LiteraturaPoesia

Em que o autor, de Saulo de Tarso, rapidamente briga com Ferreira Gullar

por Hugo Langone

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«Senhor, que queres que faça?». Mal chegara Saulo ao chão que o levaria a Damasco e já trazia as palavras na boca: é homem novo por completo, caminhante de novo caminho; a magnanimidade sobrenatural do homem é agora parte clara de seu horizonte, e ele conhece um destino universal — ou, ao menos, conhece-o melhor. É-lhe comunicado na própria intimidade. Tem um novo nome.

Pouco se nota, no entanto, que não há ali pormenores: vai a Ananias; à Arábia; encontra Tiago e Pedro. Tudo, assim, o vai moldando, e só desse jeito pôde muito possivelmente vislumbrar as particularidades do caminho que era seu em especial. Da vocação universal à sua forma de alcançá-la, há muitos anos — da luz que o desconcertara à clareza quanto ao modo de carregá-la mundo afora.

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Conversão a Caminho de Damasco, Caravaggio, c. 1600-1

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Eis, pois, o porquê de um princípio de texto tão excêntrico: vem da figura de Saulo a experiência da vocação propriamente dita, de toda e qualquer uma, sem que lhe escapem nem mesmo os escritores, nem mesmo os artistas. Parecerá estranho dizê-lo ante a imagem de luminosidade sobrenatural que envolve a experiência paulina, mas Paulo tinha — por mais excêntrico que seja lembrá-lo — carne, Paulo tinha ossos que reverberassem a queda.

Quem for de carne e osso, então, viverá experiência semelhante à do autor. Provavelmente recordar-se-á de ter experimentado alguma reverência ante os livros quando da infância, ou de ter intuído certa aura ao redor de lombadas; poderá, na adolescência, ter refinado esse assombro com aquelas leituras que lhe inspirariam um «Sim, eis onde quero estar, onde desejo movimentar-me»; e, depois, descartado as afinidades: «Terei o perfil do crítico? Serei antes o teórico, o leitor voraz que descobre e pondera o que cada autor apenas intuíra? Ou ainda esse autor mesmo, que intui e lutará, como Drummond, com as palavras “mal rompe a manhã”?».

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Carlos Drummond de Andrade

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O poeta, o escritor em geral, o artista, terá descoberto — por caminhos semelhantes — que é este último o seu caso, não obstante sua sensibilidade o tenha levado a flertar (e consumar o flerte) com a teoria, com a crítica, com tudo o que disser respeito à palavra e à criação. No entanto, por mais racional que, em tempos de proeminência científica, venha a soar termo como «descoberta», ele jamais a experimentará como a descoberta dos cientistas: pouco importa se é maior ou menor seu esforço; descobre antes que é chamado — sente que é chamado, que deve responder a algo que murmura seu nome e que terá de exprimir em luta, pois a palavra é seu amor e seu obstáculo, seu caminho e a aridez do caminho.

Há, em suma, o processo universal da descoberta: o poeta terá encontrado seu Ananias, terá sua Arábia, seu Tiago e seu Pedro; mas também conhecerá a experiência luminosa e anterior do alto, o chamado de uma luz que em alguma medida o cega, que lhe parece toda independente e que ele carregará consigo e tentará reproduzir. A essa luz poderá conferir os nomes que mais lhe apetecerem —muitos já foram dados —, mas não muda o fato de que é preciso vê-la e deter-se nela por um instante sequer, não muda seu quê de contemplação e espanto, o fitar de olhos ante um desconhecido que precisa reconhecer. Ao cair do cavalo, também ele diz: «Que queres que faça?».

Explica-se deste modo o duplo espanto que o acomete quando encontra um breve poema de Ferreira Gullar na edição brasileira do simpático Livro das virtudes, de William Bennett: o primeiro, é claro, virá da escolha mesma realizada pela adaptadora desta edição nacional (Ana Maria Machado, ao que parece): um poema do teor de «Subversiva» num livro que convencionou-se utilizar sobretudo com crianças e jovens… Depois, porque os fortes versos iniciais do texto são o resumo, a expressão concisa, da experiência de todo poeta ante esse vislumbre que é também seu chamado:

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A poesia

Quando chega

Não respeita nada.

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Nem pai nem mãe.

