma forma inédita de encarar o mundo, uma revelação tão colossal que seu fim pode também ser o fim de tudo.

Suas ações geralmente ocorrem em espações amplos, privilegiando as texturas nas paredes, as sombras, a água que inunda um ambiente, a natureza presente na locação (em grandes casarões e galpões abandonados). Muitos de seus espaços já possuem de antemão regras que desvirtuam o realismo naturalista, afastando-nos de uma identificação imediata e estimulando seu mistério: são constantes, por exemplo, os planos dos personagens dentro de transportes rodeados por projeções ilusórias do mundo externo nas janelas. Suas cenas de deslocamento, marcantes em alguns filmes, são filmados como uma suspensão, como desvios propositais da realidade. As personagens, em Kurosawa, são seres deprimidos, profundamente solitários, desprovidos de vínculos afetivos, traumatizados, em crise, envoltos em penumbras. Sua melancolia permanente é muito bem refletida nas sombras internas do plano, no obcecado emprego da profundidade de campo, nas locações escolhidas a dedo e na amplitude dos espaços que intensificam sua desesperança.

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A Cura, de 1997 (Reprodução)

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Exemplos e recorrências

O policial Takabe em A Cura, ao longo do filme, é apartado de todos e de si mesmo. Enquanto investiga assassinatos e se envolve com a hipnose de Mamiya, fracassa em sua incapacidade de lidar com a patologia psiquiátrica de Fumie (Anna Nakagawa), sua esposa. Cada retorno para casa é uma surpresa, um receio daquilo que poderá encontrar. A máquina de lavar roupas vazia que é ligada, os sumiços da esposa, a carne crua que é deixada no prato como um jantar pronto. Sua separação, assim como o fim trágico de Fumie no hospital, já era anunciada a cada novo mergulho na escuridão mental aberta por Mamiya: um mal ancestral se dissipa e o plano final, impiedoso, vislumbra sua continuidade.

Se A Cura reforça o isolamento de Takabe progressivamente, a narrativa de Carisma é toda construída a partir de um evento inicial traumático que irá enclaustrar ainda mais seu protagonista. Após uma negociação fracassada que resulta na morte de um refém e seu sequestrador, o detetive Yabuike (K?ji Yakusho) deixa tudo para trás e se embrenha em uma floresta nas imediações da cidade. Sua incursão em um mundo paralelo, no qual somos inseridos também com estranhamento, aos poucos torna-se não apenas um reflexo filosófico de suas escolhas mas também uma maneira de agir materialmente sobre aquele mundo desagregado.

A árvore cujo nome dá título ao filme é uma espécie de objeto sagrado. Disputada por sujeitos peculiares, parece guardar um segredo e determinar um campo magnético no qual tanto Kiriyama (Hiroyuki Ikeuchi) quanto Jinbo (Jun Fubuki) não conseguem se desvencilhar. Há uma pequena guerra deflagrada nesse microcosmo alegórico. Para Yabuike, estrangeiro naquele ambiente, as questões a respeito da existência da árvore e da floresta alcançam um poder de modificação da ordem local. A mensagem entregue a ele no início do filme (“restaure as regras do mundo”), passa então a contaminar seu ambiente via Carisma, levando à síntese no plano final, revelada com a mesma incredulidade contida na voz que questiona Yabuike: “O que você fez?”, diz seu ex colega ao telefone. Sua aventura pelos arredores da árvore sagrada gerou, por fim, uma desestabilização de seu universo. Alguns de seus coadjuvantes enlouqueceram, outros morreram, outros fugiram: aos seus pés, do alto da montanha, a cidade jaz em destruição.

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Plano final de Carisma, de 1999 (Reprodução)

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Há muitos outros exemplos de personagens traumatizados e proscritos na filmografia de Kurosawa. Dois dos filmes que realizou em 1998, Serpent’s Path (Hebi no michi) e Eyes of the Spider (Kumo no hitomi), tangenciam o universo gângster do ponto de vista de um homem que deseja vingar sua filha assassinada. Em License to Live, um jovem desperta após passar 10 anos em coma. Em Crimes Obscuros, o trauma de Yoshioka (K?ji Yakusho) será revelado no final, amplificando o significado dos acontecimentos anteriores, dos crimes e das assombrações ao seu redor. Creepy, como Carisma, traz em seu prólogo o trauma que o policial Takakura (Hidetoshi Nishijima) carregará ao longo da narrativa.

