Filosofia

Por que há algo em vez de nada?

por Desidério Murcho

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‘God Blessing the Seventh Day’, William Blake, c. 1805

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Por que razão há algo em vez de nada? Esta pergunta é uma maneira de evitar repetir, para cada parte da realidade, a mesma interrogação acerca da razão da sua existência. Por que razão existe alguém, em vez de não existir? Neste caso, a resposta óbvia é que essa pessoa existe porque os seus pais a conceberam. Porém, por que razão existem os pais dela? E os deles? Como se vê, rapidamente se é conduzido a uma perplexidade acerca da existência última da realidade. Esta é uma imensa cadeia de entidades que tiveram origem noutras; mas será que esta cadeia se prolonga infinitamente? Ou será que existiu uma primeira entidade responsável pela existência de todas as outras? Nesse caso, porém, por que razão existiu essa entidade?

Nunca se soube tanto sobre a origem da realidade como atualmente. Sabe-se da origem da vida na Terra, da própria Terra e do sistema solar, para não falar da origem da galáxia e do próprio Universo. Contudo, todas as explicações atuais sobre a origem das várias partes da realidade se baseiam noutra parte que já existia. Explica-se a origem de uma casa invocando os materiais previamente existentes que foram organizados pelas pessoas que a fizeram; as pessoas tiveram origem em espermatozoides e óvulos previamente existentes; e o sistema solar, juntamente com a Terra, formou-se há cerca de cinco mil milhões de anos a partir de uma nébula, uma imensa nuvem de gás e poeiras cósmicas. Em todos estes casos, nunca se assiste à criação de algo a partir de nada; o que se observa sempre são transformações de umas coisas noutras. Assim, apesar do muito que atualmente se sabe, não se sabe afinal grande coisa sobre a origem última da realidade. Afinal, por que razão há algo em vez de nada?

Quando se quer saber por que razão algo existe, a resposta tende a ser causal, quando se fala de entidades como pessoas, planetas e galáxias. Todavia, não se pretende excluir à partida respostas que não sejam causais. Imagine-se que há números e que são entidades abstratas, no sentido platónico de serem exatamente como as pedras e as árvores, mas fora do tempo e do espaço. Obviamente, não é de esperar que a pergunta “Por que razão há números?” tenha uma resposta causal. Por isso, a pergunta “Por que há algo em vez de nada?” não pressupõe que a resposta será causal. Pretende-se apenas que seja esclarecedora.

Eis três hipóteses acerca da origem última da realidade:

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1. Cada entidade existe devido a outra ou outras, numa cadeia infinita, pelo que nunca há uma primeira entidade que tenha origem em nada. Neste caso, tudo o que ocorre no Universo é agregações e desagregações da mesmíssima matéria e energias fundamentais. Nenhuma entidade surgiu sem ter origem noutra entidade que já existia.

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2. Nem todas as entidades existem devido a outra ou outras; há uma entidade, ou várias, que existe por si própria e que está na origem de todas as que não existem por si próprias. Essa entidade que existe por si própria, ou entidades, não tem qualquer origem porque a sua existência não depende de outras entidades: é autossubsistente, digamos. Talvez seja Deus.

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3. Nem todas as entidades existem devido a outra ou outras; há uma entidade (ou mais) que começou a existir sem qualquer causa. Essa entidade não tem qualquer origem; apenas começou a existir.

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À primeira vista, a terceira hipótese é implausível, porque nunca se viu algo surgir de nada; contudo, talvez não seja de descartar. Para ver porquê, imagine-se que realmente nada deu origem a uma entidade (ou mais), a partir da qual todas as outras surgiram. Imagine-se que realmente essa entidade primeira começou a existir sem qualquer causa. Nesse caso, esse acontecimento singular em que algo surgiu sem causa não se repete hoje em dia, e é por isso que não há qualquer experiência dele. Defender que não há coisa alguma que surja do nada, porque nunca se viu tal fenómeno, seria aproximadamente tão inadequado como defender que o Big Bang não aconteceu, porque nunca se viu tal coisa. Se tanto o Big Bang como o aparecimento de algo a partir de nada forem acontecimentos singulares, não se repetem hoje em dia. Se houver boas razões para pensar que a terceira hipótese é mais plausível do que as restantes, ou se não houver boas razões para a excluir, invocar o princípio de que não há coisa alguma que surja do nada não é promissor — a menos que existam razões muito boas para pensar que esse princípio é verdadeiro. Porém, não é fácil ver que razões seriam essas.