Quando ela chega

De qualquer de seus abismos

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Desconhece o Estado e a Sociedade Civil

Infringe o Código de Águas

Relincha […].
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À luz, Gullar chama propriamente «poesia»: não tem amarras, impõe-se. A quem aí se detivesse, portanto, também contra ele se poderia lançar o desconcerto que uma ideia como a dos parágrafos paulinos deste texto suscita a ouvidos pouco transcendentes: «Uma arte desencarnada, então?».

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Ferreira Gullar

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Sim, seria mesmo uma contradição em termos. Ocorre que perguntas assim vêm de tempos que, além da pouca sensibilidade para qualquer transcendência, perdeu toda sensibilidade para a contemplação: e assim esqueceu que contemplação e ação são assaz próximas e que aquela conferirá à produção sua densidade neste mundo. Somente se presos ao tronco os ramos terão a seiva; trata-se não tanto de um resquício de romantismo quanto do reconhecimento de uma dinâmica própria à produção da arte.

Obviamente, não se deve confundir essa dinâmica com afetação de solenidade, com uma liturgia verbal que se identificasse com a alta cultura… de há séculos — e esse, a propósito, é erro um tanto comum: bastaria, como refutação, uma breve lista dos grandes dos séculos XIX e XX. A simplicidade da linguagem, um aparente «desleixo» de versos brancos e livres — tudo isso conserva o vigor da luminosidade inicial quando dela não se afasta, quando é dela alimentado. Eis por que Adélia pode fazer algo grande a partir da limpeza de um peixe; Cecília, de um lenço; Montale, de um campo de limões; e Szymborska, de um inseto morto que encontrara no solo.

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Wis?awa Szymborska

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Portanto, na poesia, nada daquela equivalência retórica à moda de Cícero que poderia exigir para o simples uma linguagem sem peso: na arte o peso vem do próprio chamado e toca a tudo, do peixe aos limões, do lenço ao besouro, bem como à máquina do mundo que se revela e não é recebida. Por que, então, a continuidade do poema de Gullar soará assaz — é forçoso reconhecê-lo — «anticlimática» ao leitor? Por que lhe repulsa? Basta lê-lo: a poesia relincha

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Como puta

Nova

Em frente ao Palácio da Alvorada.

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E só depois

Reconsidera: beija

Nos olhos os que ganham mal

Embala no colo

Os que têm sede de felicidade

E de justiça.

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E promete incendiar o país.

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Ora, a poesia não pede a linguagem do sentimentalismo que o senso comum costuma atribuir a ela. Não há de estar aí o incômodo profundo. Onde será, pois? A resposta é mesmo difícil, uma vez que é de início intuitiva e se estará sempre sob o risco de desejar grandes ares metafísicos e intelectuais – sob o risco da presunção. Além disso, o próprio «reconsiderar» da poesia traz ares de ternura: «beija nos olhos», «embala». De onde o incômodo?

Com efeito, não se trata de nada daquilo: trata-se de que a «puta»  e os que «ganham mal», de que «os que têm sede de felicidade/ e de justiça», não deixam atravessar a luz primeva; não se escuta o chamado inicial da beleza presentes logo ali, nos versos acima, vinda de «qualquer de seus abismos». De repente, não há mais abismo, não há mais essa imensidão que fala ao coração humano porque só uma imensidão o preenche. Não há janela aberta nenhuma para fora da própria puta, dos que ganham mal e dos sedentos de felicidade. Formam estes uma pilha de escombros que nada deixa penetrar.

Mesmo o fogo, imagem que aqui vem conveniente – pois a poesia também é chamada a sê-lo, abrasando fugazmente o leitor no momento indescritível em que ela tem seu impacto, em que ela se faz presente por meio das palavras. E, como fogo rápido, queima neste movimento para o alto: sobe e some. É bastante revelador do anticlímax de «Subversiva» que esse fogo se alastre, antes, na horizontal, prometendo «incendiar o país». A transcendência dá lugar ao panfletarismo: um panfletarismo que nada tem de humano. É animal. Relincha «como puta», quando a beleza é feita para o que o homem tem de menos selvagem: para a nobreza de sua alma, para sua magnanimidade.

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Detalhe d’A Conversão de São Paulo, de Caravaggio

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Hugo Langone

Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7Letras, 2015), A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã (Filocalia, 2017).