Política

As entrelinhas da democracia

por Henrique Raskin

No mês passado, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram How Democracies Die (Como as Democracias Morrem)[1]. Os autores defendem que em uma democracia é preciso atentar para os sinais de sua deterioração. Sutis e progressivos, estes sinais não anunciam bruscamente sua morte, como fazem os golpes armados; mais nocivos, são sintomas de uma doença que corrói a democracia por dentro. Silenciosa e irremediavelmente, a democracia falece.

Os professores de Harvard têm uma agenda clara ao desdobrar seu argumento: mostrar que a figura de Trump é a contraprova de que a maior democracia do ocidente não é inabalável. Observados o questionamento da legitimidade do processo eleitoral, a tolerância e o encorajamento à violência, a prontidão a limitar as liberdades civis dos críticos e a exclusão de repórteres específicos em coletivas de imprensa, constata-se o diagnóstico de que os Estados Unidos, para os autores, não são imunes à ameaça do autoritarismo.

É verdade que o posicionamento anti-Trump tem protagonismo na obra. No entanto, é inevitável para quem trabalha pela cultura democrática, direcionar a atenção ao que surge em vários momentos da narrativa: “as regras não escritas da democracia”. A sustentação da tese parece, assim, mais relevante do que a finalidade prática visada por Levitsky e Ziblatt.

Essas “regras não escritas” ofuscam a própria tese da morte da democracia: a sua relevância não se dá apenas quando da constatação do problema. Inversamente, estas regras também ditam as condições para o bom funcionamento das instituições democráticas. São, em outros termos, o sistema imunológico da democracia, e a analogia quase que corresponde literalmente ao corpo humano: só notamos a falta da saúde quando adoecemos.

O interessante é que os autores não atribuem como complicação a existência dos demagogos e dos impulsos autoritários: esses sempre existiram. O transtorno se dá, ao contrário, quando as regras informais são quebradas pela sociedade civil e, em decorrência disso, os demagogos conseguem driblar as instituições que compõem o ethos político democrático.

As entrelinhas da democracia – esse código de conduta aceito, respeitado e aplicado pelos membros da sociedade civil e pelos partidos políticos – consistem em duas regras: tolerância mútua e respeito institucional. Tolerância mútua significa saber que o oponente não é inimigo: ele tem direito de existir, de competir por poder e de governar – desde que constitucionalmente. Já o respeito institucional diz respeito à ideia de que as instituições não podem ser usadas como ferramentas de disputa entre oponentes.

Dentre as constantes invocações que o livro faz a Mussolini, Hitler, Castro, Chávez, Putin e Maduro, o desafio é que, hoje, o diabo está no detalhe: os mecanismos podem ser facilmente convertidos a serviço do autoritarismo. Aplicação seletiva da lei, punição de oponentes para defender aliados, uso de impostos para coagir entidades da sociedade civil, violação de privacidade e espionagem como ferramentas para chantagem dos críticos. O que impede que os recursos do Estado sejam usados para fins antidemocráticos são as regras não escritas da democracia, ou seja: é a cultura propriamente democrática, que sufoca, nas instâncias mais locais, as sementes da demagogia.

Um panorama global?

Larry Diamond[2] atenta para o fato de que, no século XXI, há uma recessão democrática preocupante. Um freio à última onda democrática que, desde a Revolução dos Cravos na década de 70, vinha sendo promissora. A inquietação repousa sobre o aumento do “índice de falha democrática”: entre 1984 e 1993, a taxa era de 8%; entre 1994 e 2004, de 11%; entre 2005 e 2015, de 17%. Cada vez mais, as democracias vêm colapsando; de 2000 a 2015, já foram 27 os casos de óbitos democráticos. Corroborando a tese de Levitsky e Ziblatt, apenas 8 decorreram de intervenção militar – o restante consiste em abuso de poder e desrespeito à constituição.

Diamond atribui a recessão à má governança, à incapacidade da burocracia, ao mau desempenho econômico, e à ressurgência global de regimes autoritários. Em outros termos, estados democráticos estão falindo. O fenômeno dos BRICs é evidência disso: China e Rússia, de largada, não sendo democráticos; o Brasil, jovem democracia, com tendências fortes de corrupção e de neopopulismo; e a Índia, sofrendo o dilema entre crescimento econômico e manutenção da democracia. Provocamos: para que serviria, portanto, a democracia, se datada e ineficaz? O autoritarismo, nesses termos, parece compensar.

A esperança, porém, repousa novamente na cultura democrática: cabe às instituições do Estado, aos partidos políticos e à sociedade civil lembrar que não existem salvadores da pátria, uma vez que a salvação é justamente não precisar deles. Diamond garante que, apesar do crescente apelo demagógico, as populações da Ásia, da África e da América Latina ainda acreditam na democracia como forma de governo mais atraente[3].

Cultura democrática brasileira

No ranking das democracias de 2017 da The Economist Intelligence Unit[4], o Brasil se encontra na 49ª posição, sob a categoria de “democracias falhas”. Democracia falha porque, embora tenhamos uma média de 9,58 em processo eleitoral e pluralismo, e de 8,24 em liberdades civis, temos baixas notas em participação política (6,11), de funcionamento do governo (5,36) e de cultura política (5,00). Para que sejamos uma democracia plena, é necessário alavancar esses três indicadores.

O baixo índice de funcionamento do governo é consequência dos status de participação da população e de cultura política democrática. No cenário dos ‘esquerdopatas’ e dos ‘coxinhas’, a polarização é o que mata – é o que transforma oponentes em inimigos e instituições em armas de combate. Por isso, são “as regras não escritas” da democracia o que se deve promover: fortalecendo essas entrelinhas da democracia, nas associações, nas ruas, nos bairros, nos partidos políticos, poderemos fazer do Brasil, pela primeira vez, uma democracia plena, vacinada contra a nossa histórica ameaça do autoritarismo.

Henrique Raskin é doutorando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e gestor de pesquisas do Instituto Atuação.

[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die: What History Reveals About Our Future. Crown: New York, 2018.

[2] DIAMOND, Larry. Para entender a democracia. 2ª Coletânea da Democracia. 1ª edição. Atuação: Curitiba, 2017.

[3] Ibid.

[4] Democracy Index 2017: Free speech under attack. The Economist Intelligence Unit.