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De quantas razões precisamos para falar?

Event Horizon, uma das estátuas suicidas de Antony Gormley instaladas em 31 lugares ao redor do mundo. (Em Hong Kong a instalação foi cancelada após um funcionário do banco que a abrigava se lançar do teto – Foto: Antony McCallum, via Wikimedia Commons).

por Christian Kieling e Felipe Pimentel 

A repercussão despertada pela série 13 Reasons Why vai muito além do sucesso junto ao público jovem, uma das principais estratégias da Netflix para manter altos índices de audiência. Desde seu lançamento, há pouco mais de um mês, a trama também provocou posicionamentos fervorosos na imprensa mundial ao abordar de forma direta e escancarada o suicídio na adolescência – criando uma polarização entre os defensores da série, que enxergam positivamente a coragem em abordar a temática, e seus críticos, que julgam temerário tocar em assunto tão delicado. Os primeiros argumentam que, ao retratar temas como bullying e suicídio, a narrativa traz à tona questões que precisam ser debatidas na sociedade e costumeiramente são silenciadas. Já os críticos – entre eles um grande número de profissionais ligados à área de saúde mental e  entidades de prevenção ao suicídio – afirmam que o modo como o assunto foi apresentado, incluindo a cena em que a personagem principal tira sua vida cortando os pulsos em uma banheira, teria um efeito deletério, na medida em que poderia promover uma glamourização do suicídio justamente para um público mais suscetível.

O problema certamente não é pequeno. Dados da Organização Mundial da Saúde registram 800 mil mortes por suicídio no ano de 2012 – o que equivale a uma média de um suicídio a cada 40 segundos. Desse total, mais de 100 mil ocorreram em indivíduos com menos de 19 anos de idade, em sua grande maioria habitantes de países de baixa e média renda. No Brasil, em 2014, foram registrados 818 suicídios de crianças e adolescentes – sendo o número possivelmente ainda maior, dado que muitas mortes nesta faixa etária são classificadas como por “causa indeterminada”. Ao mesmo tempo, estudos de autópsia psicológica, nos quais, através de uma metodologia sofisticada de coleta de informações junto a múltiplos informantes, se busca determinar a presença ou ausência de transtornos mentais em indivíduos que morreram por suicídio, indicam que em cerca de 90% dos casos há um diagnóstico psiquiátrico prévio. Entre os mais frequentes estão depressão e transtorno por uso de substâncias – para os quais felizmente há tratamentos eficazes, seja com psicoterapia, seja com psicofármacos, ou com sua combinação.

Independente da incidência maior ou menor de suicídio, as culturas, por mais distintas que sejam ou tenham sido, sempre buscaram um modo de emudecer sua ocorrência. Nada muito distinto de outros temas sensíveis à natureza humana, os famosos tabus, aqueles temas “proibidos” da morte, da sexualidade, do crime, etc. O modo de tratar tais tabus se modifica muito com o tempo e com as culturas, que ora revelam uns, ora ocultam outros: se tomarmos, por exemplo, a sociedade greco-romana, a sexualidade era tematizada de forma mais explícita do que na medievalidade posterior; ao passo que com a morte (ou mesmo com o crime moral) ocorre o contrário. Um exemplo mais recente, o ocidente (desde a pudica sociedade vitoriana do século XIX) certamente não esperava que em tão pouco tempo trataríamos tão abertamente da sexualidade, suas práticas, impasses e possibilidades. Porém, na história dos tabus, o suicídio ocupa lugar particular, não só mais constante, mas também semelhante entre as culturas. Praticamente não temos sociedades que o tematizaram ampla e abertamente, de modo que a prática se manteve de modo razoavelmente uniforme sempre como algo a ser ocultado, velado. O que há com o suicídio para, a despeito de toda a multiplicidade de moralidades, práticas culturais e singularidades históricas e antropológicas, se manter assim, incólume no seu silêncio?

