Literatura

A caixa mágica de Woody Allen em “Apropos of Nothing”

por Thiago Blumenthal

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Teste rápido: em quem você pensa quando ouve alguém dizer que a vida não tem sentido? Pode lhe vir à mente Camus. OK. A minha priminha de treze anos postou em alguma rede social algo sobre Camus dias desses. Um senhor textão, muitos corações nos comments. Mas o coração de verdade não busca o óbvio, mas antes o caos e o imprevisível.

Talvez Kant? Resposta errada também. E não vamos debater o conceito de ética, virtude, imperativo categórico a uma hora dessas. Há um monstro do lado de fora da janela que me faz sair de casa envolto em um escafandro. Não há condição alguma de pensar em Kant ou filosoficamente nesses dias. As humanidades já estavam em uma UTI sem respiradores antes mesmo da pandemia, não é agora que vamos recorrer aos tomos filosóficos, que sequer temos, da estante cheia de livros, aquela que só temos no Instagram e muito provavelmente pertence a outrem.

Não é preciso ler “Apropos of Nothing”, autobiografia recém-lançada de Woody Allen (ainda sem tradução no Brasil), para pensarmos no cineasta quando a conversa entorna pro sentido da vida. É pegar qualquer um de suas dezenas de filmes e deparar-se com o perturbador questionamento. Evidente que tantos pensadores, artistas, amigos, sua mãe (ou minha, no caso), já lhe disseram isso, com ou sem muito fundamento. Com ou sem muita seriedade. Contudo é Allen que, sem muito esforço, parece retorcer o sentido da vida e iluminá-lo sob a luz correta, a do riso que não se leva a sério – a propósito do título do livro.

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Allen em “Take the Money and Run”, 1969

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Nunca fui nenhum gênio ou enciclopédia ambulante, mas sei uma coisa ou outra, que, ainda que porcamente, me ajudam a distinguir Malba de Júlio e a pensar toda santa noite sobre o sentido da vida. Like Holden, diz o Woody Allen, evito entrar into all that David Copperfield kind of crap. Em uma espécie de revisão crítica da psicanálise, o protagonista mais célebre de Salinger dialoga bem com o cineasta, ou muitos de seus personagens (ou personas) e não é por acaso que é assim que ele começa o seu livro (ambos). Buscar na infância, ou nas memórias ruidosas desta, uma chave para compreender a nossa vida, além de custar caro, demanda a sensibilidade de um Proust. Ou passaremos ridículo.

Ao contar sua vida, sob sua própria pena, Allen não busca respostas como um Alex Portnoy alucinado pela mãe, pela Macaca, pelo pedaço de fígado bovino (me pergunto se kosher) com o qual se masturba. O autor afirma logo de cara que o faz para deixar as coisas mais interessantes – seus pais rendem uma história muito melhor do que a dele. Como um Python, não há nada assim de tão especial: tente ser legal com as pessoas, não coma demais, leia um bom livro de vez em quando, exercite-se um tantinho, vivendo harmonicamente com todos os povos de todos os credos do mundo. Fácil.

Quando sugere no título essa máxima pythoniana, com essa redução da própria vida a um nada enorme e cansativo o autor não só ele recupera um de seus temas preferidos – sim, ele, o sentido da vida –, como busca entreter o leitor da mesma maneira que o faz em seus tantos filmes. Daí a ele descobrir a mágica, o ilusionismo, são dois palitos, ou, mais exatamente, algo em torno de quatro ou cinco páginas do começo. Fazer desaparecer coisas era uma maneira de lidar com o tédio e a solidão de lidar com a vida, e com as outras pessoas – ao longo de sua vida, revela, e já sabemos disso, que o trompete e a escrita substituiriam o ilusionismo da infância e adolescência.

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(Wikimedia Commons)

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É curioso capturar tantos elementos de seus filmes em diversas passagens do livro, em especial nas primeiras partes. Não que a melhor maneira de conhecer um artista seja por sua arte, mas que está tudo ali, quando ele não mente, quando produz algo genuíno, uma história ou uma paisagem que contenha em si, para além de uma reprodução mimética da vida, uma ilha mental mais ou menos estável com um náufrago com o peito carregado de um pouco de paixão, um pouco de saudade, um pouco de romance.

