ReflexãoSociedade

Depois de George Floyd, uma nação em busca de justiça

por Hugh Eakin

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MINNEAPOLIS—Policiais no telhado de um prédio, disparando balas de borracha em direção à multidão abaixo. Manifestantes furiosos usando capacetes e reforçados coletes salva-vidas. Cruzamentos cheios de cartuchos usados de gás lacrimogêneo. Mulheres de meia idade tirando suas máscaras de proteção contra a Covid-19 para esfriar com leite os olhos ardentes. Vitrines destruídas; grandes áreas de imóveis no centro da cidade em chamas. Mais gás lacrimogêneo. Mais ódio. Um prefeito emocionalmente abalado clamando pela responsabilização criminal de um membro de seu próprio departamento de polícia, e então convocando reforços aos pelotões de choque. Spray de pimenta e granadas de impacto. Centenas de soldados da Guarda Nacional chegando em comboios para restaurar a ordem nas ruas.

Nos três dias que seguiram a horrível morte, sob custódia policial de George Floyd — um homem negro não armado, em plena luz do dia —, Minneapolis transformou-se a um ponto quase irreconhecível. Repentinamente, uma metrópole aparentemente calma e tida como progressista — uma cidade liderada por um prefeito jovem, liberal, e por um chefe negro no departamento de polícia— passou a lembrar mais uma Newark ou Detroit à época da luta pelos direitos civis. Um lugar onde, da janela de um carro de patrulha, a polícia faz uso indiscriminado de gás contra pedestres; onde pessoas saquearam unidades da Target, da Walgreens e outros negócios locais; onde os sons das granadas de impacto e helicópteros e sirenes da emergência podem ser ouvidos a qualquer hora da noite.

Para muitos residentes das cidades-gêmeas, Minneapolis e St. Paul, a velocidade no desenrolar dos acontecimentos foi quase incomensurável. Tudo começou na terça-feira, na área suburbana do sul de Minneapolis, onde ocorreu o encontro fatal de Floyd com a polícia. Movidos por uma forte escalada de revolta, milhares de cidadãos comuns, de todas as idades e circunstâncias, usando máscaras e carregando cartazes, romperam a quarentena e reuniram-se em uma marcha pacífica partindo da esquina onde Floyd foi detido e segurado no chão por policiais da Terceira Delegacia de Polícia. Ainda assim, naquela mesma noite, o primeiro protesto acabou, horas depois, em confronto com a polícia. Já à altura da noite seguinte, uma série de lojas e prédios ao redor da delegacia haviam sido incendiados. Pela quinta-feira à tarde, a agitação já havia se espalhado, chegando a várias áreas também na cidade de St. Paul, a ponto de o serviço postal norte-americano suspender os serviços de entrega em grandes partes de ambas as cidades. Então, um pouco depois das 22h na noite de quinta, alguns grupos em Minneapolis atearam fogo ao prédio da própria delegacia, forçando o prefeito a ordenar sua evacuação na medida em que era tomada pelas chamas.

Para os milhares de moradores que enfrentaram a pandemia e a ameaça de violência para participar dos protestos, a situação apresentou desafios sem precedentes. “Eu tento estar preparada, tenho meus óculos de proteção, capacete, alguma coisa pra ajudar a me proteger das balas de borracha, mas é tudo muito traiçoeiro por aqui”, disse a ativista pelos direitos civis e advogada Nekima Levy Armstrong, na quarta-feira, em transmissão pelo Facebook. Na quinta-feira à noite, antes mesmo de uma equipe da CNN ser detida enquanto cobria os acontecimentos, fotógrafos de jornais locais já recuavam diante dos piores confrontos; um repórter relatou que havia tanto gás lacrimogêneo que chegava a ser difícil de estimar o número de manifestantes. Um amigo da região que cobriu regiões como o Iraque disse que teve flashbacks de cenários reais de guerras. Dois dos supermercados onde eu costumo fazer compras foram atacados ontem [dia 27]; hoje [28], mais cedo, a farmácia da rua ainda estava em chamas. Helicópteros de vigilância mantiveram a circulação ao longo de maior parte das últimas 24 horas e a vitrine da loja de ferragens foi bloqueada de cima a baixo por medo de surtos de saques que as autoridades têm descrito como “flash looting”.

Mas como ativistas comunitários têm notado, por mais extraordinária que tenha sido a semana, tanto a revolta quanto a dura resposta têm origens mais profundas. Em 2016, o assassinato a tiros pela polícia de Philando Castile na região de Falcon Heights, subúrbio de St. Paul, atraiu atenção nacional. Mas a morte por sufocamento de George Floyd — um homem que reuniu forças para, em suas últimas palavras, dizer que não conseguia respirar, enquanto um policial pressionava seu pescoço com o joelho por minutos a fio — é a quinta morte com envolvimento da polícia aqui apenas de 2018 pra cá, quando o atual prefeito de Minneapolis, Jacob Frey, foi eleito. Como foi o caso com Floyd e Castile, quase todos os casos recentes envolveram cidadãos negros. Até agora, contudo, em apenas um desses casos o policial havia processado criminalmente: um caso envolvendo uma mulher branca e um policial negro. Por trás de um histórico tão sombrio de uma responsabilização inexistente, há agora uma difundida percepção de que o racismo estrutural na administração da cidade e na aplicação da lei tem raízes profundas. Em meio à presente crise de saúde pública, com uma população inquieta e níveis crescentes de desemprego, o obsceno assassinato de Floyd levou a revolta pública contra a cidade e “o sistema” a um ponto de ruptura.

