Filosofia

O problema dos universais

por Desidério Murcho

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Debate imaginário entre Averróes e Porfírio, em gravura do séc. XIV

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Perante duas folhas brancas de papel, parece razoável considerar que têm em comum várias propriedades, incluindo a brancura. Porém, como explicar que a mesma entidade, a brancura, esteja aparentemente presente nos vários particulares brancos? Isto dá origem ao chamado “problema dos universais”, que, apesar desta designação, é afinal acerca da natureza das propriedades — a ideia de que as propriedades são universais já é uma maneira, entre outras, de lhe responder. Porque as folhas são ambas brancas, parece que há uma propriedade que têm em comum. Nesse caso, parece que essa entidade — a brancura — está espalhada no espaço de um modo peculiar. Contraste-se com os particulares: quando estes estão espalhados no espaço, não estão totalmente presentes em cada fragmento do espaço. Uma pessoa está espalhada no espaço apenas no sentido em que em cada parte do espaço está uma parte dela: um pé aqui, um braço acolá. Ela não está toda, sem deixar qualquer parte de fora, no mesmo espaço em que está o dedo mindinho do seu pé esquerdo. Contudo, isso é precisamente o que parece acontecer no caso das propriedades: em cada folha branca parece estar presente a totalidade da brancura, e não apenas uma parte dessa propriedade. Quando se leva a sério esta ideia, é natural considerar que a propriedade da brancura, como tantas outras, é um universal, ou seja, uma entidade que está totalmente presente em vários lugares do espaço, ao mesmo tempo.

Também quanto ao tempo as propriedades são à primeira vista bastante diferentes dos particulares espácio-temporais. As duas folhas de papel branco amarelecem com o tempo, rasgam-se, ficam vincadas e sofrem várias outras ignomínias; a brancura, contudo, permanece igual a si mesma, incólume às agruras da passagem do tempo, mesmo que desapareça das folhas. Quando se compra outra folha de papel branco, eis que a mesmíssima brancura, aparentemente, reaparece em toda a sua glória, sem qualquer marca da passagem do tempo.

Assim, parece haver algumas razões iniciais para considerar que as propriedades são bastante diferentes dos particulares espácio-temporais. Quão diferentes? O que são exatamente as propriedades? Eis cinco hipóteses acerca da natureza das propriedades:

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(1) As propriedades são particulares abstratos, e não universais.

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(2) As propriedades são universais abstratos.

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(3) As propriedades são universais concretos.

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(4) Não há realmente propriedades; só há ilusões linguísticas.

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(5) As propriedades são particulares concretos.

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Antes de discutir estas hipóteses, é uma boa ideia esclarecer preliminarmente os próprios conceitos de particular e propriedade.

Os casos mais óbvios de particulares são as entidades referidas por meio de nomes próprios, como “Eça” ou “Lisboa”, mas como é evidente nem todos os particulares têm nome. O que caracteriza um particular é ser uma entidade que tem propriedades, mas não é propriedade seja do que for. Ninguém tem Eça como propriedade, no mesmo sentido em que algumas pessoas têm a generosidade como propriedade.

As propriedades, por sua vez, são os atributos ou características das entidades: Eça tinha a propriedade de ser romancista, Lisboa tem a propriedade de ser uma cidade. As propriedades também têm propriedades: a brancura tem a propriedade de ser uma cor. Muitas propriedades são relacionais — são relações — mas exprimem-se com predicados não-relacionais. Nenhum particular é realmente branco no sentido não-relacional do termo; a brancura é uma relação entre a luz que incide num particular e aqueles seus aspetos que determinam os comprimentos de onda que são absorvidos ou refletidos. Caso nenhuma luz incida num particular, ele fica sem cor, e caso uma luz amarela incida num particular supostamente branco, refletirá luz também amarela. O predicado unário “é branco” exprime uma propriedade relacional.

