Filosofia

Penso, logo existo?

por Desidério Murcho

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Imagine-se o leitor em 1637. Há escassos quatro anos, Galileu Galilei (1564–1642), professor de Matemática na Universidade de Pisa, foi condenado a prisão domiciliária pelo Santo Ofício da Igreja Católica Apostólica Romana — depois de ser obrigado a abjurar do suposto pecado de declarar cientificamente mais adequado o modelo de sistema solar proposto pelo polaco Nicolau Copérnico (1473–1543), segundo o qual a Terra orbita em torno do Sol e não o inverso. Passaram entretanto quarenta e cinco anos da pérfida denúncia de Giovanni Mocenigo, que acusou de heresia o seu professor, o astrónomo italiano Giordano Bruno (1548–1600), que por isso foi condenado pelo Santo Ofício à horrível e dificilmente imaginável morte na fogueira.

Há cento e vinte anos, no dia 31 de Outubro de 1517, Martinho Lutero (1483–1546) pôs em marcha a segunda grande cisão cristã. Segundo a história contada por Filipe Melâncton, provavelmente apócrifa, Lutero depositou nesse dia as suas noventa e cinco teses à porta da Igreja do Castelo, em Wittenberg, na Alemanha. Lutero criticava não apenas algumas ideias teológicas, mas também o que via como a corrupção das práticas da igreja católica. Para a cisão terá contribuído o estudo cuidadoso da Bíblia, usando recursos históricos e linguísticos, posto em prática pelo holandês Desidério Erasmo (1469–1536), seguido por outro holandês, mas de origem portuguesa: o filósofo Bento de Espinosa (1632–1677).

Assim, em 1637 o clima cultural europeu era a um tempo opressivo e estimulante. Opressivo, porque nunca se sabia bem, ao publicar um livro ou artigo, se isso seria considerado herético pelas autoridades religiosas. Mas também estimulante, porque novas e promissoras ideias científicas, matemáticas e filosóficas, eram propostas e discutidas. E foi nesse ano que o filósofo e matemático francês René Descartes (1596–1650) publicou um tratado constituído por três estudos científicos (dióptrica, meteorologia e geometria), antecedidos por uma introdução filosófica cujo título completo é Discurso do Método de Bem Conduzir a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências. Este tratado foi publicado em francês, e não em latim, a língua académica europeia dessa época, porque Descartes queria ser lido não apenas por universitários, mas também por outros intelectuais que, como ele, não tinham lugar nas universidades.

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Descartes, por Frans Hals, c. 1649-1700

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Católico convicto, Descartes foi um dos grandes inovadores do seu tempo em matemática e filosofia, e ainda hoje as suas contribuições são, num e noutro caso, atuais. São dele as palavras “Penso, logo existo”:

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E notando que esta verdade, penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava. (Discurso do Método, p. 50)

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Mas que quer isto dizer e por que razão algo que parece banal tem sequer importância? O que está em causa tem a vantagem de ilustrar uma preocupação filosófica importante. O leitor sabe, ou crê que sabe, várias coisas. Sabe, por exemplo, ou crê que sabe, que a Terra é maior do que a Lua. Mas terá talvez dificuldade em explicar por que razão realmente sabe, em vez de apenas crer que sabe sem saber. Isto porque, nesse caso, o leitor depende do que lhe disseram outras pessoas, oralmente ou por escrito. De modo que é agora preciso perguntar se essas pessoas sabem realmente o que creem saber.

Esta pergunta é menos exótica do que parece. Em muitas circunstâncias, o leitor  interroga-se se realmente sabe o que parece que sabe, e toma medidas para eliminar, ou pelo menos diminuir, a probabilidade de se ter enganado. O leitor lembra-se de ter fechado a porta da sua casa à chave; mas, como não se lembra muito bem, volta atrás e vai ver se realmente a fechou. Fazemos coisas destas todos os dias. Também nas ciências fazemos este género de pergunta: será que realmente a Terra está parada, como parece?

A diferença é que em filosofia fazemos uma pergunta mais geral. Perguntamos se acaso as nossas memórias serão todas falsas, tendo nós começado a existir há cinco minutos. Afinal, se algumas memórias são falsas, por que razão não serão todas elas falsas? E enquanto na física perguntamos se uma certa informação que julgamos obter pelos sentidos é ilusória — como a imobilidade aparente da Terra — em filosofia perguntamos se acaso toda a informação que julgamos obter pelos sentidos será ilusória.

Se o leitor está a pensar que este género de pergunta filosófica muito geral é algo disparatada, não está sozinho. Há quem pense que não vale a pena fazer perguntas, a menos que estejamos já a ver como conseguiremos responder. Ora, quando fazemos perguntas muito gerais, não se vê como conseguiríamos responder. Por isso, conclui o raciocínio, é algo disparatado fazer essas perguntas.

Este raciocínio antifilosófico, todavia, é curioso. Baseia-se — ironicamente — na ideia bastante geral de que não vale a pena fazer perguntas a menos que estejamos já a ver como conseguiremos responder. Ora, se este princípio geral fosse seguido sempre, nunca teria surgido a própria ciência. São as perguntas a que ainda não sabemos responder que nos fazem desenvolver a ciência; não é a ciência, depois de constituída, que detém o monopólio das perguntas legítimas.

Além disso, o próprio princípio nega a atitude científica, aproximando-se ironicamente do mesmo género de obscurantismo de que foram vítimas cientistas como Galileu. A atitude científica é seguir a nossa curiosidade até onde nos levar e tentar saber, e voltar a tentar, e voltar a tentar. A esta atitude opõe-se o caricatural mestre-escola, que só permite que os seus alunos façam perguntas a que ele sabe previamente responder, sabendo ele responder apenas às perguntas cuja resposta esteja no manual escolar que ele seria incapaz de escrever. Esta atitude é um formidável obstáculo à descoberta, precisamente porque parece defender a atitude científica, quando na realidade é incompatível com ela.

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A acusação de Galileu por Cristiano Banti, 1857

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Outra maneira de neutralizar as perguntas filosóficas é apoucar a importância das respostas e cantar cantos líricos às maravilhas da interrogação interminável e da pergunta permanente. A sugestão é que as respostas não têm qualquer interesse: o que verdadeiramente conta é a pergunta.

Esta não é uma posição particularmente lúcida. Ainda que estejamos moderadamente convictos de que não seremos bem-sucedidos ao tentar algo, urge ter pelo menos alguma esperança bem fundada, por fraca que seja, de que seremos bem-sucedidos — caso contrário, seria uma tolice não ir fazer outra coisa qualquer mais promissora. Assim, quem tiver a convicção cética de que as respostas filosóficas são inalcançáveis, entrega-se a uma atividade sem sentido, se continuar a fazer filosofia. Ninguém no seu perfeito juízo desata a saltar para tentar chegar à Lua se não tiver a mais leve esperança bem fundada de que se consegue chegar à Lua aos saltos, só porque saltar para chegar à Lua, parecendo que não, tem a sua graça.

Além disso, que se consegue dar resposta às perguntas filosóficas é algo que está provado historicamente, pois abundam as respostas dadas por filósofos, ao longo da história da humanidade. E se cremos que nenhuma dessas respostas tem valor, ou que são meramente subjetivas, só porque não sabemos quais delas são verdadeiras, se é que algumas o são, será preciso mostrar tal coisa, ao invés de nos limitarmos a pressupô-lo. E a ironia é que, ao tentar mostrá-lo, já estaremos a fazer filosofia.

Muito bem; aceitemos então que não é insensata a pergunta filosófica muito geral “Será que sabemos realmente o que cremos saber?”. Mas o que está em causa?

