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Bolsonaro e a ditadura militar: semelhanças e diferenças

por Caio Vioto

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Durante toda sua carreira política, Bolsonaro foi um grande apologista da ditadura militar. Por muito tempo foi talvez o único no Congresso ou, pelo menos, o mais barulhento. Quando sua candidatura começou a se consolidar, foram automáticas as comparações e projeções de seu possível governo com o período comandado pelos militares. No entanto, embora muitos reproduzam, fora de contexto, a frase de Marx que diz que “a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa”, a realidade é mais complexa e irregular. Da mesma forma, dado que a natureza científica da História é lidar com a especificidade no tempo, comparações entre períodos históricos são sempre complicadas e dão muitas margens a equívocos e superficialidades. Ainda assim, é possível traçar algumas diferenças e semelhanças, não pela simples comparação entre um período e outro, mas pela abordagem de ambos numa duração mais longa (as semelhanças), bem como pela ênfase em determinados aspectos da condução dos governos, onde encontraremos mais diferenças do que pontos em comum.

Desde o final do Império os militares se consolidaram como uma força perene e relevante na política brasileira, tendo sido, inclusive, os protagonistas da Proclamação da República. Ao longo da primeira fase republicana, os militares sempre estiveram presentes, elegendo um presidente, Hermes da Fonseca, além dos dois primeiros, Deodoro e Floriano, num curto período ditatorial. Na década de 1920, o movimento tenentista foi um dos responsáveis pela revolução de 1930. Ainda, o castilhismo riograndense há décadas possuía identificação ideológica com o positivismo militarista. Após 1945, o primeiro presidente foi militar: Eurico Gaspar Dutra. Nos governos seguintes, Getúlio e JK, parte dos militares fizeram oposição ferrenha, com direito a tentativas de golpe. Em 1964, finalmente, num contexto de crise política, crise econômica e paralisia decisória, os militares tomaram oficial e diretamente o poder, com maciço apoio de setores da sociedade civil, como grande parte do Congresso, imprensa e empresariado. Os degastes no final da ditadura, a robustez institucional da Constituição de 1988 e  a recomposição de forças políticas no processo de redemocratização trouxeram a percepção de que os militares estavam definitivamente afastados da condução política do país. Porém, o fenômeno Bolsonaro, ainda que pouco previsível, não surpreendeu aqueles que conheciam o papel dos militares na história política nacional.

Nesse ponto é possível identificar aspectos de semelhança. São muitas as interpretações das causas do golpe militar. Autores identificados com uma abordagem estruturalista, como Celso Furtado e Florestan Fernandes, creditaram a ruptura institucional à posição periférica e dependente do Brasil no cenário internacional, na qual as elites conservadoras e agrárias, especialmente, diante da ascensão de forças políticas progressistas e da classe trabalhadora urbana, necessitavam do autoritarismo para manter seu poder. Nas décadas de 1970 e 1980, os cientistas políticos Maria do Carmo Campello de Souza e Wanderley Guilherme dos Santos procuraram na esfera propriamente política, como nas relações entre partidos e entre Executivo e Legislativo, as origens da paralisia decisória que abriu espaço para a violência política e quebra das regras do jogo por parte das Forças Armadas. Mais recentemente, e com algum distanciamento temporal, historiadores, a exemplo de Denise Rollemberg, Samantha Quadrat e Marcos Napolitano, passaram a se debruçar sobre a construção da legitimidade social dos regimes ditatoriais, entendendo-os para além da coerção, da violência e da manipulação da opinião pública, ressaltando o papel de valores e crenças difusos na sociedade como fatores relevantes para a explicação de fenômenos políticos autoritários.

Ao traçarmos paralelos com o presente, é inegável o amplo apoio da sociedade que fez Bolsonaro ser eleito. Apesar dessa constatação, as causas podem ser variadas, como o antipetismo, a descrença na “política tradicional”, o conservadorismo do “Brasil profundo”, as redes sociais. Talvez o decorrer do tempo e pesquisas mais aprofundadas forneçam, no futuro, respostas mais consistentes. De qualquer forma, neste momento, é possível afirmar que o governo Bolsonaro, além da retórica, não entregou quase nada do que prometeu e muito menos do que era esperado pelos que depositaram confiança no candidato. Diante disso, é possível começar a estabelecer diferenças significativas entre o atual governo e o regime militar.

Com exceção da repressão violenta e das ilegalidades cometidas pela ditadura, os militares possuíam um conjunto de objetivos: restaurar a “ordem”, o que significava afastar das posições de liderança os políticos civis (mesmo os que apoiaram o golpe, cujo exemplo mais emblemático é Carlos Lacerda), a fim de evitar os “desgastes” das disputas políticas; modernizar o Estado e promover o desenvolvimento nacional. Assim, pode-se resumir em uma expressão as pretensões do regime militar: a “ideologia tecnoburocrática”, ou seja, de cima para baixo, longe da “política”, pretendia-se fazer do Brasil um país “ordeiro” e “desenvolvido”. Para isso, os militares mobilizaram quadros considerados tecnicamente qualificados e que já mantinham relações com lideranças das Forças Armadas, através da ESG (Escola Superior de Guerra) e do IPES (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais). Os dois últimos agiam como think tanks que aglutinavam civis (empresários, economistas, políticos) e militares descontentes com os governos “populistas” do período 1945-1964. Quando assumiram o poder, os dois grupos formalizaram uma aliança, chamada pelo historiador Thomas Skidmore de “militar-tecnoburocrática”. Nessa nova configuração, os militares comandariam, “de cima”, as instituições políticas, enquanto a tecnoburocracia formularia políticas públicas nas diversas áreas civis, afastadas das “pressões políticas”.

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(Arquivo Nacional)

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Podemos notar, até aqui, uma diferença substancial em relação ao governo Bolsonaro: até ganhar as eleições de 2018, o atual presidente não possuía vínculos consistentes com quaisquer técnicos ou lideranças políticas, com exceção de alguns generais. Isso pode ser ilustrado pelo fato de que Bolsonaro teve dificuldades de conseguir um partido, um candidato a vice e de montar sua equipe ministerial. Paulo Guedes, talvez o ministro mais importante do governo e principal “promessa” técnica do governo, entrou na equipe tardiamente e depois da recusa de outros economistas mais conhecidos e experientes nas funções públicas. A inexperiência de Guedes contrasta com o papel de figuras da tecnoburocracia civil do regime militar como Roberto Campos, Octavio Bulhões, Hélio Beltrão, Delfim Netto, Reis Velloso e Mario Henrique Simonsen, todos com experiência administrativa pregressa e/ou atuantes no debate público e na esfera acadêmica. Outro aspecto de divergência é a centralização ministerial. Enquanto Guedes se tornou um “superministro da Economia”, a ditadura militar procurou descentralizar e delegar funções, criando o Ministério do Planejamento e Coordenação Geral (MPCG), que deveria supervisionar as outras pastas e, juntamente com o Ministério da Fazenda, ditar o ritmo da política econômica, por meio dos planos nacional de desenvolvimento. Ademais, havia uma divisão clara entre os Ministérios militares, ocupados pelo alto escalão das Forças Armadas, e os civis, ocupados usualmente por tecnoburocratas e políticos, sendo raras as presenças de militares.

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Roberto Campos (Roberta Dabdab/Estadão Conteúdo)

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Com isso, o regime pretendia conseguir legitimidade: os militares ocupariam o comando político e suas áreas de expertise, mas contariam com os civis — capacitados e experientes — em diversos setores importantes. Nada mais contrastante com o governo atual, no qual militares e outsiders civis ocupam Ministérios totalmente estranhos à sua formação e áreas de atuação.  Da mesma forma, apesar da ruptura institucional e dos diversos cerceamentos civis e políticos característicos do autoritarismo, como cassação de mandatos, restrição de partidos, de eleições e eventuais fechamentos do Congresso, o regime militar procurava manter uma “fachada” de institucionalidade democrática, por meio, por exemplo, de uma oposição política formal, o MDB, e da continuidade do STF, apesar do aparelhamento e cooptação deste último. No governo Bolsonaro ocorre quase o exato inverso: apesar da formalidade democrática e institucional, o chefe do Executivo promove tensões internas e externas a todo momento, desde a falta de partido e coalizão consistente, até o ataque direto aos outros Poderes.

Obviamente, nada disso exime o regime militar de seu caráter ditatorial, das violações de direitos humanos e da falta de transparência político-administrativa inerente ao autoritarismo. De qualquer modo, o que procuramos salientar é que a ditadura militar referida por Bolsonaro e por muitos de seus seguidores não passa de uma idealização, que não se atenta aos fatos e dinâmicas histórico-políticas do período. Diante disso, torna-se notável e intrigante a constatação de que governos formalmente democráticos podem não somente possuir o mesmo espírito de governos autoritários, mas também podem vir a “superá-los” em termos de crenças e disposições autocráticas.

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Caio César Vioto de Andrade

Caio César Vioto de Andrade é Doutor em História e Cultura Política pela UNESP-Franca.