Bem compartimentado, como são seus filmes, o livro avança até chegar às personagens polêmicas de sua vida, principalmente Mia Farrow. O propósito deste texto não é contar tudo o que ele tem a dizer sobre as acusações que lhe perseguem até hoje – nem acreditar em sua versão ou debatê-la. As redes sociais estão aí para isso e, por extensão ou retenção, a sociedade como sempre foi.

Curiosamente Mia aparece bem cedo no livro, em uma digressão sobre funerais: Allen não vai a funerais. O único cadáver que viu de perto foi o de Thelonious Monk, quando ele e Mia estavam a caminho do restaurante Elaine’s para jantar e se depararam com o velório do pianista na Terceira Avenida, em Manhattan. Óbvio que o leitor já pensa “opa, olha a Mia aí”, no que Allen adianta que ela deveria ter percebido que estava saindo com o cara errado, mas, calma lá, ele já vai chegar em toda a mishigas do caso judicial. É uma maneira de conversar com o leitor, que Allen sabe que já sabe de tudo ou quase tudo de sua vida.

Voltando ao título, é como conversar com um velho amigo. Sabemos tudo dele, presenciamos de perto, ouvimos tantas vezes suas confissões, e até o apoiamos em suas presepadas. Mas ele te chama pra jantar e diz “olha aqui, deixa eu te contar como tudo isso que você sabe de mim não vale é nada”. A gente sabe de tudo, a gente só não sabe que não vale nada. A mágica, dessa vez narrativa, sem cartola ou sem mães sumindo dentro de uma caixa chinesa, reside nessa recuperação de fatos sem nenhum grande propósito para a humanidade, ou para essa sua amizade em especial. Apenas para ter uma noite um pouco mais divertida que as outras do nosso doloroso dia a dia.

As mulheres todas estão ali, de Diane Keaton a Scarlett Johansson, é claro, e superam um tanto a chatice da deprimente história com Mia. Nesse sentido, a crítica do New York Times detonou o livro: acha que o autor faz questão de adjetivar toda e qualquer mulher que apareça em sua vida. Bem, como todo relato pessoal, há momentos extravagantes – e o que esperar de Allen? Entretanto acho um exagero ver algum tipo de misoginia em chamar Scarlett de “an exciting actress, a natural movie star, real intelligence, quick and funny”, quando a conhece para o papel de “Match Point” há pouco mais de uma década (que sorte aliás de ela ter substituído Kate Winslet, originalmente prevista para ser o par de Jonathan Rhys).

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Diane Keaton, Woody Allen e Jerry Lacy, à época de “Play It Again, Sam”

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“Not only she was gifted and beautiful, but sexually she was radioactive”, prossegue. Entendo a birra do New York Times. Mas somente um pouco. Tal descrição serve para corroborar com o fato de que era perfeita para o papel – se o leitor ou a leitora não viu “Match Point” e está aqui buscando algo sobre Mia Farrow, lamento que tenha perdido esses minutinhos da vida, me desculpo. Quem viu o filme sabe. Sexually radioactive.

Sobre Mia, ela diz que o então companheiro abusara sexualmente de Dylan, uma de suas filhas adotivas. Em “Apropos of Nothing”, ele diz que, bem, Mia não batia muito bem da cabeça. Não que o cineasta também bata muito bem da cabeça, claro. Quem sou eu para dizer?

Quem diz a verdade? Importa? O que pouca gente sabe é que Allen foi inocentado por duas investigações conduzidas pela clínica de abuso sexual infantil de Yale (à qual a própria Mia, aliás, levou primeiramente o caso) e depois pelo departamento de child welfare do Estado de NY – em quatorze meses de investigação. Ambas as instituições detectaram nos depoimentos de Mia contradições a ponto do ridículo, como quando ela afirma que, em determinado momento, Dylan correu para abraçar a irmã Lark no quarto ao lado, em desespero. Só que Lark não se encontrava em casa naquela noite. Ao que Mia responde “abraçar espiritualmente, quero dizer”. Eu consigo imaginar essas palavras saindo da boca de Mia lindamente. Abraçar espiritualmente.

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(Ann Clifford/DMI/Time Life Pictures/Getty Images)

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O leitor que buscar no livro detalhes picantes sobre o rolo gigante com Mia encontrará. Aquele que buscar detalhes deliciosos de suas produções também encontrará. Para quem quer saber como foi a infância ou a vida de Allen antes de tornar-se famoso, mesma coisa. E quem quiser uma história decentemente contada, em um estilo que parecemos ouvir sua voz, em uma sintaxe que parece ter saído de um monólogo de Harry Block.

