Poesia

Aos filhos de Jorge de Sena

por Caio Gagliardi

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Em 1992, Jorge Fernandes da Silveira, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos nossos principais pesquisadores da poesia portuguesa contemporânea, estava em Santa Bárbara (EUA), atuando como Professor Visitante na Universidade da Califórnia. Ele substituiria temporariamente a catedrática portuguesa Maria de Lourdes Belchior, que, desde 1978, iniciara um período de regência de disciplinas na área das literaturas de língua portuguesa, revezando-se entre Lisboa e Santa Bárbara. A turma de Pós-Graduação que o professor recém-chegado assumira era, em suas palavras, “notável”. Entre os seus alunos estavam a filha mais velha de Jorge de Sena, Isabel, que se tornaria professora no Sarah Lawrence College (NY), além de Jorge Fazenda Lourenço, que realizava uma extensa pesquisa, a ser apresentada como Tese de Doutorado já no ano seguinte, com o título A poesia de Jorge de Sena — testemunho, metamorfose e peregrinação. Em pouco tempo, Lourenço se tornaria uma das principais referências nos estudos senianos e o coordenador editorial de sua Obra Completa. Frequentava ainda a turma Eugénia Vasques, futura professora e aclamada crítica de teatro portuguesa.

Após deixar o exílio brasileiro, em razão do Golpe de 64, Jorge de Sena se muda com Mécia e seus nove filhos para os EUA, onde passa a lecionar no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Wisconsin. A partir de 1970, Sena se torna catedrático de Literatura Comparada na Universidade de Santa Bárbara, onde permanece até a sua morte, em 78, quando é substituído por sua amiga, a professora Maria de Lourdes Belchior. Jorge Fernandes ocupava, portanto, o lugar que um dia pertencera a Jorge de Sena.

Coincidentemente, na turma de Graduação do professor Jorge Fernandes estava presente o filho mais jovem do escritor, Nuno Afonso. Aquela era a primeira vez que o novo professor trabalharia textos de Jorge de Sena em sala de aula. Entre os poemas selecionados para a ocasião, constava “Carta a meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”. Uma vez lançada à turma a pergunta estratégica, “quem gostaria de ler?”, imediatamente, do alto dos seus 19 anos, Nuno se prontificou. Para a surpresa do professor, o filho caçula do escritor se pôs a ler, tomado de visível emoção, o poema de 78 versos, deixando a todos, que se reuniam em torno de uma grande mesa, num estado de suspensão. No decorrer da leitura, a cada interpelação que o pai dirige aos filhos, Nuno respondia, comovidamente, “sim, meu pai”, o que levou aos presentes na sala, segundo as palavras do professor Jorge Fernandes, “a uma grande comunhão”.

Sena escreveu “Carta a meus filhos…” em Lisboa, a 25 de junho de 1959, um período marcado pela aflição de ter que deixar Portugal, devido à sua participação, em março daquele ano, num levante democrático mobilizado por várias camadas da população. O, assim chamado, “Golpe da Sé” foi rapidamente esmagado pela PIDE, a polícia repressora salazarista, colocando os seus protagonistas em perigo. “Carta a meus filhos…” é o último poema escrito por Sena antes de sua partida para o Brasil, onde desembarca no dia 7 de agosto, para um exílio que duraria seis anos.

O referencial explícito do poema é uma tela do pintor espanhol Francisco de Goya, intitulada Três de maio de 1808 em Madrid (1814), na qual se representa o fuzilamento de 44 camponeses espanhóis, no monte Pio, nos arredores de Madri, por soldados franceses. No total, como resposta ao levante contra a ocupação francesa, por volta de 400 madrilenhos foram assassinados pelo exército de Napoleão. Mais do que o quadro propriamente, é o evento histórico ao qual ele está associado e, em especial, o que ele simboliza, que são recuperados pelo poema.

Não surpreende que esse poema-epístola tenha sido o mais mencionado entre as dezenas de textos que compuseram as 13 listas da recente enquete sobre os “10 maiores poemas da Literatura Portuguesa Contemporânea (1941-2021)”. Dentre os 11 textos lembrados de Jorge de Sena, é este, também, o mais político. Trata-se de um de seus poemas que reclamam, com maior veemência, um compromisso ético dos homens com seu tempo histórico e a defesa da justiça e da liberdade. Dos três entrevistados brasileiros que o mencionaram, dois o classificaram em primeiro lugar, e um em segundo. Não é possível afirmar com segurança se “Carta aos meus filhos…” seria tão lembrado em outras épocas, mas é significativo que, em 2021, sob a sombra do neofascismo e com a democracia em constante ameaça em nosso país, ele fale tão alto e tão profundamente conosco. Essa é, em suma, uma carta em versos muito atual, dirigida a todos nós, filhos de Jorge de Sena.

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El Tres de Mayo de Goya

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Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

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Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue».
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa — essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
— mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga —
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

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Lisboa, 25-06-1959.

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Jorge de Sena

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Assista também à declamação do poema, realizada pela grande atriz e amiga de Jorge de Sena, Eunice Muñoz, na Basílica da Estrela, em setembro de 2009, durante a cerimônia de translação dos restos mortais do escritor para Lisboa.

Para conhecer mais sobre o autor, indicamos o site Ler Jorge de Sena, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Jorge e Mécia de Sena e Adolfo Casais Monteiro numa exposição no Recife, agosto de 1960 (Acervo UFRJ)

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Caio Gagliardi

Caio Gagliardi é professor na FFLCH e coordenador do grupo de pesquisa Estudos Pessoanos.