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Entre os mitos e o pragmatismo: o risco de uma política externa patética

por Vinícius Müller

A formulação de qualquer política, no sentido de manifestação de certa intenção amparada em planejamento, em uma ideologia ou em uma simples reconfiguração eleitoral, é fundada em um modo como se escolhe, hierarquiza e reconta a História. Os elementos que orientam esta reorganização da História variam ao gosto de quem a conta e conforme suas limitações do presente. Ou seja, é no presente, com todas as suas determinações, que escolhemos qual história vamos contar de modo a justificar aquilo que imaginamos estar preparando para o futuro.

A confusão pode ser exemplificada. Há uma quase unânime opinião, ao menos entre aqueles que têm o mínimo de responsabilidade, acerca da necessidade de um ajuste das contas públicas brasileiras. Um dos elementos que compõem esse quadro é a dificuldade de estados e municípios em equilibrar seus orçamentos e cumprir com suas responsabilidades. Entre elas, o pagamento de seus funcionários. Como resolver esse problema? Para alguns, diminuindo o número de funcionários, criando, inclusive, mecanismos formais que permitam a demissão de alguns deles. Para outros, reformando as regras da aposentadoria dos futuros inativos. Para outros tantos, aumentando os impostos para ampliar a receita dos estados e municípios. Ou ainda reorganizando as relações de direitos e deveres entre municípios, estados e união, de modo a redefinir o que chamamos, grosso modo, de pacto federativo.

É no presente que escolhemos qual história vamos contar de modo a justificar aquilo que imaginamos estar preparando para o futuro

Em geral, essa última proposta é defendida por aqueles que entendem ser a centralização excessiva. Também, em geral, são aqueles que se identificam com abordagens mais liberais sobre a economia, a política e a sociedade. São os mesmos que, muitas vezes, reconhecem na trajetória dos EUA elementos de sucesso, riqueza e desenvolvimento, justificando-os pela inovação e precocidade do modelo federativo que o país adotou desde sua independência no final do século XVIII. E, também, aqueles que, por isso, buscam na trajetória brasileira os elementos constitutivos da centralização, apontando para os males que nos legou. Assim, são críticos ao legado da centralização imperial, assim como do governo Vargas, e insistem em identificar na Constituição de 1988 um desequilíbrio relacionado ao pacto federativo que, em tese, teria ampliado a descentralização sem, em contrapartida, viabilizar financeiramente os estados e municípios. Em outras palavras, ao identificarem um problema presente (a falência de estados e municípios), propõem uma política esperando que no futuro o problema acabe. Mas, tal proposta é justificada pelo modo como enxergam e reconstroem a História, ou ao menos, aquela que destaca os itens que confirmam o modo como definem os problemas.

Outros tantos exemplos podem ser dados. Política externa é um deles. Isso porque ela carrega um elemento que torna sua configuração ainda mais complexa, dado que deve, entre suas funções, representar interesses baseados em uma possível unidade. Ou seja, representa os interesses do país como se fosse possível defini-los em meio à diversidade que o configura. Por isso, busca sempre algum tipo de embasamento mais subjetivo: interesse nacional, patriotismo, defesa de valores universais, valores culturais, tradições morais, etc. Não que esta subjetividade unificadora seja simplória por definição. Ao contrário, pode ser bastante complexa em sua construção. E isso envolve o modo como recuperamos nossa História.

Sobre isso, Demétrio Magnoli, na obra O Corpo da Pátria (Editora Unesp/Moderna, 1997) retoma  uma parte desta História ao analisar como a geografia, especialmente o que chama de “imaginação geográfica”, moldou parte considerável da política externa brasileira no século XIX. A imaginação, no caso, relaciona-se ao modo como construímos certa identidade a partir da definição do território. E essa identidade esteve tanto na maneira que entendemos o gigantismo territorial como parte essencial de nossa “brasilidade”, como também na formulação das posições externas, principalmente nas definições das fronteiras do norte (Amazônia e a compra do Acre em 1903) e na relação com a África Atlântica sob a pressão britânica ao longo do debate sobre o tráfico de escravos. Além, certamente, das definições das fronteiras do sul, envolvidas pelas disputas e interesses argentinos e paraguaios.

