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Choque de realismo

por Adriano Gianturco

“Quando a crença prescritiva de que o Estado deveria agir no interesse público vira uma previsão de que sempre agirá no interesse público porque o Estado deve ser benevolente, aí nascem os problemas.” (Hillman)

Muitos hoje pensam implicitamente e explicitamente que o objetivo do estado é o bem comum, a vontade geral; que a política seja a nobre arte do compromise, da acomodação, e que a classe política representa o povo.

Quando um político se candidata com várias propostas para ajudar os últimos da sociedade, muitos pensam que o objetivo é ajudar os últimos da sociedade (e não ganhar as eleições); quando o estado implementa políticas assistencialistas para ajudar os últimos da sociedade, pensam que o objetivo é ajudar os últimos da sociedade (e não gastar dinheiro dos contribuintes para apaniguar burocratas); quando o estado cria o programa da merenda escolar, pensam que o estado quer encher a barriga de nossos filhos (e não lotear verbas a empresas parceiras); quando o estado faz infraestruturas e depois superfatura e desvia, pensam que o objetivo era nos dar estradas melhores e que a corrupção é um acidente de percurso; quando o preço dos estádios fica 156% mais caro do preestabelecido, pensam que se trata de “falta de planejamento” (e não de um planejamento calculado até demais). Quando o estado pratica o protecionismo, pensam que é para proteger a indústria nacional e não para subsidiar indiretamente empresas que não conseguem enfrentar a concorrência; quando estatiza uma indústria, pensam que a “nacionalizou” (o petróleo é “nosso” ou “do estado”?); quando censuram a grande imprensa, pensam que estão fazendo “controle social”; quando passam uma regulamentação, pensam que é para estabelecer níveis mínimos de qualidade de vida e de segurança, e não para favorecer grandes empresas (que conseguem bancar o custo) e jogar os concorrentes pequenos fora do mercado; quando faz políticas ambientalistas, pensam que é para salvar a Amazônia e o urso panda, e não para ajudar grandes empresas a jogar os concorrentes fora; eles pensam que se cobram impostos para fazer escolas e hospitais (e não o contrário); quando um político depois do outro o decepciona, eles só acham que basta trocar o político para resolver tudo, porque afinal “os políticos são ruins”, mas a política é fundamental!

Os idealistas não chegaram nessas conclusões, eles só partiram dessas premissas, no fundo nem acreditam nisso, só querem acreditar. A lista poderia continuar ao infinito, ou no mínimo até o arco-íris; o idealismo não tem limites, mas tem muita esperança.

Essa é a visão ingênua e infantil da política que começa com o idealismo platônico, passa por Hegel, pela teoria democrática e pela teoria discursiva de Habermas e chega a um menino mimado que ainda acredita em Papai Noel, porque é triste descobrir que não existe e é duro aceitar que nos mentiram por anos e anos.

Tudo isso é incentivado por uma certa visão da Filosofia Política que foca no que “deveria” ser e não no que “é”, que ensina o Contrato Social (como fato histórico e não como experimento mental) mas não o Bandido Estacionário (Olson); por uma certa didática frankfurtiana-freiriana que pergunta aos alunos sua opinião (antes de estudar), que faz debates, que os instiga a se indignar e se revoltar (e não a estudar e compreender), que diz despertar a consciência e o espírito críticos, mas sempre na mesma direção ideológica. Por um efeito cascata, tudo isso passa para a elite que estuda nas universidades, para os intelectuais orgânicos, para os jornalistas, para os formadores de opinião, até chegar aos que repetem mitos infundados como papagaios .

Ao contrário da Filosofia Política, a Ciência Política é realista. É uma rica tradição que nasce com Maquiavel, passa por Mosca, Pareto, Michels (Escola Elitista), Freund, Schmitt, Miglio, (o Realismo Político Europeu que depois se deturpará com o chamado Realismo americano das Relações Internacionais), Buchanan, Tullock, Caplan (Public Choice), Oppenheimer, De Jouvenel, Bueno de Mesquita até Rothbard (e toda a Escola Austríaca).

Nesta perspectiva, a política é simplesmente um sistema coercitivo de escolhas coletivizadas, é de “cima para baixo” (e não “de baixo para cima”) e não se baseia no consenso. O estado é uma organização que governa um determinado território (e não necessariamente para o Bem). O estado é simplesmente um conceito ao qual se atribui personalidade jurídica (ficção jurídica); ele não tem vida própria, não age, não tem intenções. Quem age são sempre e só indivíduos (individualismo metodológico). Os agentes políticos (políticos, burocratas, lobistas, players influentes) são pessoas comuns, com interesses, ambições e necessidades, eles precisam ganhar as eleições, passar no concurso, fazer carreira, trabalhar menos, ganhar dinheiro, ganhar poder e mantê-lo, distribuir favores para ser apoiado de volta: não se vira santo quando se entra em política.

A política é um jogo de poder, é feita de negociações, ameaças e favores; os políticos não representam ninguém além de si mesmos e dos interesses dos próprios apoiadores. A democracia pode virar uma “tirania da maioria”, o poder “deveria” ser do povo, mas de fato é das minorias organizadas. Apertar um botão cada 4 anos, para escolher quem depois vai decidir 4 milhões de coisas para nós, não é muita coisa; As eleições têm vários vieses e falhas (vantagem do incumbente, agenda setting, Teorema do Eleitor mediano, etc.), o eleitor é desinformado e míope, a assimetria informativa é grande, o custo de se informar é alto (ignorância racional), as questões são várias e complexas demais, e há manipulação, no final não somos nós a escolher, são eles que se fazem escolher. O mundo é altamente imperfeito, tentar melhorá-lo é bom, mas com os pés no chão.

Dando muito poder aos políticos, podem chegar Ghandi e Madre Teresa mas também Hitler e Stálin. Quanto mais poder, mais os piores são atraídos (chegando até o topo). Se o “poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”, como disse Lord Acton. Não precisamos do homem forte, mas de paredes fortes contra homens fortes (Popper), porque “o utopista começa no amor e termina no terror” (Kaleb).

O idealismo político paga, faz sentir bem, o problema é que para prescrever o justo medicamento aos nossos males, é preciso fazer antes o justo diagnóstico. E para isso precisamos de um choque de realismo.

Adriano Gianturco é professor de Ciência Política do IBMEC-MG, autor do livro O Empreendedorismo de Israel Kirzner (Editora Instituto Mises Brasil)