Os predicados, como “ser romancista”, têm a função linguística de exprimir propriedades, tal como os nomes próprios, como “Eça”, têm a função de referir particulares. Não é de esperar, contudo, que a realidade seja assim tão solícita que se apresse a ajustar-se às categorias linguísticas humanas. Dá-se nome a seja o que for, e forma-se os mais diversos predicados, mas seria precipitado concluir que em todos os casos se refere particulares e propriedades genuínas. Com termos gerais forma-se muito facilmente predicados, como “ser um cavalo”, mas não é óbvio que se trate de uma propriedade genuína: não é claro que cada cavalo particular tenha uma propriedade especial, em vez de ter várias propriedades que são comuns a todos os cavalos, e que só eles têm conjuntamente. O mesmo acontece no caso dos nomes próprios: não é óbvio que a Terra seja um particular, em vez de uma coleção algo vaga de particulares. Não é de aceitar, pois, que todo o predicado exprime propriedades genuínas, nem que todo o nome próprio refere particulares propriamente ditos. Porém, é preciso continuar a reflexão, apesar de se admitir desde logo que não se tem uma ideia suficientemente precisa do que realmente é um particular, nem do que realmente é uma propriedade. O que se pretende é ganhar alguma compreensão deste imbróglio metafísico, começando por uma das pontas.

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Boécio, em manuscrito das Consolatione Philosophiae de 1385

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Passando agora à discussão, a hipótese de que as propriedades são particulares abstratos sublinha o que parece haver de peculiar nas propriedades quanto ao tempo: são imutáveis e imperecíveis. Contudo, reinterpreta o que parece haver de peculiar nelas quanto ao espaço. A brancura parece inteiramente presente em cada particular concreto branco, o que faria dela um universal — mas, deste ponto de vista, nega-se esta aparência e afirma-se que a Brancura em si, abstrata, não está presente em qualquer particular concreto branco. Ao invés, estes particulares limitam-se a exemplificar a Brancura em si (ou a “participar” dela, ou a instanciá-la, ou a imitá-la). Assim, a Brancura em si também é, afinal, um particular — mas abstrato. A Brancura não é um universal porque não está presente em vários particulares concretos: não está espalhada no espaço como os supostos universais estariam. Segundo esta hipótese, não há universais.

A primeira dificuldade desta hipótese emerge ao tentar esclarecer a relação de exemplificação entre os particulares concretos e as suas propriedades. Uma vez que a própria exemplificação é apenas mais uma propriedade — relacional, neste caso — parece que se cai numa regressão viciosa infinita quando se tenta esclarecê-la. Quando se pergunta o que é isso de um particular concreto ser branco, responde-se que se trata de exemplificar a Brancura em si. Mas como a exemplificação é outra propriedade, é preciso explicar o que é isso de ter essa propriedade relacional. Dada esta maneira de ver as coisas, a exemplificação é outro particular abstrato, a Exemplificação em si, que não é espácio-temporal. Assim, a explicação é esta: um particular concreto, espácio-temporal, é branco quando tem uma relação de exemplificação com o Branco em si, que não é espácio-temporal, e ter esta relação é exemplificar a Exemplificação em si, que por sua vez é exemplificar a Exemplificação em si da Exemplificação em si — e isto parece que nunca mais acaba e que nunca é esclarecedor. Uma resposta a esta dificuldade é insistir que a relação de exemplificação entre os particulares brancos e a Brancura em si é primitiva e insuscetível de esclarecimento. Talvez as coisas sejam realmente assim. Porém, precisamente porque a exemplificação é uma propriedade como qualquer outra, uma resposta destas deverá esclarecer por que razão algumas propriedades (relacionais ou não) são primitivas e insuscetíveis de esclarecimento, em contraste com outras. A propriedade da brancura é esclarecida — na verdade, reduzida à exemplificação da Brancura em si. Qual é a diferença? Por que razão uma propriedade é reduzida à exemplificação e outra não? Sem uma razão adequada para distinguir os dois tipos de propriedades, a resposta parece arbitrária: a brancura é reduzida, porque isso é o que caracteriza a hipótese; mas a exemplificação não o é, porque isso estraga-a.

