SociedadeTelevisão

Black Mirror entendeu melhor do que ninguém os justiçamentos na atualidade

por Murilo Cleto

Quase não se fala de outra coisa nessa Copa do Mundo. Desde que teve início o maior evento esportivo do planeta, as imagens de torcedores visitantes abordando mulheres de modo inadequado na Rússia passaram a circular com força no Brasil, reacendendo, no novo espaço público nacional, debates sobre a militância identitária e o justiçamento virtual.

Um a um, os torcedores foram identificados e, em poucas horas, já se tinha à disposição uma ficha corrida de todos eles: um devia pensão alimentícia, outro foi preso outrora pela Polícia Federal e assim por diante. Teve quem precisou se justificar por já ter ostentado um maço de dólares numa fotografia publicada “por engano”, segundo alegado, nas redes sociais. 

Pressionada pela repercussão, a Latam anunciou a demissão de um funcionário que estava presente num dos vídeos. Já a PM-SC declarou que vai abrir um processo administrativo para apurar a conduta do policial da corporação que também participa do ato. A OAB-PE emitiu nota de repúdio e disse que vai investigar o comportamento de um membro na Rússia.

Esse não é nem de longe o primeiro – e certamente não será o último – episódio de justiçamento que tem a internet como palco. Em A vítima tem sempre razão? (Todavia, 2017), o ensaísta Francisco Bosco discute especificamente seis deles no Brasil. A despeito das diferenças, quase todos trouxeram desdobramentos bastante reais para os envolvidos. Em escala global, o jornalista britânico Jon Ronson passeia por casos de humilhações públicas no livro Humilhado: como a era da internet mudou o julgamento político (Best Seller, 2015). 

O mais emblemático deles, sem dúvidas, foi o de Justine Sacco, que teve a vida devastada depois de um tuíte que era para ser irônico e que acabou se tornando símbolo do racismo mais tacanho. Numa escala em Londres, Justine, que viajava para a África do Sul visitar a família, disse para os seus 170 seguidores: “Partindo para a África. Espero não pegar Aids. Brincadeirinha. Sou branca!”. Quando desembarcou na Cidade do Cabo, 11 horas depois, era trending topic número 1 do Twitter e já tinha sido demitida. Inúmeras hashtags ironizavam sua chegada e um usuário chegou mesmo a ir até o aeroporto para fotografá-la e jogar a imagem na internet.

Mas foi uma série de ficção científica que conseguiu representar melhor do que ninguém a dinâmica dos justiçamentos virtuais no mundo contemporâneo. Black Mirror é uma distopia perturbadora porque, diferentemente de outras produções do gênero, não se passa num mundo caindo aos pedaços em que os seres humanos demonstram o pior de si depois de forçados a viver o tempo todo no limite da sobrevivência. Na série – ou na maioria dos episódios – tudo está no lugar: as coisas funcionam, não falta comida e a democracia está tão presente que as eleições chegam a ser pano de fundo de uma das tramas.

Em Nosedive, primeiro episódio da terceira temporada, Lacie está no escritório quando é surpreendida pelo colega de trabalho Chester, que a presenteia com um smoothie. Ela agradece e retribui a gentileza com 5 estrelas – nota máxima num sistema virtual da avaliações a que todos estão submetidos. Visivelmente nervoso, ele agradece e sai. Quando já não é possível que mais alguém ouça, outro colega chama a atenção de Lacie: “nós meio que não estamos falando com Ches”. Ela, surpresa, responde: “3,1? O que aconteceu?”. “Ele e Gordon terminaram”, explica o amigo. Lacie, então, lamenta: “Ah, coitado do Ches”. Mas é novamente repreendida pelo informante: “Não, não, não, não, não… Nós estamos do lado do Gordon”. Olho de volta para o celular, e Lacie percebe que foi negativada pelos colegas que a viram sendo simpática com Chester. Temendo novas retaliações, Lacie ignora quando Chester está do lado de fora da empresa porque a queda brutal de avaliação o impede de entrar. Sem sucesso, ele pede para que ela o avalie bem de novo. Ela pede desculpas e diz que não pode ajudar. E não pode mesmo. Fazê-lo significaria destruir a própria reputação.

Em maior ou menor grau, quase todos os episódios da série tratam de justiçamentos ou humilhações públicas. E existe uma razão para isso: no regime de iluminação permanente que a vida no capitalismo desregulamentado 24/7 exige, não se pode enxergar qualquer possibilidade de justiça fora do palco. Porque, de fato, não há vida a não ser nele. Mas, diferentemente de quando Guy Debord escreveu, agora todo mundo é parte ativa – produtora e consumidora, portanto – do espetáculo. 

Esse tipo de regime estimula, evidentemente, que todos os conflitos sociais e mesmo pessoais sejam resolvidos no campo da performance. Quem milita na internet o faz sabendo de antemão quase com exatidão quem aplaude e quem vaia. E, motivado por essa percepção, alinha o posicionamento não raro em direção às soluções mais radicais. Porque numa batalha performática há pouco ou nenhum espaço para meios-termos e ponderações, já que a polarização sugou quase tudo que aparece pela frente.

