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Deirdre McCloskey: trans, liberal e em defesa das virtudes burguesas (I)

A economia americana Deirdre McCloskey

por Diogo Costa

“Acho que eu sei por que o mundo moderno aconteceu”. Assim começava a palestra de Deirdre McCloskey para um think tank em Londres no ano de 2016. O evento comemorava a conclusão do mais ambicioso projeto de sua vida. Depois de escrever 16 livros e mais de 400 artigos, a historiadora econômica da Universidade de Illinois em Chicago havia finalmente terminado o terceiro tomo de seu magnum opus: The Bourgeois Era (A Era Burguesa). “Algumas carreiras acadêmicas terminam com um gemido. É bom fazer um estrondo.”

A ambição de A Era Burguesa não vem apenas da magnitude de suas 2 mil páginas divididas em três volumes, mas também da sua tese central: A economia não consegue explicar o mundo moderno. Pode parecer uma provocação, afinal Deirdre McCloskey, em seus 75 anos, tem um pé firme no establishment econômico. Uma das maiores defensoras da economia liberal, ela lecionou por doze anos na Universidade de Chicago, o emblemático centro da ortodoxia econômica, e escreveu um dos quatro melhores manuais de economia que eu conheço, The Applied Theory of Price (A Teoria do Preço Aplicada). Seria difícil levar a sério a crítica à própria disciplina se McCloskey já não tivesse trilhado a carreira de uma reformista. Antes de escrever Virtudes Burguesas, o primeiro volume de sua trilogia lançado em 2006, ela já havia publicado The Vices of Economists (Os Vícios dos Economistas) em 1997 e The Sins of Economics (Os Pecados da Economia) em 2002. Os títulos fazem objeção à maneira como economistas abusam dos métodos quantitativos, seja construindo teoremas sem fundamentação na realidade observável ou empregando testes estatísticos espúrios a partir dos quais tiram conclusões a respeito de todo o mundo econômico. Se, como coloca o economista Robert Nelson, o establishment econômico forma “o sacerdócio de uma religião secular moderna”, McCloskey está do lado dos hereges.

O não conformismo de McCloskey ofenderia o sacerdócio religioso tradicional também. Nos anos 1990, aos 52 anos de idade, McCloskey, já economista de alto prestígio, surpreende o meio acadêmico ao decidir fazer uma nova transição: mudar de gênero. O fato é que Deirdre nascera Donald. E o pequeno Donald, ainda na sua adolescência, orava à noite por duas coisas: “por favor, Deus, por favor… amanhã quando eu acordar: eu não vou gaguejar… e eu serei uma menina”.

A psicóloga irmã de McCloskey tentou tratar do jovem Donald internando-o em instituições psiquiátricas, ainda que contra sua vontade. O hábito de se vestir de mulher continuou em privado, mas aos olhos do público, Donald acabou construindo uma vida tradicional. Cristão, casado aos 22 anos, dois filhos com a mesma mulher. Apenas depois de três décadas de casamento e com os filhos crescidos é que Donald decide virar Deirdre.

McCloskey relata no livro Crossing: A memoir (1999) como foi a vida após a decisão. Com o abandono da família, McCloskey decide se mudar de Chicago para a Universidade de Iowa. Ao dar a notícia para seu novo chefe, Gary Fethke, o reitor da escola de negócios, Donald (agora Dee) “admite estar apavorado sobre como a comunidade universitária poderia reagir”:

Gary ficou atordoado por um momento. Ambos eram economistas, conservadores pelos padrões acadêmicos, entusiastas do mercado livre. Até que:

“Graças a Deus … Eu pensei por um momento que você iria confessar a conversão para o socialismo!”

Dee riu, aliviado. O decano agia como um amigo.

“E isso é ótimo para o nosso programa de ação afirmativa – mais uma mulher, um homem menos.” Mais risada. Mais alívio.

“E espera um minuto – é ainda melhor: como mulher, posso reduzir seu salário para setenta centavos de cada dólar!”

Em 1998, aos 55 anos, McCloskey pôde finalmente se apresentar ao público como Deirdre: “eu f-f-f-finalmente recebi um dos m-m-meus dois pedidos!”