Sonata de Tóquio, por sua vez, vai expandir o afastamento e isolamento das personagens através de uma família desagregada conforme sua crise financeira revela-se inadiável: a demissão do provedor Ry?hei (Teruyuki Kagawa) expõe um torpor sensível, uma fratura, presente entre todos os membros de sua família. Seu filho mais velho Takashi (Y? Koyanagi) sai de casa para se juntar às forças militares dos EUA. Sobram sua esposa Megumi (Ky?ko Koizumi) e seu filho mais novo Kenji (Kai Inowaki), que persegue aos trancos e barrancos o sonho de ser pianista.

A sala (centro espacial e emocional da casa) torna-se, em seus ambientes vazios, um local de passagem, um símbolo de sua desunião. Uma cisão os separa no meio do filme. Kenji vaga pela cidade. Ry?hei corre pelas ruas, fugindo dele mesmo, envergonhado após ser flagrado pela esposa trabalhando como faxineiro em um shopping. Megumi é sequestrada. Todos passarão a noite separados, fora de casa, vivendo seu ocaso e sofrendo na pele sua degradação. Megumi flerta com o suicídio e se aproxima de seu sequestrador nos limites da cidade. Kenji é preso após tentar fugir no bagageiro de um ônibus. Ry?hei acorda na sarjeta. O amanhecer é filmado em tom de recomeço: Megumi se permite iluminar pelo sol e a família se reestabelece silenciosamente ao redor da mesa de jantar. Sua união é sintetizada na cena final, durante o teste de Kenji para entrar no conservatório de música. Clair de lune (terceiro movimento da Suite bergamasque, de Claude Debussy) executada à perfeição pelo garoto no piano é exibida na íntegra. O plano, que antes era preenchido pelo vazio de seus personagens, é agora tomado de gente: todos em silêncio atentos ao piano de Kenji (iluminado por um foco de luz). Os olhos marejados de seu pai refletem uma vitória familiar, um recomeço.

De seu filme mais recente lançado em 2019, tanto o título brasileiro (O fim da viagem, o começo de tudo), quanto sua tradução literal (O fim de uma jornada, o começo de um mundo), poderiam sintetizar muitas das jornadas filmadas por Kurosawa sob uma perspectiva de fascínio. Yoko (Atsuko Maeda) — repórter cujo sonho é ser cantora — terá finalmente seu momento de iluminação do alto de uma paisagem montanhosa no último ato. Para tanto, a acompanhamos como estrangeira no Uzbequistão passando por algumas experiências incômodas em seu cotidiano. Toda sua trajetória, porém, culmina em um número musical em que ela ascende conjugando o seu êxtase pessoal com a resolução do filme. O encerramento da viagem marca o começo de um novo mundo: para ela, assim como para a família em Sonata de Tóquio e para tantos outros personagens de Kurosawa, o começo de tudo.

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O Fim da Viagem, o Começo de Tudo, de 2019 (Reprodução)

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Kairo ou Notas sobre isolamento e desintegração

Se Kairo é visto como um de seus melhores filmes, é também por atingir um patamar que transcende o gênero, denotando, com isso, as melhores caraterísticas artísticas de seu diretor. Sua trama fantasmagórica e alusiva é um ponto de partida, uma fagulha a despertá-lo para um longo e rigoroso estudo imagético: a regra sob a qual opera o seu aparato estético — da resolução dos planos dentro da narrativa obedecer majoritariamente às potencialidades do cinema — é tratada com máxima obstinação. Seu olhar sobre a solidão já está presente no primeiro plano narrado por Michi: o céu carregado sobre ela no navio se expande e desdobra como um mau presságio.

Sua narrativa começa com um desaparecimento: Michi busca por um colega de trabalho. A primeira assombração do filme, porém, é o humano Taguchi. Ele emerge como uma silhueta sem vida no fundo do plano. Agindo como um fantasma já perdido entre dois mundos, ele se enforca e Michi presencia sua morte: é estabelecido o trauma, o abandono e mais um patamar no afastamento dos seres. Paralelamente o jovem Kawashima (Haruhiko Kato) descobre a internet e, com ela, um outro universo, um mundo espectral prestes a inundar.

O filme parece dar conta do isolamento e do medo presente naqueles jovens em um momento de passagem, de incertezas, de imagens vacilantes produzidas pelos novos dispositivos, pelo advento das redes. Há também nele uma revisão amadurecida do obscuro Barren Illusions (Ôinaru gen’ei) — filme lançado por Kurosawa em 1999 que também lidava, em um cenário distópico, com muitas questões aqui presentes.

Rapidamente detecta-se um denso testemunho do fim dos tempos iniciado através das redes, catalisado a partir da baixa resolução das imagens, resultando em uma ruptura hermenêutica de sua decodificação: “tudo começou um dia, sem aviso, assim…”, diz Michi enquanto um corte seco nos transporta do navio isolado para a imagem flutuante dentro da tela do computador: um corte seco, um compêndio formal de sua totalidade.

