FilosofiaGastronomia

Dois filósofos vão à cozinha

Cada capítulo do livro Fenomenologia dei sapori: Percorsi di due filosofi in cucina é ilustrado por uma pintura de Arcimboldo

por Marco Panza e Maria Carla Galavotti

Teria a filosofia algo a dizer sobre a gastronomia? É o que tenta responder o livro Fenomenologia dei sapori: Percorsi di due filosofi in cucina (Ed. Arterigere-Chiarotto, Varese, 2012. Ilustrações de Alberto Pratelli). Marco Panza pesquisa a filosofia da matemática; Maria Galavotti, a filosofia da ciência. Ambos têm em comum a paixão pela cozinha. O livro traz 144 receitas, distribuídas em doze capítulos: um dedicado a cada mês do ano (segundo as estações na Itália). Traduzimos abaixo parte da introdução do livro, assim como uma das receitas apresentadas.

* * *

Com que razão dois filósofos falam de cozinha? Sobretudo, por que o fazem quando não tentam nem propor uma filosofia da ars culinaria, nem inventar cardápios, por assim dizer, filosóficos, que sugeririam a combinação entre certos pratos e os pensamentos de algum filósofo? O fazem – nós o fazemos – não somente para dar voz a uma paixão, mas também porque nos parece que existem importantes analogias entre a boa cozinha e a filosofia.

A primeira é que a boa cozinha, assim como a filosofia, não nasce ex nihilo (“do nada”): esta é ligada a uma tradição, da qual representa um desenvolvimento, frequentemente sob a forma de uma reconsideração; é inovação de uma tradição. É a tradição que fornece a um prato, assim como a uma questão, ou mesmo a uma tese filosófica, a sua identidade, o seu caráter. E a inovação apenas propõe esta tradição sob um novo aspecto, que desvela potencialidades até agora escondidas de compor ingredientes ou de combinar ideias.

A segunda analogia é – talvez surpreendentemente, para alguns – no método. A filosofia chega à reconsideração da tradição que a produz analisando criticamente os fundamentos e colocando em evidência os espaços de manobra que esses permitem, mas que tinham até este momento passado desapercebidos. O mesmo vale para a boa cozinha. Todos os pratos que propomos neste livro têm a sua origem em uma tradição, e nasceram por esse método. Os fundamentos dos pratos são dados por seus ingredientes e pelo modo de composição destes. Buscamos analisar criticamente estes fundamentos e mostrar em suas dobras espaços de manobras que permitem inovações.

Alguns dos nossos pratos se apresentam como variações de pratos tradicionais; outros são combinações de sabores inéditos, mas sempre sugeridos por alguma tradição; outros, enfim, são verdadeira e propriamente pratos tradicionais, para os quais, mais que propor uma variação, propomos uma maneira de cozinhá-los, um pequeno segredo que nos parece ter descoberto e que nos parece dar ao prato o seu equilíbrio e a sua identidade.

Por fim, a terceira analogia poderia talvez parecer ainda mais surpreendente que a segunda: nós acreditamos que assim como a boa filosofia não é uma questão de gosto, mas de força racional, de capacidade de responder a problemas abertos em uma tradição consolidada, assim também a boa cozinha. Um bom prato não é bom porque agrada, mas porque realiza um equilíbrio, tem uma certa fisionomia e um certo caráter. Aqueles que, a nosso ver impropriamente, são geralmente qualificados como “gourmets” sabem separar essas características, e um bom cozinheiro é aquele que não se cansa de buscá-las. Certo, cada um tem os seus gostos. Mas não se engane: a boa cozinha não tem o objetivo de segui-los, e sim aquele de educá-los, de confrontá-los, de surpreendê-los. Um prato bem feito é reconhecido por todos aqueles que foram educados a apreciá-lo e em qualquer circunstância. E um prato que deu errado, falhou para todos, em qualquer circunstância. (…)

Uma fenomenologia dos sabores é para nós uma descrição da natureza destes, do modo pelo qual são obtidos, são valorizados e se apresentam ao olhar, ao olfato, ao ouvido, ao tato, antes mesmo que ao paladar, através dos quais apreciamos e seguimos os sabores dos gostos traçados na nossa boca. Os sabores de um prato têm de fato seus lugares no interior de nossa boca, seus tempos, seus modos de apresentação (eis uma outra noção tipicamente filosófica) para cada um de nossos sentidos: têm as suas cores, seus perfumes, sua consistência, seus sons (pense naquele do risoto quando se lhe acrescenta parmesão e manteiga ao fim, na mantecatura).