Um aspeto importantíssimo desta hipótese é a ideia de atemporalidade e imutabilidade: os particulares abstratos são os paradigmas ou modelos das propriedades caídas que se vê nos particulares concretos, e são entidades imunes às devastações do tempo e às arbitrariedades da mudança. Ora, isto dá origem a duas dificuldades. A primeira é a mais óbvia: como entender o poder explicativo de uma relação em que os seus relata, os membros dessa relação, são tão profundamente distintos? De um lado há uma humilde folha branca de papel, no tempo e no espaço; do outro, há a Brancura em si, atemporal e imutável, para lá do tempo e do espaço. Como explicar que esta entidade atemporal consiga afetar aquela outra, temporal? Como consegue fazê-la branca? Não é causalmente, ao que parece, dado que a relação de causa e efeito parece exigir a temporalidade, e os particulares abstratos são atemporais. A dificuldade não é os relata terem uma natureza tão díspar, mas antes a exigência de que essa relação explique cabalmente a brancura do particular concreto. Nada no próprio conceito de relação impede particulares imensamente díspares de estarem relacionados — afinal, quando Eça oferece uma flor à Emília, há uma relação entre estes três particulares, mas um deles é muitíssimo diferente dos outros dois. A dificuldade é que caso não se consiga explicar adequadamente como o particular abstrato da brancura faz os particulares concretos serem brancos, fica-se com uma perspetiva que, depois de uma conversa metafísica extravagante acerca de Coisas em Si, não é esclarecedora.

Quanto à segunda dificuldade, menos óbvia, é talvez a mais grave para esta maneira de ver as coisas — tão grave, na verdade, que parece mortal. No âmago desta perspetiva está a ideia de que as propriedades são atemporais e imutáveis. Contudo, esta ideia resulta de se ter pensado desde o início em propriedades aparentemente estáticas como a brancura (que se usa como exemplo simplista, mas que a rigor não é sequer estática como parece, nem não-relacional); caso se pense em propriedades irrecusavelmente dinâmicas, como ser rápido, não se vê como poderia isso resultar da exemplificação de uma entidade estática. Não é fácil ver como se conseguiria reduzir adequadamente uma propriedade dinâmica à exemplificação de uma entidade estática.

É tentador abandonar o aspeto atemporal e imutável dos particulares abstratos para responder a estas dificuldades. Todavia, fazê-lo é tirar o tapete debaixo dos próprios pés. É que, deste ponto de vista, as propriedades são entendidas como particulares abstratos, e as entidades abstratas são entendidas exatamente como as concretas, mas fora do tempo e do espaço. Uma vez que é só isso que as distingue das concretas, caso se decida mudar a perspetiva dizendo que não estão fora do tempo nem do espaço — para que sejam dinâmicas — não se entende por que razão são afinal abstratas. Assim, caso se procure uma alternativa e se queira manter a ideia de que as propriedades são de algum modo abstratas, parece mais promissor rejeitar que sejam particulares, e conceder que são exatamente o que parecem: universais.

E assim se chega à segunda hipótese: serão então as propriedades universais abstratos? A maneira peculiar como parecem estar espalhadas no espaço sugere que são entidades abstratas: afinal, aparentemente, nunca se vê entidades concretas espalhadas dessa maneira. Segundo esta hipótese, os universais nem sempre são atemporais — evita-se assim a dificuldade das propriedades dinâmicas. O universal da brancura talvez seja atemporal, mas talvez o universal de ser rápido tenha um aspeto temporal. Esta concessão, contudo, obriga a explicar em que sentido são os universais entidades abstratas. Caso se admita que alguns universais são dinâmicos, parece que isso obriga a admitir que nem todos os universais são atemporais. Ora, o dinamismo parece acarretar também a espacialidade. Em qualquer caso, mesmo que não acarrete, há outra razão para aceitar que os universais não estão fora do espaço: é que se quer justamente dizer que a propriedade da brancura presente em todos os particulares brancos é exatamente a mesma, sendo isso que faz dela um universal. Ora, parece que uma entidade que esteja inteiramente presente em entidades que estão no espaço está também no espaço — no mesmíssimo espaço. Consequentemente, parece que a conceção de entidade abstrata a adotar será diferente da que se tem em mente quando se defende que as propriedades são particulares abstratos. Uma saída é conceber os universais como entidades abstratas apenas no sentido de existirem independentemente dos seres humanos e de quaisquer outras entidades concretas. Assim, o universal da brancura seria abstrato no sentido de a sua existência não depender dos particulares brancos, nem dos seres humanos. Deste ponto de vista, muito antes de haver seres humanos e quaisquer particulares brancos, já a brancura existia. A ideia é tentar preservar ao máximo essa independência existencial que já antes se encontrava, admitindo, contudo, que as propriedades são universais e que, pelo menos algumas, estão de algum modo presentes no tempo e no espaço.