A despeito do aspecto evidente da perda, o suicídio também levanta outros aspectos que nos fazem querer calar sobre ele, como um modo fantasioso de cancelar sua possibilidade, buscando evitar que ele se coloque como uma alternativa ao sofrimento, como se, ao calarmos, forçássemos que todo aquele que sofre encontre alternativas em vida para seu padecimento. Não suficiente, o tabu do suicídio também envolve sentimentos ambíguos para o entorno que propôs cuidar dos seus: a ocorrência de um suicídio envia uma mensagem, no nosso imaginário, de rejeição (nosso amor e cuidado não foram suficientes para evitá-lo) e de impotência (algo escapou do nosso controle). Porém, essas são meras e teóricas hipóteses, visto que essa não é uma pergunta simples, tampouco possível de ser respondida por ora. Mas devemos olhar para essa particularidade do suicídio por outro viés, a saber: diante da ascensão vertiginosa da informação, primeiro pelos meios de comunicação de massa, e depois pelas redes de disseminação tecnológica da informação, é possível calarmos algo? Isto é, com a facilidade do acesso à informação, faz sentido insistirmos na prática do silenciamento? Não pareceria uma prática artificial e ineficaz demais para nossos tempos? Se já não podemos mais silenciar informações, ocorrências, pensamentos, se estão pululando nas redes, na internet, nos meios de comunicação, já não estamos falando sobre elas?

Diante disso, talvez a pergunta que faça mais sentido atualmente não seja sobre falar ou não falar, mas sim sobre como falar. No atendimento clínico, percebemos, é mais do que evidente o alívio que uma frase como “Alguma vez você já pensou que a vida não valia mais a pena ser vivida?” pode provocar. Uma mudança de fisionomia, revelando ao mesmo tempo uma sensação de conexão com quem pergunta e de libertação de um segredo, costuma ser a regra – como um modo de desaguar uma angústia que normalmente se apresenta com frases tangenciais, soltas e até mesmo confusas sobre um mal-estar generalizado. Essa impressão clínica já foi confirmada por pesquisas bem delineadas que demonstraram que perguntar sobre suicídio não aumenta a probabilidade de alguém pensar em se matar – na verdade, o que se observou foi uma redução nos escores de sofrimento emocional. Porém, muito distinto é perguntar individualmente, frente a frente, em um setting adequado e durante atendimento clínico, para alguém que está passando por um momento difícil; outra coisa é trazer essa informação para públicos mais amplos, pessoas que podem receber a informação, mas não ter com quem falar ou compartilhar suas dores.

Feita essa ressalva, o ponto atual é que a série trouxe o assunto à tona, e diversas instâncias concernidas com o tópico estão com a dúvida: há algum risco em falar sobre suicídio para adolescentes? De modo geral, não há como afirmar que não existam riscos associados à divulgação do suicídio em meios de comunicação de massa. Mesmo não se tratando de uma doença infecciosa, há evidências sérias de que tomar conhecimento de um suicídio, sobretudo o de uma celebridade, possa aumentar a probabilidade de tentativas e de mortes por suicídio. A adolescência, quando a formação de uma identidade própria se coloca como tema central, talvez constitua um período de especial vulnerabilidade para influências externas (exacerbando e intensificando o aspecto de impotência acima citado, daquilo que escapa ao nosso controle).

Muitos dos estudos sobre como o suicídio poderia ser “contagioso” foram realizados nas duas últimas décadas do século passado. Pouco sabemos sobre como esse fenômeno se configura em uma época em que o acesso à informação é quase irrestrito. Aquilo que era tabu e que podia, em grande parte, ser silenciado a partir de decisões tomadas nas redações de grandes veículos de comunicação, hoje está a dois cliques de qualquer um. (Apenas para traçar um paralelo com outro tema polêmico: em poucos anos de internet, os milhares de sites de pornografia fizeram com que até a Playboy questionasse manter ou não a nudez em suas páginas).

Com toda a delicadeza da situação, fomos e estamos instados a falar sobre suicídio. Por mais difícil que seja encarar o tema de frente, evitá-lo, claramente, não vai fazer com que desapareça. Ao longo das últimas décadas, muito se avançou em como fazer isso dentro dos consultórios, de modo que é mais do que consenso entre psicólogos e psiquiatras que qualquer avaliação de saúde mental deve envolver a abordagem do assunto. Agora, como fazer isso junto ao grande público, em especial junto a adolescentes? A resposta mais honesta neste momento parece ser “não sabemos”. Talvez haja uma frase oculta nessa dúvida, nessa pergunta. Como se perguntássemos: como falar sobre suicídio (acrescentando) garantindo que ele não mais ocorra?

Em última instância, mesmo que não saibamos exatamente como falar, se devemos falar, ou mesmo quando falar, o que parece ser mais fundamental nesses momentos é que tenhamos a capacidade de escutar.

Felipe Pimentel é psicanalista e historiador.

Christian Kieling

Christian Kieling é professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).