Ao apresentar as nossas receitas, buscaremos descrever o modo pelo qual o sabor de um prato bem feito deveria se manifestar, além de, naturalmente, como nos parece que ele deveria ser obtido. Mas não espere indicações detalhadas que deveriam ser seguidas cegamente: uma receita não é um protocolo, uma descrição precisa e exaustiva de um procedimento único a seguir para obter um certo resultado, escrupulosamente previsto. Os elementos que uma receita prescreve combinar entre eles, que são os ingredientes, não são substâncias cuja natureza possa ser acertada de maneira precisa: não são elementos químicos e não são compostos dos quais a estrutura é perfeitamente estabelecida.

Mesmo a água, mesmo o sal não o são. A molécula da água que se usa para cozinhar não é uma simples composição de dois átomos de hidrogênio e de um de oxigênio: ela contém minerais que variam de uma maneira muitas vezes imprevisível, e que modificam o gosto. O mesmo vale para o sal. Compare um punhado de sal grosso normal comprado no supermercado ao lado de casa com um punhado de flor de sal da Guerande (uma antiga citadela bretã fortificada, com grande reserva de sal), e você descobrirá imediatamente que não se trata do mesmo ingrediente.

Cozinhe dois robalos com sal, o primeiro com o sal comum, o segundo com a flor de sal da Guerande, e você verá que esta diferença tátil e visual se transforma antes em uma diferença procedimental – o segundo adere mais ao peixe, não deixa descoberta nenhuma espinha, o envolve em uma luva protetora e úmida – portanto em uma diferença organoléptica. Isto vale ainda mais para os tomates, as laranjas, a carne bovina, os filés de pato, o queijo parmesão e todos os ingredientes do gênero.

Além disso, as condições nas quais se cozinha não poderão nunca ser exatamente as mesmas, e seria ilusório pretender codificá-las e agir para que se aproximem ao máximo possível de um ideal estabelecido. A humidade do ar variará segundo o lugar geográfico no qual se cozinha, e com a humidade da farinha. Faça a massa folhada na Escócia e você será obrigado a colocar as tiras da massa sobre o aquecedor antes de poder cortá-las. Faça-a na Emilia, e será obrigado a não deixar passar muito tempo entre o momento no qual tira a massa e aquele no qual você fecha o tortellini, porque de outra maneira as abas não adeririam. Se você mudar de cozinha, mudará a superfície sobre a qual trabalha, a sua temperatura, mudará a intensidade do fogo, a força e a ventilação do forno. É por isso que cozinhar não é sempre fácil, e que o êxito não é nunca certo.  Mas é por isso que é tão divertido, tão estraordinariamente relaxante, tão intelectualmente satisfatório, tão capaz de nos fazer sentir melhor.

Mas o que é então uma receita? Para que serve? Uma receita é uma sugestão. Para os pratos que você já conhece, é um convite a experimentar cozinhá-los de uma certa maneira, seguindo uma certa lógica, pensando neles, olhando para eles, e esperando eles de uma outra maneira. Para os pratos que não conhece, é a proposta de uma combinação de sabores na qual você não tinha ainda pensado, cuja possibilidade ainda não tinha sido revelada. É uma instigação para buscar entre aqueles sabores um equilíbrio que o satisfaça, que lhe encha o paladar e que dê a você e a seus amigos, ao menos pelo momento no qual você está situado, aquela alegria de viver, a qual a boa cozinha é feita para infundir.

Uma receita não deveria então fornecer para você a solução de um problema: o que cozinho hoje? E como cozinhá-lo? Ela deveria, antes, propor a você outra coisa: como sigo esta sugestão, como a faço minha?  (…)

A maneira pela qual decidimos formular as nossas receitas deriva de uma convicção que maturamos com os anos e que pode ser enunciada assim: a boa cozinha não é tanto uma questão de dose, mas uma questão de tempos.

Não que as doses nas quais os ingredietes se combinam não tenham importância. Mas nos parece que o êxito de um prato depende menos disso do que de outros fatores, em primeiro lugar da escolha dos tempos. Acrescente ao seu risoto à milanesa [ver receita abaixo], bem no fim, enquanto você mexe, um pouco de noz moscada. Acrescente um pouco mais ou um pouco menos de noz moscada. O gosto mudará. O sabor da noz moscada será mais ou menos forte.

Se não exagerar, e se não for parcimonioso demais, e se o seu risoto for verdadeiramente bem feito, se o arroz absorveu o caldo, se os seus grãos são brilhantes e crocantes no final, se no fundo do palato não sentir o sabor persistente e agressivo das gorduras, enquanto essas se expandem dentro da boca, então você terá segundo os casos risotos diferentes, mas igualmente bem sucedidos, adaptados aos gostos variáveis dos seus convidados.