Quatro anos apenas depois da publicação do Discurso, Descartes publicou — em latim, desta vez — uma obra filosófica mais pormenorizada, cujo título completo é Meditações sobre a Filosofia Primeira, nas quais são Demonstradas a Existência de Deus e a Distinção entre a Alma e o Corpo. Foi nesta obra que Descartes inventou o famoso génio maligno, que ajuda a compreender melhor o que está em causa:

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Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse todo o seu engenho em enganar-me. Vou acreditar que o céu, o ar, a Terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais do que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 113–114)

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O génio maligno é um ser poderoso, mas tão perverso, que nos engana continuamente: sempre que cremos ver algo, estamos a ser vítimas de uma ilusão, de maneira que esse algo não existe ou é totalmente diferente do que nos parece.

Sem dúvida que a hipótese do génio maligno é esquisita. Não é o género de hipótese que consideramos todos os dias. Imagine-se o leitor a justificar a sua falta ao emprego no dia anterior com as seguintes palavras: “Como sabe que realmente eu não estive cá? Talvez um génio maligno o tenha enganado e, por causa disso, não me viu!” Não seria de espantar que o seu empregador recusasse pagar-lhe, no fim do mês, com o argumento de que no mês passado lhe pagou o dobro, mas o leitor não o viu devido a uma ilusão provocada pelo génio maligno. E assim por diante.

De modo que a hipótese do génio maligno talvez pareça ociosa. Não é, certamente, o género de hipótese que levemos a sério quotidianamente. Contudo, nenhumas interrogações são levadas a sério em quotidianos estéreis, se não forem imediatistas: imagine o que seria o leitor justificar a sua falta ao emprego dizendo que ficou em casa preocupado com a questão histórica lancinante de saber se Nefertari foi realmente a esposa preferida de Ramsés II.

Sem dúvida que a preocupação filosófica com a hipótese do génio maligno é de maior generalidade. Mas a sua estranheza não resulta tanto da sua generalidade quanto da sua atipicidade, quando comparada com as preocupações dos quotidianos estéreis, pondo-a a par de qualquer preocupação que não seja imediatista. Quem manifestar impaciência com a hipótese do génio maligno mas não com problemas da história ou da química é por considerar que só vale a pena fazer perguntas a que já sabemos responder. Mas esta atitude, como vimos, não é particularmente recomendável.

A hipótese do génio maligno torna mais nítido um problema central de uma área da filosofia a que se chama “teoria do conhecimento” ou “epistemologia” (que deriva do termo grego episteme, que significa “conhecimento”). Entre outras coisas, nesta disciplina trata-se de investigar qual é a justificação última das nossas crenças. Mas o que é isso de “justificação última”? E, já agora, o que é uma crença?

Uma crença não é o mesmo que uma crença religiosa. Todas as crenças religiosas são obviamente crenças, mas muitas crenças não são religiosas: são crenças matemáticas, científicas, históricas ou de senso comum. O leitor tem a crença de que está lendo este artigo e de que O Brasil é maior do que a Argentina. Uma crença discursiva é apenas uma representação, verdadeira ou falsa, que alguém faz de algo.

Por sua vez, a justificação última é aquele tipo de justificação que não depende de qualquer outra. Uma boa maneira de entender esta ideia é o leitor dar-se conta de que a crença de que está lendo este artigo depende da sua crença de que as perceções visuais e tácteis, em circunstâncias percetivas normais que ainda falta especificar, são fidedignas. Mas então a sua crença de que está lendo este artigo depende de duas crenças: primeiro, do princípio geral de que em circunstâncias percetivas normais as perceções são fidedignas; segundo, da crença de que a circunstância em que está lendo este artigo é uma dessas circunstâncias percetivas normais — o leitor não está, por exemplo, sonhando.

Como vê, a justificação da sua simples crença de que está lendo este artigo depende da justificação de outras duas crenças — ambas algo exóticas. Por outras palavras, dizer apenas “sei que estou lendo um artigo porque é isso que vejo e sinto” não é uma justificação última. É uma justificação, e não é de modo algum uma má justificação, mas não é uma justificação última — porque depende de outras crenças que, por sua vez, precisam também de ser justificadas.

