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O cowboy e o samurai

por José Francisco Botelho

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Paul Valéry, em uma célebre carta a Jean Royère, definiu a influência literária como “a modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro”.  Valéry se referia ao influxo entre dois poetas: Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé. A mesma definição, contudo, pode se aplicar à obra dos grandes diretores de cinema. Em alguns casos, a relação entre gênios individuais é tão poderosa que acaba fazendo com que gêneros inteiros se modifiquem e se engrandeçam mutuamente. Um exemplo clássico desse fenômeno é o jogo de empréstimos, espelhos e refrações que se estabeleceu entre o chambara japonês (também conhecido como “cinema samurai”) e o faroeste norte-americano. Um capítulo crucial nessa história de influências mútuas é a relação de Akira Kurosawa com os filmes de John Ford.

Embora o cinema samurai contenha um batalhão de realizadores brilhantes — como Hideo Gosha, Kihachi Okamoto, Kenji Misumi e, mais recentemente, Yoji Yamada — Akira Kurosawa foi certamente o mais célebre representante do gênero entre as audiências ocidentais. Isso se deve, entre outras coisas, ao fato de Kurosawa ter sido o primeiro diretor japonês a romper a barreira cultural e se tornar uma celebridade em solo europeu. A fama de Kurosawa no Ocidente começou com Rashomon (1950), que recebeu o Leão de Ouro em Veneza, em 1951, e um Oscar honorário no ano seguinte (na época, a Academia ainda não tinha um prêmio específico para filmes estrangeiros). O triunfo de Rashomon abriu a mente de muitos espectadores ocidentais ao cinema produzido na Ásia e em outras partes do mundo; e Kurosawa logo tornou-se um favorito entre cinéfilos sofisticados e connoisseurs do filme de arte, não só na Europa mas também nos Estados Unidos. Essa mesma parcela do público, no período pós-guerra, costumava desprezar os filmes de faroeste, considerados demasiado populares e às vezes descritos também como demasiado masculinos (alguns críticos, como Pauline Kael, jamais perderam esse ranço). Foi grande, portanto, a surpresa entre parte da intelligentsia americana quando Kurosawa, ao ser indagado sobre sua formação como diretor, declarou que aprendera seu ofício principalmente estudando a obra de um certo irlandês turrão, mui fumador de cachimbos, ao qual se atribuem as sucintas e retumbantes palavras: “My name is John Ford. I make westerns.

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John Wayne em No Tempo das Diligências (Reprodução)

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A influência de Ford é visível em todos os grandes filmes de Kurosawa. Um exemplo é sua obra-prima, Os Sete Samurais, de 1954, cuja estrutura narrativa inicial ecoa o igualmente genial No Tempo das Diligências, que Ford dirigira quinze anos antes. No filme de Ford, cada um dos passageiros da stagecoach é apresentado individualmente antes que a viagem comece. Numa curva da estrada, ouve-se um tiro, e a diligência se detém subitamente: há um homem parado lá adiante. A câmera se aproxima com rapidez ao rosto de Ringo Kid, que faz a espingarda rodopiar nas mãos com um grito de vaqueiro — e de imediato sabemos que esse será o personagem crucial na trama. Ringo Kid, um jovem desajustado que acaba se tornando o herói da história, foi o personagem que transformou John Wayne em uma estrela. No primeiro ato de Os Sete Samurais, as peças se encaixam de forma semelhante. Em cenas individuais, Kurosawa vai apresentando os personagens que dão título ao filme — um grupo de guerreiros sem suserano que, em troca de comida, aceitam proteger uma aldeia acossada por bandoleiros. A figura mais importante é a última a aparecer: o vagabundo e desajustado Kikuchiyo, cujo pedigree de samurai é incerto, mas que acaba se tornando o personagem-rosto nesse grupo de mercenários altruístas. Kikuchiyo, como todos sabem, é interpretado pelo grande Toshiro Mifune, cuja importância no cinema samurai é equivalente à de John Wayne no faroeste norte-americano.