Além disso, quem defende que a origem do universo é a criação divina ex nihilo está exatamente no mesmo pé, pois também nunca se teve experiência desse tipo de extraordinária criação. Consequentemente, caso se exclua a terceira hipótese com base na ideia de que nunca se viu entidades surgir de nada, excluir-se-á a segunda pela mesma razão: nunca se viu tal coisa.

Outra maneira inadequada de objetar à terceira hipótese é insistir que o nada não é a causa da primeira entidade ou entidades, porque não tem poderes causais. A resposta a esta objeção é que a terceira hipótese não pressupõe que há uma entidade chamada “Nada” que causou o aparecimento da primeira ou primeiras entidades; isto seria uma confusão verbal porque o nada não é uma entidade como uma montanha ou uma peúga velha — ao invés, é a completa ausência de qualquer entidade. A forma substantivada, “o Nada”, é verbalmente enganadora. A terceira hipótese é apenas que algo surgiu sem que tenha sido causado seja pelo que for.

Claro que a ideia de que algo surgiu sem qualquer causa é incompatível com o princípio de que tudo tem uma causa. Porém, não se sabe realmente se esse princípio é verdadeiro; acontece apenas que, depois de haver algo, parece que todas as coisas de que há experiência têm pelo menos uma causa. Talvez a origem última de toda a realidade seja precisamente um acontecimento sem causa, o aparecimento de algo que não foi causado por coisa alguma. Rejeitar esta hipótese com base na ideia de que todas as coisas que se conhece têm pelo menos uma causa não é, pois, particularmente promissor.

As duas tentativas anteriores de rejeitar a terceira hipótese procuram estabelecer, sem grande sucesso, a sua falsidade empírica. Uma tentativa diferente procura mostrar que é conceptualmente incoerente, e não apenas empiricamente falsa. Porém, esta via também não é particularmente promissora, pois nada de incoerente se vê inicialmente nessa hipótese. Do ponto de vista puramente conceptual não parece que a criação a partir de nada tenha menos direi­tos de cidadania do que a criação a partir de outras entidades. A única diferença entre as duas hipóteses é que uma é empiricamente banal, porque se vê todos os dias, e a outra não — mas esta é uma diferença empírica, e não conceptual.

Apesar destas considerações, aceite-se, para efeitos de discussão, que a terceira hipótese é de excluir. Nesse caso, qual das outras duas será mais plausível? À partida, não parece haver melhores razões para aceitar a segunda; pelo contrário, é a primeira que parece mais razoável, precisamente porque parece obedecer a um princípio muito fraco e de aparência plausível:

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Dada uma entidade qualquer, há sempre uma razão suficiente da sua existência.

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A razão suficiente da existência de Roger Waters não é a existência da sua mãe, e nem sequer a existência conjunta da sua mãe e do seu pai. Não é a existência apenas da sua mãe porque esse não foi o único fator responsável pela existência de Waters: o seu pai foi igualmente responsável. E não é a existência conjunta de ambos porque isso só por si não garante a existência de Roger — é preciso que se entreguem entre eles às alegrias do sexo consentido entre adultos, é preciso que ambos sejam férteis e é preciso um sem número de outros fatores para que o pequeno Roger venha ao mundo, só para azucrinar a cabeça dos fãs que preferiam que ele nunca tivesse deixado os Pink Floyd. Assim, uma razão suficiente da existência de uma entidade é a conjunção de todos os fatores que lhe deram origem ou que explicam cabalmente por que razão existe. Não é preciso saber quais são eles exatamente para aceitar esta versão aparentemente razoável do princípio da razão suficiente. Ora, a ideia da primeira hipótese é que a razão suficiente da existência da entidade a é outra entidade ou conjunto de entidades b, que por sua vez têm em c a razão também suficiente da sua existência — e assim por diante, sem parar. Nesta hipótese parece, pois, que nunca se encontra uma entidade que não tenha uma razão suficiente da sua existência. Por isso, parece que não se viola o princípio da razão suficiente.

