Política

As prisões de Lula

por Gunter Axt

Em 21 de julho de 1980, Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, fundado em 1975, foi assassinado com três tiros à queima-roupa. Dias depois, Lula, no Acre com Jacó Bittar para divulgar a criação do PT, participou de um comício em Brasiléia, com Chico Mendes (assassinado em 1988) e delegados da Contag. Num arroubo oratório, lascou: “está na hora da onça beber água”. Revoltados, os seringueiros atacaram e mataram o fazendeiro Nilo Sérgio de Oliveira, considerado o responsável pelo crime covarde. Em fevereiro de 1981, Lula e os companheiros de palanque foram acusados na jurisdição militar federal, que então cuidava dos chamados crimes contra a segurança nacional, de “incitar a luta armada” e fazer “apologia da vingança”.

Os acusados, ouvidos em 9 de abril de 1981, em Manaus, foram defendidos por um time de respeito: Luiz Eduardo Greenhalgh, Heleno Fragoso, Pedro Marques da Cunha e Sepúlveda Pertence. Junto à porta de acesso ao prédio do plenário, por onde todos passavam, postavam-se soldados segurando onças por coleiras. Mas a surpresa veio mesmo quando o Procurador (em substituição) Olympio Pereira da Silva Junior (nomeado Ministro do STM em 1994) pediu, na última hora, a prisão preventiva do Lula, atendendo a uma encomenda do procurador-geral da Justiça Militar, Milton Menezes, a qual, de forma ainda mais inusitada, foi negada pelo Conselho de Justiça, que naqueles tempos podia determinar condenação mesmo quando o Ministério Público recomendasse absolvição e que costumava ir aos julgamentos com os votos mais ou menos alinhavados. Ao reportar a traição dos juízes para o comandante militar da Amazônia, general Leônidas Pires Gonçalves, o “chefe” lhe garantiu que o presidente Figueiredo não desejava prender Lula no momento em que patrocinava o avanço do processo de abertura política. Ou os militares estavam divididos, ou o governo fazia jogo duplo. Ou ambos.

Na segunda sessão, em 1º de março de 1984, o procurador João Alfredo da Silva, também em substituição, apresentou o pedido de condenação de Lula, preparado pelo procurador efetivo Otávio Magalhães, externando, contudo, sua divergência, por não identificar, nos discursos de Brasileia, incentivo à violência entre as classes. Posição idêntica tivera o procurador João Ferreira de Araújo, que passara por Manaus dois anos antes. Na plateia, entre outras personalidades, estavam a cantora Fafá de Belém e a atriz Dina Sfat. O Conselho absolveu os acusados por unanimidade. Foi um dos últimos lances dos julgamentos de civis pela Justiça Militar por crimes contra a segurança nacional.

A audiência de 1981 acontecia sob o impacto do julgamento de 25 de fevereiro daquele ano, na 2ª Auditoria, em São Paulo, no qual Lula e outros dez metalúrgicos foram condenados à revelia por incitação à desobediência às leis, por terem promovido as greves de abril de 1980 no ABC, mesmo depois de o TRT declarar a sua ilegalidade. Os sindicalistas tinham apoio da CNBB, da OAB e do PMDB. Em 3 de julho de 1980, o próprio Papa João Paulo II, que visitava o Brasil num clima de forte comoção, recebeu membros do Sindicato, no Estádio do Morumbi, num momento em que a ameaça de cassação pesava sobre a direção. Lula e outros doze haviam sido presos em 20 de abril e foram liberados 31 dias depois.

A prisão, contudo, não tinha sido nenhum martírio, como reconheceu o próprio Lula. Uma famosa foto em que ele segue no banco de traz de um camburão do famigerado DOPS, fumando com certo sossego um cigarro, já sugeria isso. O temido diretor do órgão, Romeu Tuma, acomodou-o no sofá de seu gabinete e chegou a providenciar uma televisão para que os presos assistissem aos jogos do Corinthians. Lula pôde ainda visitar a mãe gravemente enferma no hospital. O filho do delegado, o deputado e também delegado Romeu Tuma Júnior, tornar-se-ía Secretário Nacional de Justiça, entre 2007 e 2010. Contudo, acossado por denúncias de tráfico de influência, saiu do governo disparando, chegando a acusar Lula, sem provas e por meio de narrativa truncada, de ter sido informante do DOPS durante o regime militar.