Esta posição enfrenta duas dificuldades de monta.

A primeira é encontrar alguma razão adequada para sustentar a tese da independência existencial: por que razão existem os universais independentemente dos particulares que têm propriedades? Talvez se possa apelar à experiência humana e dizer que nunca se viu a destruição de universais. Esta resposta não é muito promissora porque parece que isso é exatamente que se vê quando todos os particulares brancos deixam de ser brancos — acontece apenas que o universal da brancura reaparece quando reaparecem novos particulares brancos. A tese da criação e destruição de universais não parece mais implausível do que a tese da independência existencial — e se forem ambas igualmente implausíveis, será preciso ter outra razão que desempate a questão.

A segunda dificuldade é explicar, ou pelo menos dar uma indicação de como talvez se consiga explicar, o mistério de uma entidade como a brancura, que está presente inteiramente no tempo e no espaço quando há coisas brancas, mas que continua a existir quando não as há. Estas duas posições parecem dificilmente conciliáveis: há uma tensão entre a tese de que os universais existem independentemente dos particulares e a tese de que os universais estão inteiramente presentes nos particulares. Não parece implausível defender as teses seguintes:

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(1) Se uma entidade existe independentemente de quaisquer entidades espácio-temporais, não é espácio-temporal.

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(2) Se uma entidade não é espácio-temporal, não está inteiramente presente em entidades espácio-temporais.

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(3) Se uma entidade for afinal espácio-temporal, a sua existência depende de alguma ou de algumas entidades espácio-temporais.

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Em suma, ao combinar a ideia de que as propriedades são de algum modo entidades abstratas com a ideia de que são universais genuínos, fica-se numa terra-de-ninguém onde é difícil desenvolver uma hipótese inicialmente promissora. Assim, vale a pena explorar a terceira hipótese: talvez as propriedades sejam realmente universais genuínos, mas nem sempre sejam entidades abstratas. Serão então as propriedades universais concretos? Nesse caso, não é preciso aceitar a tese da independência existencial: não se exige que os universais existam independentemente dos particulares. E também não é preciso pressupor que todos os universais estão fora do tempo e do espaço. Portanto, não se considera que os universais são entidades abstratas em qualquer desses dois sentidos. Ao invés, admite-se que pelo menos alguns universais são entidades concretas, tanto no sentido da dependência existencial, como no sentido da localização espácio-temporal. Uma consequência desta maneira de ver as coisas é que o universal da brancura só surgiu quando surgiram os primeiros particulares brancos; antes disso, não existia.

Quanto à relação que os particulares têm com os universais, não se fica obrigado a aceitar algo como um conceito de exemplificação que dê origem a uma regressão infinita viciosa. Infelizmente, porém, não há grande coisa em termos de explicação esclarecedora que se consiga oferecer. Tudo o que se consegue fazer é insistir que a relação entre os particulares e os universais é primitiva e insuscetível de ser explicada adequadamente, acrescentando que apesar de a frase “Esta folha tem a propriedade de ser branca” incluir o predicado relacional “ter”, não se fica comprometido com a ideia de que todo e qualquer predicado exprime uma propriedade genuína. Bloqueia-se, deste modo, qualquer tentativa de encontrar uma regressão infinita viciosa nesta conceção, mas é preciso admitir que nada de esclarecedor se oferece quanto à relação entre os particulares e as propriedades. No máximo, oferece-se uma analogia: os particulares têm propriedades aproximadamente como têm partes, e tal como neste caso o “ter” mais não é do que uma maneira verbal de assinalar a presença no particular de uma parte — Eça tem um pé esquerdo no sentido em que este pé faz parte dele — também no caso das propriedades o “ter” mais não faz do que assinalar a presença da propriedade no particular. O que se rejeita é que o particular seja como que uma entidade independente, na qual são então como que penduradas várias propriedades. A unidade ontológica mínima — a unidade mínima de ser — é sempre um particular com várias propriedades: nem as propriedades existem independentemente dos particulares, nem estes existem sem aquelas.

Comparada com as outras hipóteses até agora formuladas, esta parece mais promissora, em parte porque é bastante flexível, e em parte porque é pouco exigente. É flexível porque admite universais de qualquer espécie, sejam dinâmicos ou não; e é pouco exigente porque não obriga a aceitar que todos os universais são entidades abstratas, em qualquer dos dois sentidos do termo.

Porém, enfrenta-se uma dificuldade notável: é que seria de esperar que se conseguisse localizar facilmente pelo menos alguns universais, nomeadamente porque são concretos; quando se olha para os pormenores, contudo, as coisas são menos óbvias. Veja-se o caso da brancura. Em primeiro lugar, não é uma propriedade não-relacional, mas antes uma relação, como se viu. Em segundo lugar, e é aqui que está a dificuldade, o que faz uma folha de papel refletir a luz de uma dada maneira é a sua constituição material, mas nenhumas duas folhas têm a rigor mesma constituição: cada folha branca tem moléculas numericamente distintas. Onde está então o suposto universal concreto da brancura? Pretender encontrar o universal da brancura talvez seja uma ingenuidade, mas que dizer de propriedades que desempenham um papel científico importante, como a gravidade, em Física ou a maternidade, em Biologia? Onde estão os supostos universais que seriam tais propriedades, ainda que obviamente relacionais? Quando a Maria é mãe da Joana, isso é uma relação perfeitamente objetiva entre elas, e crucial na biologia, mas não se encontra o mesmíssimo universal da maternidade na relação que a Joana tem com a sua filha Alberta. Encontra-se em ambos os casos particulares, relacionados de certas maneiras, mas não se encontra o universal. E o mesmo acontece com a gravidade: a Lua está sob a influência da gravidade da Terra, e isto é uma relação perfeitamente objetiva entre elas, e crucial na ciência, mas não se encontra o mesmíssimo universal da gravidade na relação que a Terra tem com o Sol. Deveria ser fácil encontrar universais concretos, precisamente porque são concretos, mas não é.

Será, pois, que os universais não passam de uma fantasia filosófica, uma ilusão linguística que resulta, talvez, da maneira como se usa termos gerais?

Considere-se o que acontece no caso dos termos singulares, como os nomes próprios. O papel principal de um nome próprio como “Marte” é referir uma entidade espácio-temporal cuja existência não depende dos seres humanos. Contudo, nem sempre os nomes próprios têm exatamente este papel, pois alguns referem entidades ficcionais, como “Pedro da Maia”, cuja existência depende narrativamente dos seres humanos; outros, como “Enid Blyton”, referem entidades cuja existência depende biológica, e não narrativamente, dos seus progenitores. Tanto “Marte” como “Enid Blyton” referem entidades completas, no sentido em que não são meras partes de entidades. Claro que quase todas as entidades são constituídas por outras e fazem parte de outras ainda: os seres humanos são constituídos por células e fazem parte da fauna terrestre. Contudo, ainda que algo vagamente, parece haver uma certa completude em Enid Blyton, em contraste com a incompletude da sua mão esquerda. Porém, apesar de ser este o papel principal dos nomes próprios — referir entidades completas — este não é, de modo algum, o seu único papel. Dá-se por vezes nomes a entidades incompletas, como o pé esquerdo do melhor jogador de futebol, a mão direita do melhor pugilista ou o cérebro de Stephen Hawking. A liberdade linguística dos seres humanos é considerável — mas seria insensato concluir que sempre que se usa um nome próprio se refere uma entidade completa, mesmo que se admita que esse é o seu papel linguístico principal.