Tente ao contrário colocar a noz moscada no início, junto com o o tutano levemente frito, e talvez, já que você está aí, mexa este molho um pouco mais, deixando-o queimar. Não importa qual for a dose da noz moscada, seu risoto não será o mesmo. O sabor da noz moscada não mais acompanhará harmoniosamente os outros, dando a sua contribuição ao seu equilíbrio, mas ele os matará, e matará assim o seu pobre risoto. (…)

Partitura que acompanha, no livro, a receita de Faisão à Marzemino

Não precisamos as doses porque acreditamos que podem variar com os gostos e com as circunstâncias; não precisamos os tempos porque acreditamos que isso é impossível em sua generalidade, mas o convidamos a buscar com cuidado e portanto a respeitá-los com a precisão de segundos.

Falando dos tempos, queremos também falar da ordem. Cozinhar não é uma operação comutativa. Não é a mesma coisa jogar a massa e fazer ferver a água, ou fazer ferver a água e jogar a massa. Isto todos sabem. Mas tampouco é o mesmo mexer o risoto e depois desligar o fogo, ou desligar o fogo e depois mexer o risoto; esquentar o azeite e jogar nele as anchovas, ou acender o fogão já sob o azeite e as anchovas. Nós o convidamos a respeitar a ordem correta. E junto à ordem cronológica, o convidamos a respeitar também a ordem espacial: não jogue nunca o queijo sobre a massa, mas sempre a massa fervendo e ainda pingando sobre o queijo; se você cozinha um peixe no forno, e o faz com frutas, não se contente em colocá-lo sobre uma camada de frutas, mas cubra-o com outras frutas, de maneira que o suco caia sobre ele, ao invés de ficar na forma. (…)

Ilustração para a receita de lula com beterrabas (Alberto Pratelli)

Eis portanto as nossas receitas. Trata-se, como dissemos, de sugestões. A você de segui-las se quiser, ou de tomar delas a deixa para elaborar outras astúcias, e perpetuar assim o jogo infinito e fascinante de uma tradição que se renova, ou melhor ainda, de diversas tradições que se encontram.

Maria Carla Galavotti é professora de Filosofia da Ciência na Universidade de Bolonha. Cultiva o interesse pela cozinha desde menina, quando ajudava a mãe a preparar ótimos pratos, dos quais conserva zelosamente as receitas.

Marco Panza é Directeur de recherche no CNRS (IHPST, Paris) e Presidentiel Fellow no Chapman University (Orange, CA). Algumas vezes foi convidado a congressos científicos na qualidade de cozinheiro, e foi em um desses que apareceu a colaboração gastronômica com Maria Carla Galavotti.

Alberto Pratelli (ilustrações) é arquiteto, e talvez o único bolonhês no mundo que era acostumado por tradição de família a comer melhor fora do que em casa. Tradução de João Cortese.

Uma receita: Risoto à milanesa

A lenda conta que Leonardo, pressionado por seus clientes e terminar rapidamente a sua Última Ceia, fazia as suas refeições trabalhando entre os andaimes, e um dia, por ignorância ou frenesi criativo, deixou cair o açafrão usado como pigmento em um prato de arroz fervido; entretanto, esfomeado ou distraído, o comeu, ficando fascinado pela harmonia dos sabores. O caso explicaria assim a origem do risoto à milanesa. (…)

O risoto à milanesa requer um caldo rico, mas com pouca gordura. Escolha o caldo de uma carne magra, uma capa de filé com o mínimo possível da sua gordura, asas e coxas de frango, também livres de gordura, mas ainda com a pele, um pouco de codorna ou de perdiz, e tutano.

Coloque-os em uma panela grande, se possível de cobre, com cenouras, algumas cebolas brancas inteiras nas quais em que você terá fincado alguns cravos da Índia (o que serve mais para escurecer o caldo do que para aromatizá-lo), meia cabeça de alho e alguns caules de aipo. A sua panela deverá ficar preenchida. Adicionar água fria até a boca da panela.

Aquecer com fogo alto. Quando a água ferver, se formará uma espuma escura que você terá de remover com uma escumadeira. Você terá que repetir a operação até que a espuma pare de se formar.

Neste ponto, abaixe o fogo e continue a cozinhar por horas (ao menos seis, mas seria melhor chegar a oito, ou mesmo dez), de maneira que o caldo esteja constantemente em um leve “tremor”, sem nunca ferver de verdade.

Durante toda a primeira parte do cozimento, quando a água diminuir acrescente água morna. Porém evite fazê-lo ao fim, de maneira que quando tirar o caldo do fogo ele tenha sido consistentemente reduzido.