A ausência dos réus e advogados, na audiência de 25 de fevereiro, teria sido uma forma de protesto contra uma sentença supostamente pré-concebida. Os condenados puderam recorrer em liberdade ao STM, que anulou a condenação, determinando a convocação de novo julgamento, em 19 de novembro de 1981. Dessa vez, defesa e réus se fizeram presentes, recebendo da plateia apoio de personalidades como o Senador Teutônio Vilella, o suplente de senador Fernando Henrique Cardoso, o bispo de Santo André, Dom Cláudio Humes, e o bispo auxiliar da Abadia de Westminster, Dom Victor Guazelli. As penas confirmaram as condenações do julgamento anterior. Mas, por nove votos a três, o STM decidiu, em abril de 1982, anulá-las e remeter o caso à Justiça Federal para ser julgado sob a Lei de Greve, à luz da qual a matéria já estava em prescrição.  O assunto foi sepultado.

Assim, uma ditadura que ainda rugia, mas prometia democracia, se comportava como morcego, mordendo e assoprando: o pedido de prisão preventiva em Manaus e a condenação em São Paulo atendiam aos clamores da linha dura, mas a negativa do Conselho de Manaus e a absolvição no STM acenavam para as genuínas intenções do governo em promover a abertura, além de conferirem aura de independência à Justiça Militar. Enquanto isso, Lula (presidindo o PT em criação) ficava quatro anos engatado em um processo da Lei de Segurança Nacional, no qual podia a qualquer momento amargar uma condenação, mas ao mesmo tempo, pôde capitalizar a condição de mártir da luta pela democracia.

Em 2013, o general Leônidas explicou: “Concepção comunista é uma coisa; regime de governo comunista é outra. . . . O que é um subversivo para nós? É um homem antissistêmico. O Presidente Lula sempre foi intrassistêmico. Ele fazia parte do segmento democrático que se chama sindicato. Ele nunca foi subversivo.” Nesse contexto, Luiz Carlos Prestes e Leonel Brizola – com quem Lula dividiu os votos da esquerda nas eleições de 1989 – assombravam bem mais os generais. O próprio Lula, em 1981, afirmava, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo: “Pouco importa que a direita me condene e a esquerda me massacre – estou no caminho certo.”

Foto: Andressa Anholete (Agence France Presse)

Com seus tantos tons de cinza, a política está mais para teatro de sombras do que para o preto no branco estampado nas redes sociais da atualidade. Lula, o sindicalista “intrassistêmico”, entre méritos e conveniências, saiu do regime militar como mártir da democracia e líder progressista, para se tornar, entre 2003 e 2010, o presidente da República mais popular desde Getúlio Vargas. Hoje, ele se vale do que sobrou desse capital contra um novo conjunto de processos, que dessa vez o acusam de corrupção, a mesma que condenava nos anos 1980 nos “picaretas com anel de doutor”. Uma sentença de primeiro grau carente de provas categóricas e um presidente do TRF emitindo declarações enviesadas, fornecem gancho contextual para o discurso escorregadio da politização da Justiça, deixando fraturas expostas. Embora políticos de outras greis estejam nas malhas da mesma Justiça, não há dúvidas que o julgamento no TRF-4 informa o futuro da teoria da prova no Brasil. Já para Lula, é só a primeira sentença, dentre, até agora, nove denúncias, que o fazem réu em sete processos. A condenação de Lula em segunda instância pode estar fechando o ciclo das lideranças que emergiram no País no período da redemocratização e suscita indagações. Lula, mesmo se não puder ser candidato, estará nas eleições de 2018: para onde migrará a parte do eleitorado que lhe é fiel, ou se identifica com a esquerda, e o que o substituirá? Um PT modernizado, uma esquerda mais doutrinária e radical, algum populismo arrivista ou a social-democracia-liberal?

Gunter Axt

Gunter Axt é historiador e doutor em História Social pela USP. Foi professor visitante na Université Denis Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine.