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Das identidades que nos separam aos valores que nos unem: Mark Lilla e seu liberalismo universal.

por Vinícius Müller

O que Franklin Delano Roosevelt e Ronald Reagan têm em comum? Além de terem sido presidentes dos Estados Unidos, o que mais os une? Um democrata, presidente do país entre 1933 e 1945, quando pouco antes do término da Segunda Grande Guerra faleceu. Outro republicano, ator de destaque intermediário em produções hollywoodianas, que governou o país entre 1981 e 1989, ano da queda do muro de Berlim. Na verdade, um olhar superficial nos revela que poucas coisas os aproximam.

Roosevelt enfrentou dois dos mais graves momentos do século XX, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na primeira, em meio à crise considerada como a maior que o país já enfrentou e, por muitos, como a grande crise já experimentada pelo capitalismo, venceu a eleição com a proposta que entrou para a história como o New Deal. Seu plano, implementado nos primeiros anos de governo, previa uma ampla reformulação tanto da economia quanto do comportamento do Estado frente aos desafios imputados pelos efeitos da crise de 1929. Na contramão da tradição do país e de certos valores enraizados na sociedade, Roosevelt propôs a ampliação da participação estatal na economia, como regulador, como incentivador da demanda e como gerador de empregos, além de fornecedor de certos fundamentos mínimos ao bem estar social. Isso em um país de tradição liberal e de baixa tolerância com as intervenções estatais na economia e/ou na determinação de padrões de comportamento e de costumes. Por isso, gerou polêmicas e ódios que, mesmo menores do que os admiradores e eleitores (Roosevelt venceu quatro eleições seguidas – 1932, 1936, 1940 e 1944), foram suficientes para gerar pesado boicote por parte daqueles que o chamavam de socialista e ditador. Para além dos exageros de seus críticos, deixou também uma legítima controversa acerca dos resultados de seu programa de recuperação econômica e social, principalmente em relação à retomada do emprego no país. Se já não fosse suficiente para entrar no rol dos grandes presidentes da história norte-americana, Roosevelt ainda enfrentou a Segunda Grande Guerra, tendo sido fundamental para a formação da aliança entre seu país, a Inglaterra e a antiga União Soviética, responsável pela derrota do nazismo.

Já Ronald Reagan, republicano, assumiu a presidência em 1981 cercado pelo descrédito derivado da crise que o país vivenciara durante a década anterior. Crise esta que começara em 1970, com o abandono pelo país do acordo de Breton Woods e pela renúncia de Richard Nixon em 1974. Também pelas reviravoltas promovidas pelos choques do petróleo de 1974 e 1979, este último vinculado à revolução islâmica no Irã. Paralelamente, o fim da Guerra do Vietnã, ainda sob o governo Nixon, assim como a aproximação com a China e a assinatura de acordos voltados à diminuição das tensões com a URSS no ambiente da Guerra Fria, significava, para muitos, um atestado de fragilidade norte-americana ante a resiliência do bloco socialista. Mesmo com o choque dos juros de 1979 – e a sensível melhora na economia do país – a sensação mais comum no início da década de 80 apontava para a ‘derrota’ dos EUA na Guerra Fria e para a superação de sua liderança no mundo capitalista pelo Japão. O sucesso dos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980, mesmo com a ausência da equipe norte-americana, parecia ser a prova final da derrocada do país.

Contudo, pouco mais de dois anos após a posse de Reagan, a sensação era oposta. A economia se recuperava, os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, eram sucesso estrondoso e Gorbatchev, líder soviético, anunciava em 1985 suas reformas que, ao fim, significaram a queda do regime socialista no país. Os EUA ‘venciam’ a Guerra Fria, o que foi confirmado em 1989, poucos meses depois do fim do mandato de Reagan, pela queda do Muro de Berlim e pela ampliação, em escala mundial, do modelo norte-americano de democracia liberal associada à economia de mercado. Era a Globalização (neo) liberal ou o “Fim da história” de Francis Fukuyama. Mas, ao contrário de Roosevelt, Reagan foi mentor de uma proposta econômica que ampliava a abordagem liberal, diminua a presença do Estado e de seus gastos em bem estar e resgatava de modo quase que irrestrito a noção de individualismo, de empreendedorismo e de valorização do ‘self made man’. Ou seja, após cinco décadas do New Deal e de sua proposta de reconstrução do país a partir da redefinição do papel do Estado como condutor do desenvolvimento e da coesão social, Reagan resgatava a tradição liberal mais exaltada, valorizando o individualismo e a livre iniciativa como valores fundamentais daquilo que caracterizaria a trajetória do país.