Ora, se no caso dos nomes próprios seria extravagante insistir que a mão esquerda de Blyton é uma entidade independente dos seres humanos, e completa, só porque alguém resolveu dar-lhe um nome, no caso dos termos gerais isso parece ainda mais óbvio. É que uma diferença importante entre os termos singulares e os termos gerais é precisamente o facto de estes últimos terem o papel linguístico não de referir uma entidade singular mas antes várias, simultaneamente — as que estão na sua extensão. Ao passo que “Blyton” tem o papel linguístico de referir uma entidade singular, o termo geral “animal” tem o papel diferente de referir não uma entidade singular mas antes uma pluralidade delas: todos os animais. Isto é uma razão linguística para não aceitar que todo e qualquer termo geral refere uma entidade singular, além das diferentes entidades que estão na sua extensão. Por outro lado, parece metafisicamente problemático insistir que, além de todos os animais concretos, há uma entidade, em qualquer sentido robusto, referida pelo termo “animal”. Isto porque, nesse caso, seria uma entidade sem dimensão alguma, nem cor, nem forma específica, e que não seria um mamífero, nem uma ave, nem um peixe, nem um réptil, nem um anfíbio, nem um invertebrado. O que seria tal entidade? Em conclusão, não é implausível pensar que o termo geral “animal” serve precisamente para referir as várias entidades completas, e muitas delas independentes dos seres humanos, que estão na sua extensão; não serve para referir, além disso, uma entidade singular que, em qualquer sentido metafísico robusto, seja completa e independente.

Destas reflexões emerge a quarta hipótese de explicação das propriedades: os predicados são encarados como termos gerais, sem qualquer outro papel que não o de referir ao mesmo tempo vários particulares concretos. Deste ponto de vista, não há universais em qualquer sentido robusto do termo, nem particulares abstratos subjacentes aos termos gerais: só há entidades particulares concretas, e os predicados, como os termos gerais, limitam-se a referir várias simultaneamente. Na versão mais radical desta hipótese, considera-se que os particulares concretos referidos por predicados nada têm realmente em comum, exceto a designação que os seres humanos lhes dão. Numa versão mais moderada, admite-se que entre eles há algo em comum: uma semelhança. Porém, insiste-se que não há uma mesma propriedade comum a todos. Os diversos animais são reunidos sob o termo geral “animal” porque são semelhantes entre si, mas esta semelhança não é uma entidade em qualquer sentido metafísico robusto.

Qualquer das variantes desta hipótese é bastante económica, à primeira vista, pois começa por não admitir quaisquer outras entidades que não os particulares comuns, espácio-temporais. Porém, parece que se cai muito rapidamente em algo como a regressão infinita viciosa que se enfrenta quando se defende que as propriedades são particulares abstratos. Considere-se os particulares concretos reunidos sob o termo geral “animal”. Deste ponto de vista, não há uma propriedade comum a todos, em qualquer sentido metafisicamente robusto. Na verdade, na versão mais radical, defende-se que nada há de comum entre todos os animais exceto o próprio termo geral “animal”. Quando alguém pergunta o que fez os seres humanos agrupar todos esses particulares sob uma mesma designação, parece que só há duas alternativas — e nenhuma é abonatória.

A primeira alternativa é afirmar que os particulares foram agrupados arbitrariamente, sem qualquer critério que tenha peso metafísico. Isto não é terrivelmente plausível porque significaria que, metafisicamente, nada há que aproxime um elefante de outro elefante e o distancie de um alfinete de cabecinha. Esta é a alternativa mais radical e menos promissora.

Resta a segunda alternativa: o que faz os seres humanos agrupar vários particulares sob uma designação é a semelhança que neles encontram. Esta é a alternativa mais moderada e promissora. A dificuldade agora é que não se vê como se consegue explicar adequadamente o que é a semelhança. Afinal, trata-se de uma propriedade relacional como qualquer outra e, quando três elefantes são semelhantes, parece que têm entre eles a mesma relação que cinco ténis de lona têm também entre si. O que será então esta semelhança? Caso se volte a dizer que é apenas uma maneira que os seres humanos têm de agrupar relações semelhantes, parece que se cai numa regressão infinita viciosa: ou a ilusória semelhança é em si uma pura arbitrariedade linguística humana, o que nada explica, ou há algo de realmente semelhante em todas as relações de semelhança, o que leva a fazer a mesma pergunta.

