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Especial Benedetto Croce – A ‘Estética como Ciência da Expressão e Linguísitca Geral’ (Parte 2)

Contexto e Atualidade da ‘Estética’ de Croce

por Rodrigo de Lemos

Ao retornar à Estética como ciência da expressão e linguística geral (1902), de Benedetto Croce (1866-1952), para apresentar a edição brasileira preparada pela É Realizações (com tradução de Omayr José de Moraes Júnior), ademais de um senso natural de responsabilidade, assaltou-me uma agradável nostalgia. Trata-se de um texto que me acompanhou durante minha formação, a tal ponto que as ideias e os modos de idear que lhe são próprios se incorporaram àquele mélange adultère de tout em que começa a nossa vida mental.

Benedetto Croce em sua biblioteca. (Foto: arquivo/divulgação)

Havia dois motivos para isso, um de ordem social, o outro que respondia a intuições e a urgências pessoais. O primeiro tinha a ver com aqueles aspectos melancólicos de certos ambientes literários nos anos 90 (e além), em que se fazia sentir uma confusão suprema entre estética e política, com os critérios da última extravasando para a primeira e sufocando-a. Assim, não era raro ouvirmos da superioridade do “Navio Negreiro” de Heine frente ao de Castro Alves, porque o poema alemão teria denunciado, em suas minuciosas engrenagens, o mecanismo que ligava o tráfico de escravos ao capitalismo internacional. O afinco de Croce em separar da estética o intelectual, o útil e o moral (campos com que ela se viu tantas vezes confundida), para então delimitar no par “intuição-expressão” o terreno que lhe é próprio, surgia como um alento quando as relações adúlteras entre esses domínios se tornavam mais comuns do que deveriam, ora por mimetismo irrefletido, ora por um cultivo zeloso da confusão.

No que toca a intuições e a urgências pessoais, relato as minhas não por elas mesmas, mas no que creio serem representativas quanto a de outros. Em meio aos afetos e aos desafetos e à premência do instante, o que é essa espécie de gratia gratis data que nos toma frente ao silêncio plasmado em forma e cor numa vista de Cézanne? Que distância quanto à vida é essa, e que intensificação da mesma vida se dá ao mesmo tempo em que a vemos como que de cima? A pergunta sobre a estética nasce como que por si de sua experiência, tamanho é o mistério em que ela nos arrebata e em que ela se encerra. A audácia de Croce em lançar luz nesse breu só pode interessar aquele que a vive e que se pergunta sobre o que vive. Para este último, a autonomia da estética releva de uma evidência; ainda assim, a evidência sentida não vale a evidência examinada, e a leitura de Croce contribui fundamentalmente a esse exame.

Croce não esteve sozinho ao enunciar, nas primeiras décadas do século XX, a ideia da autonomia da estética; é a maneira como o faz que trai uma grande profundidade de vistas. Poetas e críticos modernistas (ou, ao menos, interessados em arte moderna) chegaram a formulações, em aparência, não de todo distantes das suas. A estética de um Pierre Reverdy aponta, como a de Croce, para uma crítica da imitação e apregoa uma dicotomia entre a emoção estética e a emoção da vida, com a primazia da primeira, compreendida como o fascínio diante do “mistério da criação”. Do outro lado dos Pirineus, um Ortega y Gasset, às voltas com o problema da arte moderna em A desumanização da arte, também evoca a oposição entre a emoção quotidiana e a experiência da arte, com os pintores e poetas modernistas buscando uma estética de minorias que privilegiasse a intelecção sobre o afeto, a pesquisa formal sobre a mimese.

Croce formula a autonomia da estética em termos sensivelmente distintos. Enquanto Reverdy a preconiza como veículo para a fundação de uma arte nova, toda construção; enquanto Ortega y Gasset recorre a ela como conceito crítico para compreender a arte dos Braques e dos Picassos seus contemporâneos, Croce, por outro lado, encontra nessa autonomia um traço essencial da estética, independentemente da filiação de um fato estético a movimentos historicamente situados. Aliás, é significativo que muitas tendências modernas não caíam nas graças de Croce, crítico relativamente conservador que reservava os comentários menos simpáticos à poésie pure (cuja efígie encontrava em Paul Valéry) e ao ermetismo de Ungaretti.

Sua crítica à arte moderna revela menos um apego turrão à tradição do que um aspecto fundamental de sua filosofia. Para ele, a estética, por autônoma que seja, ocupa um lugar em uma arquitetura geral do espírito. O próprio tratado de 1902 compõe uma obra maior, a Filosofia do Espírito (ao lado de uma Lógica, de uma Filosofia da prática. Economia e ética e de uma Teoria e história da historiografia). Ao declarar que as características da estética não são redutíveis às do lógico, do útil e do moral, Croce não a isola de facto dessas outras províncias; antes, sua visão é a de uma relação hierárquica entre elas, a estética servindo de plano basilar. Daí a recusa que foi a sua de algumas práticas e teorias comuns no Modernismo – se tendências artísticas contemporâneas de caráter militante se afiguram a nós como prontas por demais a chamar a si fins que lhes seriam estrangeiros enquanto arte e que as diluiriam perigosamente na luta vital, certas correntes da primeira metade do século pareciam a Croce pecar do pecado contrário: elas romperiam a unidade entre forma e conteúdo, entre intuição e sentimento, característica do fenômeno estético, sempre em favor do primeiro termo desses pares opostos. Daí o equívoco que teria sido o delas, o de tentar apartar a estética de seu substrato exterior (o sentimento), criando formas inexpressivas, e logo falsas, de arte. Dessa forma, teria esta última degenerado em estetismo, com consequências graves tanto para si mesma quanto para o espírito humano, do qual ela participa como forma de conhecimento intuitivo.

Aos olhos de Croce, o espectro de uma degenerescência rondava então não só a estética, mas também as outras categorias de seu sistema (levando do intelecto ao intelectualismo, do útil ao utilitarismo), o que só poderia acarretar derivas à comunidade dos homens. Para o liberal que ele foi, a ascensão do irracionalismo político na sua Itália natal (ele fez oposição ao fascismo), assim como a conturbada história europeia do período, só prestavam um angustiante testemunho de que tal ameaça era por demais real. Que armadilhas o pensamento de Croce não assinala à nossa época, em que, para além da tentação do estetismo, a arte não cessa de ser assediada pela instrumentalização política?

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.