E é difícil imaginar que essas performances de justiça social ocupariam papel tão central nessa nova cultura pública se as instituições, bem como a democracia, não estivessem em frangalhos. The Waldo Moment (2×03) passeia por esse processo de deterioração das instâncias de mediação. No episódio, um ursinho digital vira celebridade ao desafiar abertamente na TV políticos do establishment com brincadeiras jocosas e completamente desprovidas de crítica. Waldo age como um troll bruto e ignorante da internet. Impulsionado pela indignação das redes sociais, fica mais famoso do que nunca e até disputa as eleições com outros dois candidatos do sistema. Acaba derrotado nas urnas, mas dispara enquanto, vá lá, ideia. 

Waldo é a síntese caricatural – mas cada vez mais comum – de uma potência que não se vê representada em quaisquer esferas do poder institucional e chega mesmo a utilizar suas decisões como evidências ao contrário num sintomático recurso instrumental retórico: se o poder decidiu em favor de x, a razão está com y. Isso só é possível – pelo menos em alguma escala significativa – se a percepção de que o poder está todo corrompido for geral. No caso do Brasil, nem seria preciso dizer: predomina à direita e à esquerda. E é nesse vácuo de legitimidade que a força do justiceiro se impõe. Não por acaso, ele quase sempre está exigindo pedidos de desculpa. Não porque está disposto a desculpar – e a experiência tem demonstrado que não desculpa mesmo –, mas porque precisa ter a autoridade reconhecida. 

Essa é a combinação ideal para os justiçamentos na história do tempo presente. De um lado a desmoralização completa das instituições que têm por função mediar conflitos e, de outro, o narcisismo. O narcisismo, por sua vez, contribui para os justiçamentos online – também chamados de linchamentos virtuais – por duas razões. Primeiro, porque sabe-se que não existe forma mais eficaz de punir agora do que ferindo a imagem do supliciado da vez, já que as fronteiras entre público e privado, sujeito e produção, e mesmo produção e consumo foram desfeitas. Em Shut Up and Dance (3×03), por exemplo, a chantagem dos hackers que flagraram Kenny se masturbando com pornografia infantil não é entregá-lo à polícia, mas divulgar as imagens na internet. Segundo, porque o narcisismo impele os sujeitos a se lançarem ou a permanecerem sob os holofotes forjando uma autoimagem politicamente correta que não admite mais injustiças e, o mais importante, não espera que as instituições as resolvam por conta própria, pressionando-as em direção à sentença que julga mais adequada, quase sempre vislumbrada por algum alargamento do código penal. Condenar publicamente – conclamando escrachos e boicotes, exigindo cadeia e demissões – tornou-se uma das principais estratégias de capitalização pessoal. 

Em White Bear (2×02), Victoria Skillane é condenada a reviver todos os dias uma rotina de violência psicológica que a faz fugir de homens encapuzados fortemente armados sem saber ao menos quem é ou onde está, enquanto todos à sua volta registram tudo com o celular para, somente ao final de cada noite, ter a verdade revelada: ela havia participado do assassinato brutal de uma criança. A comunidade decidiu então sentenciá-la a reviver diariamente esse teatro. Porque no espetáculo a dívida nunca pode ser paga por completo. E o que se vê nos olhos dos moradores do vilarejo é que a linha entre o desejo de justiça e o gozo de quem suplicia também se apagou. 

O block virtual à vida real.

O linchador virtual rejeita, claro, a alcunha. Aciona a história para lembrar que o termo remete à chamada lei de Lynch, que se referia especificamente aos massacres contra índios e negros. Jacta-se de não amarrar ninguém no poste, como fazem os bárbaros. Ignora, no entanto, que um episódio de linchamento virtual, porque regido pelo espetáculo narcisista, nunca se restringe somente ao alvo de alguma acusação, seja ela qual for, mas também àqueles que ousam romper a barreira que isola o linchado do restante do mundo e anulam sua morte social, que é metaforizada em White Christmas (2×04) através da transposição do block virtual à vida real. 

Há também nisso um imperativo narcísico: não apenas condenar, mas romper laços com supliciados torna-se uma obrigação moral. Quem não o faz por consciência o faz pelo medo – bastante justificado – de ser o próximo alvo. E, numa sociedade que pensa em termos algorítmicos, não condenar passou a ser igual a defender ou, como se diz agora com frequência, “passar pano”.

Justiceiros online e linchadores virtuais, de fato, não matam – a não ser por inanição. Black Mirror captou essa dinâmica muito bem. A internet também, e parece ter gostado bastante disso. 

Para consolar Justine Sacco, Jon Ronson disse que às vezes é preciso que se atinja o ápice da brutalidade para que as pessoas passem a agir de modo sensato. Pode ser. O problema vai ser descobrir se esse auge existe.

Murilo Cleto é Historiador, especialista em História Cultural e mestre em Ciências Humanas. Atualmente circula pelo interior e pelo litoral do estado de São Paulo com a palestra “Black Mirror e os sintomas do mal-estar contemporâneo” através do programa Pontos MIS, do Museu da Imagem e do Som de São Paulo.