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Entrevista com o compositor Jorge Villavicencio Grossmann

por Leandro Oliveira

Jorge Villavicencio Grossmann, compositor e violinista, nasceu em Lima, Peru em 1973 de pai peruano e mãe brasileira.  Mudou-se para o Brasil em 1989 e formou-se bacharel em violino pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Obteve o grau de mestre em composição pela Florida International University de Miami e o grau de doutor em composição (DMA) na Universidade de Boston.

Aluno de Fredrick Kaufman e Lukas Foss em Boston, tem recebido encomendas de peças de vários instrumentistas, conjuntos e instituições tais como ALEA III, Nevada Music Teachers Association e Henderson Symphony Orchestra. Dentre os prêmios, destacam-se a bolsa da John Simon Guggenheim Memorial Foundation, Aaron Coplan Award (que incluiu uma residência na casa do compositor), Charles Ives Scholarship da Academia Americana de Artes e Letras, Bolsa de Artes da Associação Vitae, Emerging Artist Award da St. Botolph Club Foundation de Boston, Nevada Artist Fellowship, e bolsas/prêmios da American Music Center e Meet the Composer.

Jorge Villavicencio Grossmann foi artista residente no Atlantic Center for the Arts e na MacDowell Colony, no SLAM, Seattle Latin American Music Festival de 2008, no “Festival Internacional de Música Clásica Contemporánea” de Lima e no Festival Interncional de Chihuahua, no México.

Seu catálogo de obras consiste em peças para orquestra, música de câmara, música vocal, além de música eletrônica e eletro-acústica. Foi professor de teoria e composição na Universidade de Nevada, em Las Vegas e atualmente é professor de composição na escola de de música do Ithaca College, no estado de Nova York – além de diretor/membro fundador de AltaVoz, um coletivo de compositores latino-americanos nos EUA.

Começando com uma pergunta arriscada, à queima roupa: das peças do teu catálogo, se te fosse dado escolher apenas uma, qual seria a mais representativa de tuas inquietações como artista?

Jorge Villavicencio – Essa é uma pergunta difícil mesmo! Provavelmente a “Ludi Mutatio”, uma peça para piano e eletrônicos que ainda não foi estreada. O motivo de minha escolha não tem a ver com a questão de ser uma obra eletroacústica. Pelo contrário, pode parecer contraditório que eu a escolha como a peça mais representativa do meu catálogo pois eu não me considero (realmente) um compositor de música eletroacústica. Além disso, considero que minha habilidade técnica no campo da música eletrônica, como por exemplo o conhecimento de software e coisas assim, é bem limitada. Todavia, “Ludi Mutatio” é representativa pois reflete um aspecto muito importante no meu trabalho como compositor: a confluência da estrutura com a livre expressão. E como é uma obra onde não tive nenhuma limitação em quanto ao formato, duração ou abordagem técnica e sonora tanto do instrumento como da eletrônica, eu pude me focar em um processo composicional livre de influências externas, livre de limitações. Pude escrever o que tinha vontade de escrever. A peça foi o resultado de uma encomenda da Fromm Foundation (Universidade de Harvard) e a vantagem de uma encomenda desse tipo é que os parâmetros são estabelecidos pelo compositor. Outras encomendas que eu tenho recebido (não todas elas, mas uma grande parte) apresentam estipulações bastante específicas sobre duração, instrumentação e às vezes até sobre o caráter da obra.

Ouvi uma entrevista com o Heinz Holliger uma vez onde ele comparava a música do Bartók à música de Bach no sentido que as duas trazem juntos tanto o controle intelectual quanto um modo de falar espontâneo e natural, um tal de ying e yang composicional. E, para mim, é esse exatamente o “santo graal” do compositor. Embora eu não tenha a pretensão de querer conquistar esse alvo de equilíbrio ou perfeição, posso dizer ao menos que “Ludi Mutatio” faz o esforço de se focar nesse equilíbrio. A peça apresenta uma estrutura bastante elaborada, mas ao mesmo tempo há muita intuição. Escrevê-la foi uma experiência desafiadora intelectualmente mas ao mesmo tempo liberadora emocionalmente.

Você citou Bártok e Bach – e o próprio Holliger, claro, é um compositor extraordinário. Do repertório mais recente, de compositores da segunda metade do século XX, quais obras você considera influentes para sua produção? 