O que se perdeu, porém, em todas essas imagens chocantes de fogo, barricadas policiais e saques, é que uma maioria esmagadora de manifestantes condena a violência e tem tentando unir a comunidade. Toda manhã, numerosos grupos de cidadãos têm saído espontaneamente de suas casas para ajudar a limpar as ruas nas principais áreas de protestos. Até mesmo na quinta-feira, enquanto os meios tradicionais de mídia direcionavam suas atenções a um grupo de mais ou menos cinquenta pessoas que havia saqueado uma unidade da Target e outras lojas na região de Midway em St. Paul, uma manifestação bastante maior e absolutamente pacífica, de mais de 2.000 pessoas, durava horas e horas em frente à sede administrativa no centro de Minneapolis. (Nas redes sociais, veteranos ativistas locais também notavam que a localização dos ataques na região de Midway não era acidental: o centro comercial é próximo ao coração daquela que um dia foi a principal vizinhança afro-americana da cidade, uma comunidade que foi assolada pela construção de uma invasiva rodovia interestadual nos anos 1960 e que sofre até com hoje com os impactos econômicos.)

Muitos agora temem que a simples busca por justiça para George Floyd — uma busca tão básica, tão óbvia que até o próprio prefeito, Frey, em quarenta e oito horas após o acontecimento, veio a público perguntar “Por que o homem que matou George Floyd não está preso?” — seja subvertida pelo caos e pela quase inimaginável militarização na resposta ao caos por parte da administração da cidade. Na pior das ironias, a revolta contra o sistema, ao menos até agora, tornou o sistema algo mais assustador do que nunca. Pelas redes sociais, manifestantes pacíficos têm expressado receios no sentido de que a polícia talvez não esteja mais lá para protegê-los, que — como grande parte da comunidade negra já tem sentido durante anos — a polícia é uma ameaça, antagonistas fortemente armados. De sua parte, as autoridades locais têm lutado para manter as aparências de algo que lembre a ideia de ordem, sem provocar ainda mais instabilidade — mesmo enquanto o presidente escreve mensagens agressivas no Twitter, ameaçando o envio de mais força letal.

Mas a tragédia maior do assassinato de Floyd, e do cenário posterior, pode estar ainda por vir. Como epicentro da pandemia da Covid-19 no estado, Minneapolis já lidava com graves questões econômicas e sanitárias antes dos protestos começarem. O próprio vírus parecia demonstrar a silenciosa injustiça racial que muitos já observam há anos no estado: embora represente apenas 6% da população, a comunidade negra em Minnesota compõe quase 30% dos casos conhecidos do vírus, de acordo com dados publicados no Star Tribune.

Esse é apenas mais um exemplo das gigantesca desigualdade estrutural que assola a cidade e o estado já há anos: de acordo com o censo mais recente, a renda média de famílias negras no estado é menor que a metade da renda de famílias brancas; enquanto que os números de cidadãos brancos com casa própria nas cidades-gêmeas estão entre os mais altos do país, em 75%, o de cidadãos negros está em apenas 23%; e enquanto que a população do estado está entre aquelas com os melhores índices de educação em geral, também ali há um dos maiores gaps entre brancos e negros no país. Durante grande parte dos últimos dois meses, a cidade pareceu lidar bem com os efeitos da pandemia. Mas os casos ainda estão na ascendente, com leitos de tratamento intensivo já operando em algo muito próximo de sua capacidade máxima. Algo que mal se notou na quinta, entre os protestos e a violência, foi o alarmante relatório divulgado pelo estado registrando o pico de mortes em um único dia — trinta e cinco pessoas, levando o número total a mil — desde o início da pandemia.

Especialistas já apontavam que os protestos em grande escala poderiam em si levar a um rápido pico de contágio. Também é difícil ignorar o impacto da violência em negócios locais, que já lidavam com os efeitos deletérios da economia durante a quarentena. Na região em torno do local central dos protestos, uma consequência particularmente amarga foi a destruição, por um incêndio, de um complexo habitacional já quase pronto para ser habitado ainda neste ano. Das 189 unidades, várias seriam destinadas a cidadãos de baixa renda. Ele está agora destruído.

Enquanto pessoas por toda a cidade buscam justiça, uma coisa parece certa: desacelerar a escalada de tensão é algo necessário a um nível desesperador, mas a responsabilização dos policiais que assassinaram Floyd não será suficiente. A cidade finalmente terá de enfrentar as persistentes e enraizadas injustiças raciais que, agora, depois de anos de negligência, explodiram, expostas, para serem vistas por todo mundo.

(Reuters)

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Este ensaio foi publicado originalmente na New York Review of Books. Agradecemos profundamente ao autor, Hugh Eakin, pela autorização de tradução e publicação no Estado da Arte.

(Tradução de Gilberto Morbach.)

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Hugh Eakin é senior editor da New York Review of Books e editor fundador do NYR Daily. Já escreveu também ao New York Times, à New Yorker e ao Wall Street Journal.