Uma maneira de objetar a este resultado é começar por aceitar que, com respeito a cada uma das entidades da sequência, não se viola o princípio da razão suficiente. Todavia, o princípio é violado com respeito à própria sequência de entidades, pois ainda não há uma razão suficiente da sua existência. Se fosse bem-sucedida, esta objeção mostraria que, apesar de haver uma razão suficiente da existência de cada entidade da sequência infinita, não haveria ainda uma razão suficiente da existência da sequência em si. Este seria um modelo de objeção cogente: concedendo o que o interlocutor defende — que há uma razão suficiente da existência de cada entidade da sequência — e usando um princípio muitíssimo fraco que ele certamente aceita, conseguir-se-ia concluir validamente que o interlocutor viola esse princípio, porque ainda não apresentou uma razão suficiente da existência da própria sequência infinita de entidades.

Todavia, esta maneira de pensar é falaciosa. Isto porque, admitindo que há uma razão suficiente da existência de cada membro de uma sequência, há imediatamente uma razão suficiente da existência da própria sequência. Essa explicação é que a sequência existe desde que existam os seus membros; se a existência destes não fosse suficiente para que a própria sequência existisse, seria preciso algo mais para explicar a sua existência. Porém, isso não acontece: a existência dos membros de uma sequência garante a existência da própria sequência. É como se alguém admitisse que há uma razão suficiente da presença da Maria na biblioteca, assim como da Joana, mas insistisse que não há ainda uma razão suficiente da presença de duas pessoas na biblioteca. A resposta a esta insistência é fazer notar que basta a Maria estar na biblioteca, juntamente com a Joana, para que na biblioteca estejam duas pessoas. Vendo a objeção deste modo, é apenas uma confusão elementar, que viola a lógica da dependência ontológica entre a existência um conjunto de entidades e a existência de cada uma delas. Por isso, não é uma boa razão para excluir a primeira hipótese.

Contudo, há outra maneira de tentar excluí-la. Deste ponto de vista, não se aceita que numa sequência infinita de entidades se encontra uma razão suficiente da existência de cada uma delas, ainda que se admita que há uma explicação parcial. É um pouco como alguém que pergunta por que razão existe a Maria, e rejeita que a causa próxima da sua existência (os seus pais conceberam-na) constitua uma razão suficiente — ainda que reconheça tratar-se de uma explicação parcial — precisamente porque será preciso explicar por que razão a conceberam os seus pais, e por que razão existem eles, e por que razão existiram os pais deles, e por aí fora, sem parar.

Entendida deste modo, a objeção à primeira hipótese não é muito auspiciosa porque o que realmente conta nas explicações comuns e científicas são as causas próximas, e não as causas distantes e últimas. Imagine-se o que seria alguém perguntar “Por que razão está este sapato sujo em cima da minha cama?” e ouvir como resposta: “Bem, no início foi o Big Bang… milhões de anos depois formaram-se as primeiras galáxias e muito depois disso…” Há um sentido real e profundo em que esta resposta, além de tremendamente longa, não é adequada; o que realmente conta como explicação adequada da presença daquele sapato sujo em cima da cama são as causas próximas.

Porém, talvez seja razoável insistir que as explicações últimas, pela sua própria natureza, exigem mesmo o recurso às causas mais distantes a que se conseguir deitar mão, pois é disso afinal que se trata. Assim, aceita-se que há uma explicação parcial, incompleta, da existência de cada entidade de uma sequência infinita; mas insiste-se que não há uma explicação cabal, completa, de qualquer uma delas. E isso é que seria uma razão genuinamente suficiente.

Esta via, contudo, não é promissora, porque na primeira hipótese há explicações maximamente distantes da existência de cada entidade da sequência. Para ver porquê, comece-se com uma entidade qualquer, como a. A sua existência é explicada por b, que por sua vez é explicada por c, e assim por diante, sem parar — o que significa que há uma explicação completa e cabal da existência de a (e de todas as outras entidades), precisamente porque é infinitamente longa. Afinal, se uma explicação muitíssimo longa da existência de uma entidade é aceitável, uma explicação infinitamente longa também o será. O que isto significa é que, ao contrário do pretendido, seria a primeira hipótese que forneceria explicações mais adequadas da existência de cada entidade, pois, na segunda, as explicações são todas finitas e acabam numa entidade que deu origem a todas as outras, direta ou indiretamente. Assim, esta não é também uma via promissora.

