Literatura

De arenques, sardinhas e bravatas: um breve ensaio sobre humor em tradução (Parte II)

por José Francisco Botelho

Assim como o Universo, naquele infinitamente citável poema de T.S. Eliot, a tragédia de Romeu e Julieta também acaba em um gemido ? mas, para que esse gemido traga consigo a máxima concentração de desalento, a peça tem de começar com uma explosão. Poucos recursos literários são tão poderosos e longevos quanto a bem dosada oscilação entre forças opostas: Deus interpelando o Mundo a partir do Nada; o sanguinolento Aquiles consolando o pai de sua própria vítima; o onírico Cavaleiro da Mancha perambulando com seu prosaico e pragmático escudeiro ? todas essas imagens permanecem na memória humana porque sabem cinzelar paradoxos e equilibrar incongruências. No desfecho de Romeu e Julieta, encontraremos uma Verona exausta, melancólica, habitada por velhos cheios de remorso; mas os primeiros movimentos da peça nos apresentam um tour de force de ultrajante energia juvenil. Os responsáveis por essa abertura exorbitante são dois criados da Casa dos Capuletos, Sansão e Gregório ? personagens que acabam sumindo ao longo da estória, mas que agora desfrutam escandalosamente o seu momento de glória suja. Rua abaixo, Gregório e Sansão rasgam a tarde de Verona aguilhoando um ao outro com saraivadas de pilhérias: é um início irresistível e algo estarrecedor, pois quase todas as linhas de seu diálogo trazem algum trocadilho maravilhosamente intraduzível.

Cena da adaptação dirigida por Franco Zeffirelli/Reprodução

Em um duelo de espirituosidade cujo ritmo saltitante e mundano vai preparando os duelos reais, e sangrentos, que se aproximam, os dois fanfarrões tentam decidir qual deles está mais apto a trespassar os homens e seduzir as mulheres da Casa inimiga. É um diálogo violento, às vezes grotesco e quase patibular. Como geralmente ocorre nesse tipo de tertúlia, a conversa acaba versando sobre certos traços específicos da anatomia masculina. Quando Sansão se vangloria de seu “belo pedaço de carne”, Gregório retruca: ‘Tis well thou art not a fish; if thou hadst, thou hadst been poor John. Literalmente: “é bom que não sejas um peixe; se fosses, serias um pobre João”. Na Inglaterra elisabetana, poor John  era o apelido que se dava ao merlúcio, o peixe mais barato no mercado. Vendia-se o merlúcio completamente seco ? tão seco que ficava duro como um pedaço de madeira, de modo que, com o devido toque de imaginação, poderia assemelhar-se a uma ereção particularmente repugnante. As plateias elisabetanas captariam de imediato o jogo de palavras; o leitor moderno, por outro lado, teria de interromper a leitura para consultar o glossário ou o rodapé ? enquanto ao espectador de teatro não restaria nem mesmo esse prêmio de consolação. Como escapar dessa? A minha resposta, naturalmente, é inventar a piada de novo.

Após folhear meus alfarrábios mentais por um tempo, compreendi que o problema se resumia a isto: qual a melhor forma, em bom português, de depreciar a genitália masculina usando nomes de peixe? A pergunta aí pode parecer exageradamente específica, quiçá até um pouco neurótica; mas, na tradução – como, creio, na literatura em geral – a busca pela precisão é uma das grandes aliadas da criatividade; e, em todo caso, só se pode fazer um exorcismo quando sabemos exatamente o nome do demônio. Após depurar o dilema e nomear o diabrete, a solução veio com relativa facilidade. Foi assim que eviscerei o pobre João:

SANSÃO: (…) todos sabem que tenho um belo pedaço de carne.

GREGÓRIO: Espero que seja vermelha; se for branca, tem mais jeito de sardinha do que peixe-espada.

E já que estamos falando em tiradas ictiológicas, façamos uma rápida expedição ao Ato II, onde encontraremos outro trocadilho dessa mesma classe, agora na boca do galhofeiro-mor. Mercúcio e Benvólio estão zanzando pelas ruas quando veem Romeu se aproximar; ambos supõem que ele esteja vindo de uma noite de amor. Quando Benvólio anuncia “Lá vem Romeu”, Mercúcio responde com uma piada aparentemente enigmática: Without his roe, like a dried herring. Ou seja: “Sem seu ro, como um arenque seco”. A palavra roe, que soa como a primeira sílaba de Romeu, também pode significar o esperma de um peixe. Mercúcio quer dizer que Romeu gastou todos seus fluidos corporais ao longo de uma noite supostamente estonteante: ele vem pela metade, como se até seu nome estivesse murcho. Para manter a graça da coisa, era preciso roubar uma sílaba de Romeu e usá-la para desidratar seu corpo. Dessa vez, o entrevero foi um pouco mais complicado; mas acabei chegando à seguinte solução:

Só vejo um Ro, sem meu, nem mel, nem nada, como um arenque seco e sem esperma. Carne, carne, como estás peixificada!

Ou seja: extraí o “meu” de “Romeu” e vinculei-o ao “mel” do corpo. A piada ficou mais longa, é verdade – mas acho que a peixificação do jovem e tonto Montéquio foi levada a bom termo.

Além de preparar a tragédia que se aproxima, o humor desbragado dessas passagens serve, pelo contraste, para destacar a gravidade e a nobreza de Julieta: seu halo sublime não se relativiza nem se degrada nesse mundo de bravatas explosivas. A fanfarronice de Sansão e Gregório, o diabolismo de Mercúcio, a tontice de Romeu – tudo serve apenas para torná-la ainda mais “gloriosa, no alto desta noite”. É impossível rir de Julieta; se pudesse, ela riria de nós: pois ela viu não apenas a face da paixão, mas também a face do destino. E, após as gargalhadas iniciais, só nos resta concordar com o Príncipe Éscalo, cujas linhas finais eu traduzi assim:

Uma soturna paz desperta e amanhece.

O triste sol se oculta, ouvindo esses gemidos.

Vão embora em silêncio, e que a balbúrdia cesse:

A alguns perdoarei, e alguns serão punidos;

Pois um conto mais triste o mundo não nos deu

Que a história de Julieta e seu amor, Romeu.

José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.