Outra dificuldade é que muitos termos gerais agrupam entidades de um modo que parece desempenhar um papel fundamental nas explicações mais bem-sucedidas da realidade: as girafas comportam-se como se comportam, diferentemente dos leões, porque são girafas e os leões, leões. Caso as entidades agrupadas pelo termo geral “girafa” nada tivessem em comum, não se compreende como conseguiria a biologia ser tão bem-sucedida ao explicar a natureza das girafas. Seria de esperar que entre cada girafa se encontrasse a mesma diversidade que se encontra num agrupamento aleatório que incluísse um sapato esquerdo, duzentos e dois pelos da barba de Darwin, oito bolas furadas, três mil milhões de galáxias e a orelha perdida de Van Gogh. Uma vez que não se encontra essa diversidade entre as girafas, a ideia de que nada há de comum entre elas exceto o termo geral “girafa”, ou que entre elas há apenas uma semelhança sem robustez metafísica, não parece promissora.

A semelhança que se encontra entre os particulares brancos é um dos fatores que leva a pensar que há uma entidade peculiar: a brancura. Porém, a relação de semelhança não desempenha qualquer papel explicativo nas hipóteses brevemente exploradas até agora. A quinta e última hipótese sobre a natureza das propriedades que será agora brevemente explorada propõe precisamente dar peso explicativo e metafísico à relação de semelhança que se encontra obviamente entre todos os particulares brancos.

A semelhança é uma relação, e tanto ocorre entre uma entidade e ela mesma (caso em que, além da semelhança, há também identidade numérica), como entre várias entidades. Quase todas as relações de semelhança são relativas (e talvez todas as relações de mera semelhança, isto é, quando não há identidade), no seguinte sentido: uma rosa natural e uma rosa de plástico são semelhantes relativamente à cor e à forma, mas dissemelhantes relativamente ao odor e à textura; e, tanto quanto se sabe, todas as entidades espácio-temporais são semelhantes relativamente à constituição: são feitas de átomos. Isto contrasta com a identidade; esta relação não parece relativa, no sentido em que a relação de identidade entre uma entidade e ela mesma não parece relativa a uns aspetos, em detrimento de outros.

A existência de qualquer relação depende exclusivamente da existência dos relata. Isto é mais óbvio no caso da identidade, precisamente porque basta que uma entidade exista para ser idêntica a si própria. Porém, o mesmo acontece no caso da semelhança e da mera semelhança: basta que existam várias folhas brancas de papel para que sejam semelhantes quanto à cor; não é preciso qualquer outra entidade. Assim, caso se considere que cada particular branco tem uma propriedade particular da brancura, semelhante a todas as outras, mas numericamente distinta, consegue-se prescindir de entidades abstratas e de universais; explica-se tudo exclusivamente com entidades particulares.

Considere-se de novo duas folhas brancas de papel. A semelhança quanto à cor entre esses dois particulares parece esgotar-se neles, e de nada mais depender exceto deles, no seguinte sentido: basta a existência dos dois particulares brancos para haver essa semelhança, e não se conseguiria fazer os dois particulares brancos mas impedir que fossem semelhantes quanto à brancura. Vendo as coisas assim, parece que não é preciso invocar entidades abstratas, nem universais, para explicar o que parece haver de comum nos vários particulares brancos: nada há de comum entre eles, numericamente falando, mas é-se levado a falar assim porque são semelhantes quanto a várias propriedades. Duas porções de água, por exemplo, são semelhantes e têm os mesmos poderes causais; é-se por isso levado a pensar que há uma entidade única, seja um universal ou um particular abstrato, que explica esta semelhança e esta confluência de poderes causais. Porém, quando se desce dos Céus das especulações filosóficas para a Terra das explicações científicas, vê-se que a composição química é responsável por essa semelhança e confluência: ambas as porções de água são compostas por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio, devidamente combinados. Contudo, será isto um universal? Afinal de contas, as moléculas de hidrogénio e de oxigénio que estão numa das porções não estão na outra. Uma vez que se começou por considerar que é a composição química a responsável pelas semelhanças e pelos poderes causais das duas porções de água, parece razoável insistir que não se encontra nelas uma só entidade, numericamente a mesma, que seria o tal universal. O que se encontra em cada porção de água não é a mesma propriedade, rigorosamente falando, mas antes diversas propriedades semelhantes; tão semelhantes que, na maneira comum de falar, se diz que é a mesma.