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A Fortaleza Escondida (Reprodução)

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Outra semelhança narrativa aparece em A Fortaleza Escondida, dirigido por Kurosawa em 1958. Na obra, a princesa de um clã feudal é escoltada, através de ermos ásperos e imprevisíveis, por dois camponeses de honestidade questionável e um general de semblante soturno. O título em japonês (Kakushi toride no san akunin) pode ser traduzido literalmente como “Os Três Homens Maus da Fortaleza Escondida”. Pois bem: o último faroeste mudo de Ford se chama 3 Bad Men e conta a história de uma garota, Lee Carlton, escoltada por três celerados em processo de redenção, durante a “corrida do ouro” no território das Dakotas…

Não se trata, claro, de simples empréstimo ou transfusão de enredos: Kurosawa percebeu que as figuras do pistoleiro andarilho, do soturno homem da lei e do aventureiro cínico, tão caras ao faroeste, adequavam-se naturalmente ao universo ficcional do cinema samurai. O personagem do peregrino epigramático e letal que Toshiro Mifune interpreta em Yojimbo O Guarda-Costas (1961) tem semelhanças com diversos caubóis e justiceiros de rumos tortos e língua azeda interpretados por John Wayne — embora o cenário de uma cidadezinha em avançada degradação moral também recorde Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann, faroeste de espírito revisionista, que Wayne detestava. O diálogo entre os gênios de Kurosawa e Ford ganha proporção ainda mais descomunal se recordarmos que Yojimbo foi regravado por Sergio Leone como Por um Punhado de Dólares (1964), uma das obras que transfiguraram o gênero do western e solidificaram o subgênero do spaghetti italiano — que haveria de alterar para sempre sua própria matriz norte-americana. Poucas vezes na história das artes narrativas a magia da influência descreveu um círculo tão perfeito.

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Rastros de Ódio (Reprodução)

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Ran (Reprodução)

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Contudo, mais que as homenagens de enredo e estrutura, importa a ressonância estilística entre esses dois mestres, que transformaram a espada e o revólver em símbolos mutantes da condição humana. Tanto Ford quanto Kurosawa eram fascinados pelo fogo e o vento, a poeira e a chuva — e a forma como a figura humana podia ser contraposta aos elementos em repouso ou em torvelinho.  Ambos conheciam o empuxo do deserto e o poder hipnótico da linha do horizonte. Suas composições tendem ao pictórico e, ao mesmo tempo, acentuam o movimento dos corpos com uma aura de ritual. Em Ford e Kurosawa, nada se move e nada repousa sem que se engendre uma sugestão de significado, de poder e de mistério. O rosto de John Wayne, num crepúsculo de inverno, desenhado pela neve e o sol poente, com o olhar perdido num caminho invisível, murmurando “We will find them, as sure as the – turning of the earth” (em Rastros de Ódio, de 1956); o rosto de Toshiro Mifune, amarrado no chão, contemplando imóvel um céu em que as nuvens lentamente formam e deformam desenhos (em Rashomon) — há nessas imagens a verossimilhança inquestionável e a serena urgência dos ícones e dos sonhos. A forma como o barro, a água e a luz dançam em torno aos corpos em luta transfigura a violência em Os Sete Samurais e O Homem que Matou o Facínora (1962): sabemos que ali cada golpe significa alguma coisa, captamos a sugestão de um sentido que não se esgota, e isso nos leva a revisitar esses filmes inesgotavelmente. O prolongado movimento de homens e cavalos entre o vento e a areia, em O Céu Mandou Alguém (1948); os passos de Tatsuya Nakadai descendo os degraus de um forte em chamas, com lentidão, com solenidade, com loucura, em uma das cenas mais inesquecíveis de Ran (1985) — essas imagens contrapõem a pequenez humana à imensidão dos elementos, mas ao mesmo tempo nos levam a fixar os olhos na partícula de humanidade que, apesar de tudo, existe e avança. Por isso Ford e Kurosawa, mesmo em seus momentos mais discretos e reservados, transcendem seus próprios gêneros e se reencontram no ápice de uma tradição difícil e particular, com outros membros seletos como David Lean e Serguei Eisenstein: o épico cinematográfico.

Mas isso é assunto para outra conversa.

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José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.