Canalizando seu vigor para o horror da finitude, Kairo também é a convergência de planos deslumbrantes. Às vezes por meio de alguma ação violenta — um suicídio, uma aparição sobrenatural. Às vezes aproveitando as lacunas da imagem (e demonstrando por ela um encantamento mórbido) para testemunhar uma assombração: de sua instabilidade os fantasmas erguem-se, são frutos dessa dissociação patológica dos relacionamentos, ocupam a terra como escape, pedem socorro, também sentem medo: “a morte era solidão eterna”, diz um deles.

Através de sua encenação, Kurosawa realça o afastamento de suas personagens dentro do plano. O suicídio de Harue (Koyuki Kato) na fábrica abandonada é filmado sob a perspectiva da profundidade de campo, assim como o desaparecimento de Junko (Kurume Arisaka). Em uma das mortes mais impactantes do filme, Michi (em primeiro plano) olha para longe enquanto uma mulher se atira do alto de uma estrutura metálica no fundo. Pouco antes, a mesma mulher vedava uma porta com fita vermelha. As portas seladas com fitas vermelhas simbolizam locais proibidos, locais tomados pelos fantasmas. Entrar neles significa encontrar a morte e o desaparecimento.

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Suicídio e desamparo em Kairo (Reprodução)

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Ao longo do filme percebemos que o horror não provém necessariamente da ameaça das assombrações, mas sim de um medo enraizado nas personagens e insuflado por sua nova realidade. Os fantasmas passam a não ser mais um problema único: vemos as TV’s falhando, os noticiários alertando desaparecimentos, vemos as imagens dos computadores tomando conta de todas as telas e dentro delas uma série de figuras enigmáticas sozinhas em locais distintos, vemos o contato entre fantasmas e humanos desencadear o fluxo depressivo de morte. A externalização do sentimento já presente nas personagens altera a sua realidade. O sumiço paulatino das pessoas ao longo do filme transforma a fuga dos últimos sobreviventes em uma ambientação sci-fi pós apocalíptica. Voltamos ao início, “tudo começou um dia, sem aviso, assim…”. Kawashima sucumbiu à tentação e vislumbrou o fim de seu sofrimento. Michi ainda resiste no oceano buscando algum resquício de existência humana. O horizonte, porém, é turvo.

Kairo, ao se deixar invadir como Tóquio, tendo seu ar adensado e suas leis alteradas, torna-se um mundo invertido, face negativa de si mesmo. Aceitando excessos e incorporando essa imagem invertida do mundo em seu estilo, Kurosawa pesa a mão durante a fuga da cidade em ruínas: um avião cruza os céus explodindo perto de Michi; a trilha musical cresce; partículas flutuam no ar; uma lancha solitária abandona o plano nos deixando com a vista da cidade devastada. Há, curiosamente, alguma esperança na voz de Michi: “agora, sozinha, com meu último amigo no mundo, encontrei a felicidade”, diz ela conforme o plano do apequenado navio é engolido pela tela do cinema e afunda na escuridão. A contradição entre a fala da personagem e a real perspectiva de sua vida tornam o terreno de Kairo mais pantanoso e seu fascínio ainda maior.

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Tóquio arrasada no final de Kairo (Reprodução)

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Dessa liberdade formal, dessa crença quase religiosa nas possibilidades da linguagem de seu meio, encerram sínteses máximas no cinema de Kurosawa, instantes que permanecem conosco após as sessões. Nishino (Teruyuki Kagawa) e Yasuko (Y?ko Takeuchi) de mãos dadas debaixo de um viaduto em Creepy. O bombardeio no final de Antes que tudo desapareça (Sanpo suru shinryakusha, 2017) atravessando o filme como uma sequência suntuosa de guerra. Os números musicais em O Sétimo Código e O fim da viagem, o começo de tudo. Os olhos marejados de Ry?hei no final de Sonata de Tóquio. O despertar do coma em License to Live. O plano que encerra Para o Outro Lado. A queda violenta da escada em O segredo da câmara escura (Le secret de la chambre noire, 2016). O sorriso de Harue em Kairo, olhando para a câmera e abraçando o vazio, após um mergulho obsessivo nas figuras espectrais que perambulavam pelos computadores, percebendo-se não mais sozinha em sua existência. Execuções superlativas de suas personagens em um estado de solidão incurável projetado na arquitetura cênica. Representações de trajetórias cujo doloroso aprendizado tornará o ato de ver uma nova aventura, um novo terreno a ser desbravado: restaurando, em ascese espiritual, suas próprias diretrizes.

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Rafael Dornellas

Rafael Dornellas é crítico de cinema e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP.