Editorial: Tempos interessantes
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« Nous n’appartenons à personne sinon au point d’or de cette lampe inconnue de nous, inaccessible à nous qui tient eveilles le courage et le silence. »
(“Pertencemos a ninguém, a não ser ao ponto dourado da luz daquela lâmpada que nos é desconhecida, inacessível, e mantém despertos a coragem e o silêncio.”)
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René Char, Feuillets d’Hypnos
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Neste maio, o Estado da Arte completa três meses de retomada de suas atividades.
Parece seguro dizer que todos já devem conhecer a apócrifa história da maldição chinesa, segundo a qual o sábio pedia às divindades que fosse poupado de viver em tempos interessantes. Também parece seguro dizer que as divindades não nos pouparam.
Conheci a anedota da maldição chinesa quando li pela primeira vez, já há uns anos, a transcrição de uma conferência de Albert Camus, intitulada L’artiste et son temps. Em 1957, na Suécia, Camus refletia exatamente sobre o papel do artista em seu tempo. Afinal, como a nossa, também a sua geração havia sido condenada pelas divindades a tempos interessantes.
Qual é o papel do artista em tempos interessantes, afinal? Como Camus dizia à época, aquele que se manifesta é atacado, criticado; aquele que se cala, por modéstia ou covardia, é declarado culpado pelo silêncio. Seja como for, em tempos interessantes, o fato inescapável é que todo artista acaba embarcado no navio de sua época. Querendo ou não.
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Surge aí um dilema. Em tempos interessantes como aqueles, como os nossos, surge no artista a dúvida sobre a necessidade de sua arte. “Em 1957”, dizia Camus, “Racine pediria desculpas por escrever Bérénice em vez de lutar pela defesa do Édito de Nantes.” Hoje, é certo que as lutas seriam outras, mas arrisco dizer que, em 2020, Racine pediria desculpas por ter escrito Bérénice.
A reflexão poderia ser adapatada para muito além do mundo das artes. Qual é o lugar da reflexão intelectual, do exame crítico das ideias, do engajamento civilizado e responsável com o pensamento — justamente em nosso tempo, em que, dia após dia, perdemos a conta do número de escândalos, de terremotos políticos, de indecências, de notas de repúdios, de mortos?
Volto-me à reflexão de Camus, o moralista relutante que nunca se vendeu a abstrações ou à opinião presumida da intelligentsia (ao que parece, no círculo intelectual da França de sua época, ser moralista era dizer a verdade):
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Por um lado, é esperado que o gênio seja esplêndido e solitário; pelo outro lado, que se pareça com todos. Ora, a realidade é mais complexa. Balzac sintetizou em uma frase: ‘O gênio parece-se com todos e ninguém se parece com ele’. O mesmo é o que acontece com a arte, que não é nada sem a realidade e sem a qual a realidade é insignificante. Como, afinal, a arte dispensaria o real, e como poderia ser subordinada a ele? O artista escolhe seu objeto tanto quanto é escolhido por ele. A arte, de certa forma, é uma revolta contra tudo que é transitório e inacabado no mundo. Portanto, seu objetivo é o de dar outra forma a uma realidade que é ainda forçado a preservar, na medida em que ela é a fonte própria de sua emoção. Nesse sentido, somos todos realistas e ninguém o é. A arte não é nem rejeição nem aceitação completa do que existe. É, ao mesmo tempo, recusa e aceitação, e é por isso que deve ser um corte em renovação perpétua. O artista está sempre nessa ambiguidade, incapaz de negar o real e, no entanto, eternamente condenado a desafiá-lo naquilo que ele tem de eternamente inacabado.
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O Estado da Arte confessa aqui essa ambígua ambição: dar lugar à arte, à cultura e às ideias sem, contudo, subordiná-las à aceitação imediata das circunstâncias de nosso presente. Não queremos negar essas circunstâncias: trata-se de um equilíbrio complexo, que traz para o domínio da reflexão intelectual e cultural, do ensaísmo incentivado e publicado pelo Estado da Arte, a ambiguidade do artista, tal como constatada por Camus, em que a realidade é sempre desafiada, uma vez reconhecida sua condição “inacabada”. Deriva dessa posição sutil a combinação de interesses por análises e reflexões mais detidas sobre os temas do momento, de um lado, e a perpétua convicção de que o que mais vale é o que vale sempre: a grande arte, a melhor poesia, as melodias inesgotáveis. Nas análises do momento, não legislar; compreender. Na aposta na arte, compreendê-la como um obstáculo à mistificação da realidade.
Essa ambição é concretizada pelo trabalho de nossos colaboradores, os autores que tornam isso tudo possível e permitem esta fina sintonia: entre publicações de análise e intervenção (das quais temos mais de um exemplo), e textos que remontam à melhor tradição do ensaísmo cultural que nada deve às circunstâncias.
Como o Estado da Arte sempre foi, afinal — com as novidades necessárias para que siga sendo. Novidades como o retorno do Estado do Cinema, do Poesia em Casa e das entrevistas com acadêmicos de excelência; como as lives no Facebook, como a parceria com novas editoras, como as outras boas coisas que virão. Afinal, enquanto houver leitores verdadeiros, estaremos aqui: num espaço absolutamente gratuito, de livre acesso e livre discussão de ideias. Sem consentir, sem aquiescência: seja ao poder, qualquer poder, sempre transitório, seja aos encantos da opinião que se pretende esclarecida e, hoje, na busca pela crítica como fim em si mesmo, obrigaria Racine a um pedido público de desculpas. Se isso é ser crítico, ficamos com Racine.
Há, sempre haverá leitores.
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Gilberto Morbach
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