O interessante nesse caso é que a justificativa de uma política externa amparada na identidade territorial foi amplamente vista como uma simples definição de algo que o Brasil teria uma espécie de direito histórico. Este direito, na narrativa construída, derivava das definições territoriais da época colonial. Tanto, em caso específico, das fronteiras organizadas pelo Tratado de Madri de 1750, como também – e especialmente – de um certo mito criado como um elo entre um Brasil colonial e um Brasil definido como um Estado Nacional soberano. Um mito romântico, portanto, como foi o do indianismo. Ou como foi e, para muitos ainda é, aquele que identifica a abertura econômica como sendo inimiga dos reais interesses nacionais.

Neste sentido, a projeção relativa ao papel do país em seu posicionamento externo deve-se não só aos problemas identificados no presente, mas também a como o passado é reconstruído de modo a justificar tal projeção. Já foi assim em outros episódios, quando uma certa narrativa que nos incluía na tradição ocidental foi parcialmente responsável pelo posicionamento do país na Segunda Grande Guerra. Ou quando, logo depois, um antigo entusiasta da ‘germanização’ optou por recuperar uma inexistente trajetória democrática para justificar a aproximação entre o Brasil e os EUA. Ou ainda, quando a defesa dos interesses nacionais foi confundida com certo anticapitalismo juvenil. Assim como, logo depois, um perigoso anticomunismo lustrava a ideia de que ‘o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’. Por fim, a heroica política que se sustentava pela perspectiva de que negócios internacionais que envolvem países com níveis diferentes de desenvolvimento resultam, invariavelmente, em prejuízo aos menos desenvolvidos. Uma espécie de imperialismo contemporâneo. Assim, toda a política externa deveria buscar certo isolamento em relação aos países ricos e, ao contrário, aproximação com países em desenvolvimento.

Vale destacar que nenhuma delas era mentirosa. Todas tinham alguma referência histórica pertinente. Mas, mesmo diferentes em suas propostas e justificativas, superestimavam os itens que as constituíam. E se justificavam por uma visão mitológica sobre o passado. Mitos não são mentirosos. Só exageram e romantizam o tempo pretérito em nome de uma ligação entre o passado e o presente. E ajudam a criar narrativas que, em tese, nos unem em um passado e um futuro comum. Por isso, os exageros românticos que amparam as políticas externas tendem a criação de mitos como o da grandiosidade geográfica, o da essência ocidental, o da exploração pelo imperialismo, o da superioridade racial, entre outros.

Se tais mitologias nos ajudam a resgatar um passado que nos une, até pela própria necessidade da política externa em representar de modo coerente um país que, internamente, apresenta tantas variações, também ajudam a captura por questões ideológicas de parte importante de nossa representação internacional. Manter o que seria o equilíbrio entre tais formulações românticas e ideológicas, de um lado, e o pragmatismo, de outro, parece ser o ideal. Muitos já conseguiram, conforme a leitura do grande José Honório Rodrigues nos revela (Uma História Diplomática do Brasil, 1531 – 1945. Com Ricardo Seitenfus. Civilização Brasileira, 1995). Mas, a dificuldade está exatamente em manter esse equilíbrio. Nesse caso, o pendor, que muitos apresentam, favorável à idealização de um passado que nos une,  que explica o presente e justifica o que projetamos em matéria de política externa pode nos tornar mais do que irrelevantes no plano internacional: coloca-nos em risco de sermos verdadeiramente patéticos. A Venezuela comprova. O Brexit idem. O Brasil desta quadra da História parece correr esse risco também.

Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.