Jorge Villavicencio – Compositores como Messiaen, Ligeti, as obras de Boulez pós-1980 e Wolfgang Rihm têm tido bastante influência na minha produção. A obra de Messiaen representa aquele sincretismo fascinante (com seus estudos da música indiana, a ornitologia, a música medieval…) e também uma confluência de simplicidade e complexidade que tem deixado uma marca muito forte no meu trabalho. O Boulez da década de 80 volta para uma abordagem mais intuitiva e até visceral, a qual me atrai muito. Estou me referindo às Notations para orquestra, Répons, as Dérives… Rihm é muito prolífico e não consigo acompanhar tudo o que ele faz, mas uma obra como Jagden und Formen é realmente um colosso de complexidade com energia incansável, uma obra que vai “à caça” da forma (a tal da gejagte form), um tratamento da forma como processo linear, o qual tem influenciado a minha própria obra. Mencionei Ligeti principalmente pelo seu segundo quarteto de cordas, o qual me impressionou muito na minha adolescência. Lembro da gravação do quarteto La Salle, a qual ouvi centenas de vezes. A tenho estudado também a obra tardia: os estudos para piano, os concertos para violino, piano além do trio para trompa.

Pelo que você disse, podemos acaso inferir que você entende como elemento positivo o controle dos excessos de voluntarismo, ou talvez de alguma da afetação e artificialidade que faz parte de muito da música da segunda metade do século XX? Como esse equilíbrio foi a seu ver resolvido anteriormente, em obras como, por exemplo, “La ricerca della Spiritualità Trascendente”, uma obra que além de tudo é um tour de force instrumental? 

Jorge Villavicencio – Não sei realmente se foi resolvido. Mas eu sempre tomo cuidado com os extremos: não quero que uma obra se transforme em uma mera execução de um plano (o tal do “blueprint”) ou que seja apenas uma experimentação baseado em um conceito abstrato; tampouco quero que se transforme em um ditado, uma imagem (sem filtro) dos sons que tenho na minha cabeça. “La Ricerca” foi uma das peças que mais demorei para escrever. Foi uma luta entre o meu lado violinista e o meu lado compositor (é muito difícil escrever uma obra para o próprio instrumento!). A forte influência do aspecto físico da performance (do violino no caso) virou um empecilho para o desenvolvimento de minhas ideias composicionais. Me vi lutando contra os clichés violinísticos no contexto de uma peça que é em si uma busca de uma nova expressão musical e pessoal para mim. “La Ricerca” é uma obra que não atenua sua urgência e inquietação até o final, onde ouvimos pela primeira vez uma pulsação calma e estável, um “tempus perfectum” que encerra a obra  encerra a obra, mas não a busca.

Há um retorno curioso em sua produção para instrumentos antigos por exemplo, “Gradus ad concordiam” para flauta doce e “Fantasia” para cravo e bass viola, isso, é claro, sem falar nas peças para órgão. Podemos supor que esta mesma curiosidade participe de um imaginário comum com temas deste imenso repertório pré-classico, em obras como “Passacaglia”, “Ricercare”, entre outros. Você pode falar um pouco sobre isso?

Jorge Villavicencio – A tradição é para mim um suporte de vida, que se faz necessário mais ainda no conturbado mundo de hoje. A música não só do período pré-classico mas a música pré-século XX tem se tornado uma espécie de refúgio espiritual para mim. O mesmo argumento que Italo Calvino desenvolveu para justificar “por que ler os clássicos” pode ser feito para “por que ouvir os clássicos.” Em algumas peças minhas eu revisito formas e procedimentos composicionais tais como a passacaglia, o cânone, o ricercare ou a fuga e os transformo de uma maneira a contribuir para a unidade da estrutura e efetividade do discurso da peça em geral. Outrossim, rendo homenagem às obras e compositores que tem me influenciado significativamente durante todos estes anos… obras como a Missa Prolationum do Ockeghem, Nuper Rosarum Flores de Dufay, A Oferenda Musical, A Arte da Fuga e Variações Goldberg do Bach, entre outras… obras que demonstram aquele equilíbrio quase mágico entre processo intelectual e profundidade emocional. Será que é possível ao menos aspirar a ser compositor sem conhecer essas obras?