O livro entrega tudo, em um estilo de um memoir calculado à exaustão, como parecem ser seus filmes, mesmo aqueles sem tanta inspiração. Para um artista que se encontra em uma guerra ingrata com o mercado, não deixa de ser um ato de bravura lançar uma autobiografia, contra tudo e todos. Allen, apesar de senil, não é bobo para saber que será detonado por cada linha. Triste fim, é verdade, como quando Mia Farrow o deixa pelo babaca do Alan Alda em “Crimes e Pecados”. Desmoralizado, detonado, diante de sua ex extremamente feliz com o cara mais chato do pedaço.

Seu último filme teve problemas de distribuição, e, cancelado nos EUA, virou um fiasco, mesmo sendo excelente (a cena final com Selena Gomez em um dos cantos mais legais – e menos filmados – do Central Park é ingênua, bonita, simples, e sonhadora). A produção de sua série para a Amazon também sofreu enroscos contratuais causados por uma onda de boicote promovida pela família Farrow, que reacendeu um caso encerrado décadas depois, valendo-se de movimentos como o #MeToo, que, embora seja de uma grandeza de derrubar monstros da indústria como Harvey Weinstein, parece cego em sua fúria e fere inocentes, como um Golem que deveria proteger um vilarejo mas acaba por matar o rabino. Daí pro livro também ser cancelado em cima do lançamento pela editora que deveria sair, do grupo Hachette, foi coisa rápida.

Muitos leitores talvez queiram reaquecer o debate, que já se tornou chato, exaustivo e sem sentido, de separar o artista da obra. Não é o caso de Allen, caso eu entrasse nesse mérito. Allen não é um Polanski. E, por mais imperfeito que seja em sua vida, em seus atos, em sua dificuldade em lidar com o caos que está para fora da tela, ou para fora da página, a arte que depender de uma madre Teresa está fadada ao fracasso. É preciso absorver o caos da tela do cinema, da página do livro. A realidade, em todo o sentido subjetivo e complexo do termo, não será explicada ou, antes, resolvida pelo texto, pelo diálogo, pela olhar de Humphrey Bogart para Ingrid Bergman.

Me lembro da ideia da YouYuber gatinha, ou do professor de escrita criativa, que diz que um livro, uma página, contém o universo e nos ajuda a explicar o caos da realidade lá fora. Uma bonita “pensata”. Uma frase de efeito. Quase uma cantada. Bom, infelizmente nunca me ajudou, como parece propor Allen, e me acostumei com o caos dentro da própria página mesmo e por isso acho “Apropos of Nothing” tão apropriado. Como uma página do Talmude, está tudo ali, na margem, a partir de uma passagem central, que se irradia de maneira disruptiva a todos os cantos. Mas nunca para fora.

Sua mãe será desfeita em pedacinhos dentro de uma caixa desenhada de dragões de um chinês e desaparecer. Não por acaso Allen, em “Oedipus Wrecks”, larga Mia no fim do curta-metragem e fica com a mística que se veste de bruxa. E o problemão se resolve, como sabemos, mesmo nada fazendo sentido. O truque do ladrão, o truque da farsante que bota anúncios no NY Post – é por ela que você vai se apaixonar. Querer entender, explicar ou resolver o que raios sua mãe gigante está fazendo lá fora, nos céus de Manhattan, não ajuda em nada. A magia, a ilusão, o amor – a maior de todas as ilusões – se fecham perfeitamente. Exigir mais que isso é exigir um milagre. Ou um deus perverso que gargalha às custas do pobre Jó mas também consegue fazer pequenos diamantes como Mariel Hemingway. Ou exigir um Proust, capaz de manipular os sentidos. Não é sempre que temos isso no bolso.

What’s the point, perguntaria Allen. The point is that que no Talmude tudo se destroça, arrebenta, e ninguém tem razão. Nem Deus. Só há o infinito daquela página, com algo supostamente sagrado ou verdadeiro no meio e a margem recheada de digressões, discussões, quebra-pau. A propósito de nada, como Allen sempre quis mostrar em seus filmes, muito antes de lançar esse livro.

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(Gari Garaialde/Getty Images)

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Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.