Claro que falar da constituição da água é diferente, em rigor, de falar das suas propriedades; e não é óbvio que os predicados formados a partir de relações de constituição exprimam propriedades genuínas. Talvez “ser (constituído por) H2O” não exprima uma propriedade genuína. Nesse caso, porém, não é fácil encontrar outros exemplos inequívocos de propriedades. Quando um particular é azul, isso é apenas o resultado da constituição da sua superfície, que o faz refletir algumas ondas de luz, mas não outras. Quando um particular tem mais massa que outro, é porque é constituído por mais matéria; e o peso de um particular resulta, de novo, da sua constituição e da constituição do corpo celeste em que se encontra. Por isso, talvez a própria ideia de propriedades, concebidas como algo independente da constituição, seja, em si, um despiste filosófico que resulta de insuficiente conhecimento científico.

Em qualquer caso, se pelo menos algumas propriedades forem constitutivas, parece razoável admitir que não são entidades abstratas nem universais. Não são abstratas porque são espácio-temporais e dependem do particular em causa para existir; e não são universais porque quando se encontra vários exemplos do que parece a mesma propriedade, não é realmente a mesma no sentido da identidade. Entre duas folhas brancas de papel que informalmente se diz que são iguais não há identidade numérica, precisamente porque são duas e não apenas uma; a identidade numérica é uma relação que uma entidade só tem consigo mesma, diferindo por isso da identidade qualitativa, que é, afinal, mera semelhança. Ora, quando se olha para as propriedades, não é difícil ver que ocorre aproximadamente o mesmo. Porquê pensar que o mesmo termo “branco”, aplicado a duas entidades que são sem dúvida numericamente distintas, refere uma só propriedade? Afinal, começou-se por admitir que o próprio termo geral “folha de papel” refere várias entidades numericamente distintas. Por que razão não haveria o predicado “ser branco” de referir também várias entidades em vez de apenas uma?

Uma dificuldade inicial desta hipótese é que não há critérios adequados de identidade numérica no que respeita a propriedades. Em que casos há duas propriedades da brancura, em vez de uma apenas? Voltando às duas folhas de papel branco, trata-se de duas propriedades da brancura, segundo esta hipótese; mas caso se rasgue uma das folhas ao meio, com quantas propriedades da brancura se fica? Três? Nesse caso, conseguiu-se dividir ao meio uma propriedade, o que é algo exótico, mas aceitável. A dificuldade é que não se vê por que razão se considera que só há uma propriedade da brancura antes de se rasgar a folha, e duas depois. Talvez seja razoável insistir que não há um critério de identidade numérica que estabeleça quando se está perante uma propriedade da brancura em vez de duas, ou duzentas e trinta e seis. Afinal, também no caso de muitos particulares não há critérios adequados de identidade numérica: quando se rasga uma folha parece que se fica com duas, mas quando se serra uma árvore ao meio não se fica com duas árvores. Isto significa que, com respeito aos particulares, as condições de identidade numérica diferem de caso para caso, e por isso parece razoável aceitar que o mesmo acontece com as propriedades: em alguns casos, é muito óbvio quando se tem duas, mas noutros casos não. Caso se aceite propriedades constitutivas, o número de moléculas de H2O que há numa dada porção de água é o número exato de propriedades de H2O que essa porção de água tem. Noutros casos, não se sabe bem se se está perante uma propriedade apenas, ou várias. Em suma: não há aqui uma dificuldade especial com as propriedades que não existisse já, em qualquer caso, com os particulares comuns.

Como se vê, uma breve reflexão sobre a nossa maneira comum de ver as coisas, em que muito descontraidamente falamos das propriedades, atributos ou características das coisas, leva-nos longe nos muitos caminhos da perplexidade filosófica. Mesmo que não se consiga, em última análise, dar uma resposta inteiramente satisfatória, muito se ganha já esclarecendo os conceitos fundamentais envolvidos, e as alternativas teóricas mais proeminentes.

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Jean-Baptiste Goyet, Héloïse et Abailard, c. 1829

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Desidério Murcho

Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.