Neste sentido e aparentemente, eram opostos. Mas, ambos, em suas versões particulares, só obtiveram sucesso porque ofereceram à sociedade uma narrativa e um projeto que, por motivos e caminhos diferentes, se associavam aos valores que compõe a história norte-americana. E, principalmente, a uma história que remete à formação de certo sentimento de coletividade. Roosevelt ecoava a solidariedade que estaria na origem dos colonos da Nova Inglaterra frente aos desafios de uma terra fria e inóspita. Já Reagan, na recusa que une os norte-americanos aos avanços e abusos do poder público em detrimento dos direitos individuais. Ou seja, por caminhos diversos, ambos apostaram em versões amparadas em uma narrativa que mais do que qualquer coisa, apelava àquilo que une, e não divide, a população do país.

Por outro lado, o fortalecimento de pautas e propostas que, ao contrário do que foi apresentado pelos dois ex-presidentes, mais separam do que unem os norte-americanos, estaria na origem da imensa incapacidade dos liberais do país em obter a simpatia de partes significativas da sociedade neste quarto inicial do século XXI. Assim entende o historiador da Universidade de Columbia Mark Lilla em sua obra “Os Progressistas de ontem e do amanhã” (Cia das Letras, 2018), que aponta, quase como uma denúncia, a incapacidade dos democratas (partido ao qual é associado) em propor alguma narrativa que resgate o sentido de unidade e não de separação da população do país. Para Lilla, este equívoco reside na opção por políticas identitárias e hipersensíveis feita pelos democratas em detrimento de uma outra, voltada aos valores fundamentais que deveriam ser defendidos pelos liberais. Ou seja, abdicaram de uma visão verdadeiramente política que dialogue com uma ampla tradição de defesa de igualdade de oportunidades e de direitos de todos os indivíduos pelo simples fato de que qualquer um é um cidadão. Por isso, são mais eficientes em criar polêmicas que servem ao ensimesmamento dos indivíduos em seus grupos identitários do que em vencer eleições.

Mais grave ainda, segundo Lilla, é a expansão da abordagem anti-política dos movimentos identitários em espaços que, em tese, deveriam ser universais. Tamanha expansão teria criado indivíduos que, ao olharem mais para si mesmo do que para os outros, se tornam ressentidos, assim como são incapazes de sequer perceber quais valores que levaram, ao longo da história do país, legítimas lideranças como Martin Luther King (e, porque não, Barack Obama?) a oferecer aquilo que realmente representaria o liberalismo norte-americano: uma cidadania amparada em direitos que qualquer norte-americano, independentemente de sua origem étnica e social, de sua condição econômica e de seus estilos e preferências, pudesse chamar de sua.

Em uma frase, tamanha sensibilidade e ensimesmamento, assim como as consequências pouco alvissareiras das (anti) políticas identitárias, são revelados por Lilla. Em resumo, “o paradoxo do liberalismo identitário é que ele paralisa a capacidade de pensar e agir em um sentido que realmente o levará a alcançar resultados que professa querer. É hipnotizado por símbolos: alcançar diversidade superficial nas organizações, recontar a história para focar em grupos marginais e mesmo minúsculos, inventar eufemismos inofensivos para descrever a realidade social, proteger jovens ouvidos e olhos, já acostumados a filmes de terror, de qualquer encontro perturbador com pontos de vista alternativos.” Ou seja, a insistência na narrativa identitária estimula a formação de indivíduos que, ao olharem e valorizarem apenas as suas aparentes diferenças, pouco se voltam a descobrir os valores que nos trouxeram, juntos, até aqui. Com isso, causa mais repulsa do que empatia, o que apenas reforça seu ressentimento. Por isso prefere a resistência à proposta, a anti-política à política. Por isso também não honra as lideranças que fizeram de suas posições e condições minoritárias trampolim para a defesa de uma política realmente inclusiva e cidadã. E por fim, mas não menos importante, não criam uma narrativa que identifique o coletivo, ou o que nos une. Por isso, ao contrário de Roosevelt e Reagan, não ganhará as eleições e, muito menos, marcará indelevelmente nossa história.

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Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.