Neste ponto, você deverá tirar a gordura do seu caldo. Retire a carne e os vegetais reduzidos a purê (o que você evidentemente será o caso) e deixe-o

esfriar até formar uma crosta amarelada na sua superfície. Remova-a com uma escumadeira. Então reaqueça o caldo até uma forte fervura. Acrescente claras de ovos, espere coagular e em seguida elimine com a famigerada escumadeira.

Repita esta operação duas ou três vezes. Por fim, retire o caldo do fogo e filtre-o com um pano de prato reticulado bem espesso, formando com este um saco que você pressionará com as mãos para tirar o caldo. Sempre que você fizer isso, lembre-se de no fim lavar cuidadosamente o pano em água fria. Mas não lave a panela na qual você fez seu caldo, pois ela servirá para o risoto. Restrinja-se a eliminar a carne e os vegetais restantes.

Antes de passar ao risoto, você também deve ter reservado tutano de boi. Pegue ossos muito ricos em medula óssea, e jogue-os em água salgada fervente. Deixe assar até que o tutanto se torne opaco, para quebrar facilmente os ossos. Retire-os e coloque-os em água quente.

Você está finalmente pronto para começar a cozinhar o risoto. Escolha arroz carnaroli ou vialone nano. Em casos extremos, arroz arbório. Mas escolha-o com cuidado: saiba que um bom carnaroli cozinha em pelo menos vinte e três minutos, restando obviamente crocante, um bom vialone nano em dois ou três minutos a menos, e um arbório em não menos que dezoito ou dezenove minutos, mesmo se quando você o provar durante os últimos minutos, você terá a impressão de estar a um passo do fim: como se diz, um bom arroz continua a cozinhar por um longo período de tempo.

Se outros tempos estiverem indicados na embalagem, significa que alguém está tentando enganar você, ou que o arroz não é de boa qualidade.

Coloque o tutano na panela na qual cozinhou o caldo, e aqueça este em outra panela, sem ferver. Na primeira panela, adicione uma lágrima de azeite e algumas lascas de cebola branca.

Dissolva o tutano e doure a cebola em fogo médio, depois remova-a, aumente o fogo e atire o arroz descascado e levado na panela. Deixe-o entrar no osso do tutano, fazendo-o saltar por alguns momentos enquanto o segura com uma colher, necessariamente de madeira.

Depois coloque vinho branco seco à temperatura ambiente. Ouça o chiado do arroz cru e banhado e continue lentamente a mexer até que, depois de alguns minutos, o vinho terá evaporado completamente. Neste momento, comece a acrescentar o caldo quente. Algumas conchas a mais de molho, esperando que evapore antes de colocar a concha seguinte, e sempre mexendo no mesmo sentido.

Na metade do cozimento, acrescente o açafrão em pó. Atenção para que seja açafrão da região de Áquila. O açafrão espanhol, da Mancha, frequentemente vendido em fios, e aqueles orientais ou do Maghreb, em pó, são algumas vezes mais perfumados, mas eles são muito mais doces.

Pegue uma concha de molho, derrame-a verticalmente sobre a panela na qual cozinha o arroz; jogue um pouco de açafrão e mexa vigorosamente com a colher de pau, de maneira que ele se dissolva no caldo e caia no arroz.

Repita a operação até terminar com o açafrão que você destinou ao risoto; e não seja parcimonioso. Quando parecer que o arroz esteja quase pronto (só a experiência poderá indicar este momento: como já dissemos, um bom arroz engana aos novatos, dando a impressão de estar no fim do cozimento por longos, penoso e angustiantes minutos), deixe de adicionar o caldo.

Quando o arroz secar, ele começará a cantar sobre os movimentos decisíveis da sua colher de pau: um redemoinho de vento que vai encantá-lo. Reaja, experimente o seu arroz, e quando sentir nos dentes uma consistência uniforme, mas oferecendo ainda uma certa resistência, desligue o fogo, mas deixe a panela no fogão.

Se tiver feito tudo corretamente, o arroz deixará de dançar às ordens de fogo e, instantaneamente, formará uma superfície brilhante de caldo, sob a qual reinará a calma dos grãos emergentes.

Começa então a etapa mais delicada: a mantecatura. Sem esperar mais, acrescente alguns punhados de parmesão ralado e algumas colheres de manteiga que foram antes amaciados (mas sem derreter) próximo ao fogão.

Mantenha a calma, de modo que o queijo e a manteiga sejam engolidos pelo arroz deixando apenas alguns pontos esbranquiçados na superfície. Em seguida, polvilhe um pouco de noz-moscada ralada no momento e continue a agitar.

Quando o seu risoto tiver ganhado uma cor completamente homogênea, você terá terminado. Verse-o em um prato oval de porcelana e ponha-o, saindo fumaça e cremoso, no centro da mesa.

Traduzido por João Cortese

Veja também

MasterChef nos lembra que o gosto é objetivo