“Pessoas livres continuam decidindo fazer transições estranhas”, escreve McCloskey, “do comerciante ao monge ou do civil ao soldado ou do homem à mulher”. Como economista, McCloskey também passou por diferentes transições. Aos 14 anos, se descobriu uma anarquista de esquerda, lendo o príncipe Kropotkin na biblioteca de Carnegie. Depois passou ao socialismo de Joan-Baez com 16 anos, keynesiana aos 19, engenharia econômica aos 21, economia de oferta-e-demanda aos 25. Aos 30, completou sua conversão à economia da Escola de Chicago (até o MV = PT), aos 48, passou para a Economia Austríaca e, finalmente aos 68, para o que McCloskey chama de “Humanomia, uma economia para humanos completos”.

Em muitos aspectos, a carreira de McCloskey foge dos padrões contemporâneos da academia. A vida de um economista acadêmico consiste em contribuir ou invalidar as modelagens vigentes (de modo abstrato ou empírico) através de questões cada vez mais especializadas que, depois de alguns ajustes dos dados, culminam em papers citando outros papers dos últimos cinco anos. Em vez disso, a economista da Universidade de Illinois mistura Direito, História, Filosofia, Crítica Literária em livros de 600 páginas citando de Jane Austen a Émile Zola.

Os economistas contemporâneos, na visão de McCloskey, se esqueceram de que além de ser ciência, a economia deve ser humana. Hoje é comum que economistas reduzam sua ciência ao que está no livro texto, tornando-se o que os antigos chamavam do temido “homem de um livro só”. Os pesquisadores expandem os modelos básicos e os métodos quantitativos sem expandirem o conhecimento real e a economia vira uma ciência de quantidades sem conteúdo, de provas e proposições sem entendimento. Como diz McCloskey, “os economistas se lembram de dizer que ‘benefício marginal = custo marginal’ e depois não conseguem dizer mais nada”.

A Humanomia, em contraste, seria uma “economia que não dispensa a matemática quando se precisa dela,” diz McCloskey, “mas que pensa de modo inteligente sobre categorias. E é isto que são as humanidades: o estudo das categorias”. McCloskey quer resgatar a tradição que ela vê sendo inaugurada pelo Adam Smith de Teoria dos Sentimentos Morais, uma economia “que leve a sério a filosofia e a literatura”. Não é uma causa ideológica. Ela acredita que essa “economia civilizada” foi trabalhada tanto por intervencionistas, como John Maynard Keynes, como por liberais, como Friedrich Hayek.

Essa relação de “frienemy” para com a academia segue de perto os passos de Hayek – o único economista que, quando ganhou o prêmio Nobel em economia, fez um discurso criticando a própria existência do prêmio: “o Prêmio Nobel confere a um indivíduo uma autoridade que em economia nenhum homem deveria possuir.” Para Hayek, “a curiosa tarefa da economia é demonstrar aos homens o quão pouco eles realmente sabem a respeito daquilo que eles imaginam ser capazes de projetar”. As exortações de McCloskey a seus pares trazem a “curiosa tarefa” de Hayek para um plano quase religioso. Essa capacidade de projetar o mundo econômico encontra, em McCloskey, barreiras retóricas – “os limites e os padrões de fala humana, claro, limitam e geram os padrões da economia” – assim como morais. “Em termos das sete principais virtudes, a rotina da eficiência que os economistas samuelsonianos adoram tão apaixonadamente depende apenas da virtude da Prudência”, escreve McCloskey. “Se alguma coisa – amor ou justiça ou coragem – não está dentro de uma maximização utilitária sujeita a uma restrição de recursos, ela não tem nada a dizer.”

Acadêmicos de outras áreas, que acusam economistas de arrogância e superficialidade,  demonstrarão simpatia pelas heresias econômicas de McCloskey. Até adentrarem o conjunto da obra e perceberem que McCloskey não quer substituir os vícios dos economistas pelos dos sociólogos, filósofos ou historiadores, mas pelas “virtudes da burguesia”. As análises de classe, raça ou gênero que se tornaram lugar comum nas ciências sociais aparecem em McCloskey embutidas dentro da saga da classe média. Em sua trilogia, McCloskey se propõe a fazer “no vocabulário do cristianismo – a partir do grego para o lado do réu em um julgamento – uma ‘apologia’ do capitalismo na sua forma americana” (As Virtudes Burguesas). Seus grandes oponentes não são os economistas, mas todos os membros do “clero secular” que, apesar de integrantes da burguesia, traíram o pacto burguês, aqueles que denunciariam por apostasia o projeto maior de McCloskey: fazer do elogio à burguesia uma das maiores obras de história econômica desse início de século.

Leia aqui a segunda parte deste artigo

Diogo Costa

Diogo Costa é diretor da Fundação de Indigo de Políticas Públicas e mestre em ciência política pela Universidade de Columbia.