Se lhe ocorre agora que ao raciocinar dessa maneira nunca conseguiremos parar porque nunca descobriremos justificações últimas, já está pensando filosoficamente. Só que ainda não considerou cuidadosamente se realmente não descobriríamos tais justificações. O melhor a fazer é então responder a esse desafio e tentar descobri-las. Foi o que fez Descartes.

Este filósofo estava convencido de ter descoberto pelo menos uma crença cuja justificação não depende de quaisquer outras crenças: a crença de que ele mesmo existe. Na gíria académica chama-se “cogito cartesiano” a esta crença, devido à expressão latina cogito, ergo sum (penso, logo existo), e ao nome latino de Descartes: Renatus Cartesius.

O raciocínio de Descartes é que mesmo sob a extravagante suposição de que um génio maligno me engana sistematicamente, ele certamente não me engana se eu não existir:

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Mas há um génio enganador, não sei qual, sumamente poderoso, sumamente astuto, que me engana sempre com o seu engenho. No entanto, não há dúvida de que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, nunca conseguirá que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pesado e repesado muito bem tudo isto, se deve por último concluir que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira”. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 119)

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Sempre que creio que vejo árvores, talvez não existam árvores na realidade; talvez sempre que me lembro de algo se trate de uma falsa memória; talvez quando sinto e vejo ter um corpo com certas características esteja iludido — quem sabe se, de facto, me pareço com lagartixas ou kafkianos besouros, e não com um símio sem pelos?

Talvez tudo isso ocorra, pensa Descartes, se a hipótese do génio maligno for verdadeira. Mas para que todas essas ilusões existam, para que o génio maligno me  engane, é preciso que eu exista.

A crença de que existo não é falsa em qualquer das circunstâncias em que pondero se existo ou não — ou em que pondero seja o que for. Claro que há muitas circunstâncias possíveis, mas não realizadas, em que não existo — circunstâncias em que os meus pais nunca se conheceram, por exemplo. Mas em nenhuma delas me posso perguntar se existo ou não. Insistir que talvez eu não exista na circunstância em que pondero se existo seria uma contradição pragmática: como alguém que grita “Não estou gritando!”

É isto que significa o famoso “penso, logo existo” — que na versão das Meditações perdeu a aparência inferencial e passou a ser apenas “eu sou, eu existo”. A ideia é que a crença de que existo como ser pensante é, por um lado, insuscetível de refutação e, por outro, constitui — por isso mesmo — a justificação última de todas as nossas crenças. Vejamos brevemente este segundo aspeto.

Tome-se uma crença percetiva, como a de que o leitor tem um livro na mão. Trata-se de uma crença muito diferente das crenças matemáticas. Estas últimas não se justificam recorrendo à experiência, mas antes ao cálculo matemático: ao pensamento puro.

Já no que respeita às crenças percetivas, faz sentido justificá-las recorrendo à experiência percetiva: o leitor sabe que tem um livro na mão porque porque é isso que vê e sente. Mas Descartes considera que esta justificação, apesar de perfeitamente adequada, não é última — pois se formos vítimas do génio maligno, o facto de parecer que o leitor vê e sente o livro é compatível com a inexistência do livro. O que justifica a confiança nos sentidos terá de ser outro conjunto de considerações que Descartes procura retirar do próprio cogito. Daí que este filósofo pense que a justificação última das nossas crenças, incluindo as percetivas, não repousa nos sentidos.

Deste modo se vê que uma posição filosófica aparentemente tola — como poderá alguém crer que o conhecimento do que vemos não se baseia inteiramente nos sentidos? — não é, afinal, tão tola assim. Talvez seja falsa, mas é avisado começar por compreendê-la bem para tentar então mostrar que o é.

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‘E pur si muove’ (Retrato de Galileu atribuído a Murillo)

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Desidério Murcho

Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.