No caso da peça “Gradus ad Concordiam” para consort de flautas doces (sobre a qual já escrevi uma pequena crônica), composta para o Projeto GreCo que o meu irmão César lidera, o meu relacionamento com os instrumentos renascentistas não só norteou, mas transformou completamente meu processo composicional. Os timbres, as limitações técnicas, o temperamento mesotônico das flautas e o espírito que jaz ali nesses incríveis instrumentos transformou completamente o meu método de composição e até a forma como eu penso em música.

De qualquer modo, esta apropriação do passado fica bem matizada à luz do efeito geral de boa parte de seu catálogo, com obras bastante desafiadoras ao ouvinte, como, por exemplo, “Dialogues e Monologues” ou “Gravitações”, encomenda recente da Osesp. Nestas décadas tão inquietas, onde o desejo ou gosto do grande público de algum modo confronta-se com o percurso específico da estética contemporânea, como o você busca posicionar sua produção? 

Jorge Villavicencio – Essa é uma pergunta difícil. Eu acho que todo compositor quer que sua obra seja ouvida. No meu caso, não consigo escrever música de outra maneira, pois a música reflete quem eu sou. Porém, eu admito que minha música (algumas peças mais que outras) é complexa e desafiadora, tanto para o intérprete como para o ouvinte. Ao mesmo tempo, eu acho uma tolice sem igual tentar escrever música acessível, baseada somente em parâmetros reconhecíveis simplesmente para atrair um público maior. O público que não sabe nada de música ou de arte, que nunca vai a concertos ou que considera música entretenimento não vai se interessar pela música que nós fazemos. Educação é fundamental para o futuro das artes e a única maneira de aumentar o público consumidor de arte é educando-o. Mas este é um tema muito maior…

O meu colega e amigo Stefano Gervasoni fala de como muitos compositores jovens têm aquele desejo ardente de criar seu próprio cunho para assim poder ser conhecidos (e reconhecidos) como criadores de seu próprio nicho. O problema é a maneira como eles fazem isto acontecer, como um processo de fora para dentro e não, como deveria ser, de dentro para fora…

Nos EUA (principalmente) existe uma leva de compositores que têm adotado uma linguagem mais simplista, conquistando alguma popularidade entre o público com certas instituições cujo alvo é promover música desse determinado estilo (muitas vezes associado às tendências pós-minimalistas ou à música pop).  Eu ouço e gosto de música de todos gêneros e origens, e admito que se muitos compositores tiveram uma formação tradicional clássica como a minha, muitos outros (excelentes) vieram do gênero popular. Eu não tenho problemas com a linguagem ou estilo adotado pelo compositor. Eu tenho problemas com a simplificação excessiva pois a considero oportunista. A voz e a linguagem de um compositor são moldadas pelo tempo, pelas experiências, pelo mundo ao redor e pela profunda reflexão sobre tudo que está em volta. Eu coloco todo o esforço para dar o melhor de mim em cada obra. Se a música será bem o mal recebida, se o público virá a gostar, se a música virá a sobreviver um mês, um ano, duzentos anos, são coisas que estão fora do meu controle. O lado mágico do métier do compositor é o intercâmbio e a colaboração com o intérprete dedicado e, quando é o caso, com um público (não importa o tamanho) que possua inteligência e sensibilidade artística. Este intercâmbio é uma fonte fundamental de energia criativa para o compositor e também um antídoto contra as atribulações do mundo em volta.

O que você espera de um intérprete de sua música?

Jorge Villavicencio – Espero um colaborador, alguém que se sinta parte do processo criativo. Não gosto quando os intérpretes são literais demais com a notação, e sei que acontece muitas vezes na música nova. Os compositores às vezes pecam nesse lado também, quando transformam a partitura em um complexo manual de instruções onde tudo que eles fazem é micro-gerenciar o intérprete.  O intérprete tem que tocar a peça como se a tivesse composto ele mesmo, usar a criatividade para oferecer uma perspectiva única para a música… assim como faziam os grandes do passado, não é? Eu acho que o intérprete sabe muito melhor que o compositor como comunicar a música ao ouvinte. São eles que dão vida à música diante do público. O bom intérprete adquire domínio sobre o espaço acústico, entende profundamente a relação sincrônica entre o andamento e os eventos/gestos musicais dentro da obra; ele imprime na música uma narrativa que é capaz de atrair e convencer ao ouvinte.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.