Uma resposta a esta dificuldade é fazer notar que nenhuma entidade contingente explica cabalmente a existência seja do que for — precisamente porque essa entidade poderia não existir. A ideia é, então, que só há uma razão suficiente da existência de uma entidade quando uma entidade necessária está na sua origem. Daqui emerge um princípio modal da razão suficiente, muitíssimo mais forte que o anterior:

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Há uma razão suficiente da existência de cada entidade, mas só os existentes necessários fornecem uma razão suficiente da existência de qualquer entidade.

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Este princípio é incompatível com a primeira hipótese, caso se tenha em mente uma sequência infinita de existentes contingentes. Isto porque, neste caso, não há, afinal, qualquer razão suficiente da existência de qualquer uma daquelas entidades contingentes, precisamente porque poderiam não ter existido. Há explicações parciais, certamente, para cada uma delas, mas não suficientes. Assim, a objeção seria a seguinte:

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Se o princípio modal da razão suficiente for verdadeiro, a primeira hipótese é de descartar.

Esse princípio é verdadeiro.

Logo, a essa hipótese é de descartar.

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Este raciocínio é válido; é um modus ponens. Contudo, não é cogente, porque é circular. E é circular porque quem defende a primeira hipótese não tem qualquer razão independente para aceitar o princípio modal da razão suficiente. O defensor dessa hipótese aceita certamente a primeira premissa do argumento, mas não a segunda. Aceita a primeira porque é conceptualmente verdadeiro que esse princípio modal é incompatível com a primeira hipótese (imaginando que todas as entidades da sequência são contingentes); mas rejeita a segunda premissa precisamente porque não tem qualquer razão para pensar que esse princípio é verdadeiro. Em suma, o interlocutor responde com algo como o chamado “desvio de Moore”:

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Se o princípio modal da razão suficiente for verdadeiro, a primeira hipótese é de descartar.

Mas essa hipótese não é de descartar.

Logo, esse princípio não é verdadeiro.

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O chamado “desvio de Moore” aplica-se por vezes perante um raciocínio circular, para destacar a sua circularidade. A primeira premissa de ambos os raciocínios é igual; e ambos são válidos porque o primeiro é um modus ponens e o segundo um modus tollens (daí o chiste comum: o ponens de um filósofo é o tollens de outro). Claro que caso se aceite aquele modus ponens, aceita-se a sua segunda premissa e rejeita-se a segunda premissa do modus tollens do interlocutor; mas com igual legitimidade o interlocutor aceita a segunda premissa do seu modus tollens e rejeita a segunda premissa do modus ponens. Isto mostra que o modus ponens é circular, pois obriga a aceitar uma premissa — a segunda — que quem rejeita a conclusão do argumento, nomeadamente porque pensa que a primeira hipótese não é de descartar, não tem razão alguma para aceitar.

Fica-se assim num triste dilema: para rejeitar a primeira hipótese, ou se insiste num raciocínio inválido, com base num princípio que o interlocutor aceita, ou se sustenta um princípio que o interlocutor não tem razões independentes para aceitar, com o fito de conseguir um raciocínio válido contra a sua posição. Parece, pois, que não há uma maneira promissora de rejeitar a hipótese da sequência infinita de entidades contingentes.

Será, porém, que um exame cuidadoso do próprio princípio modal da razão suficiente oferece boas razões para aceitá-lo? A pergunta “Por que razão há algo em vez de nada?” não tem explicitamente qualquer componente modal, e entende-se perfeitamente sem pressupor que o algo em questão poderia não ter existido. A ideia é apenas perguntar por que razão existe o que existe; interpretada em termos não-modais, a expressão “em vez de nada” da pergunta quer apenas dizer que se está perante algo que existe, em vez de se estar perante nada, e pretende-se explicar por que razão existe tal coisa. É quando se dá uma interpretação modal a este “em vez de nada”, lendo-o como “existe, mas poderia não ter existido”, que se é empurrado na direção do princípio modal da razão suficiente. Parece, então, que as entidades que existem mas poderiam não ter existido exigem uma explicação especial, precisamente porque são contingentes; caso não fossem contingentes, não a exigiriam. Assim, quando se defende o princípio modal da razão suficiente, não se pensa que há uma perplexidade com o simples facto de algo existir; a perplexidade emerge apenas se essa entidade poderia não ter existido.

Dado o papel crucial que o conceito de contingência desempenha neste princípio, é preciso ter uma conceção clara da modalidade alética aqui envolvida. Que se quer dizer com “contingente”, neste contexto?

Genericamente falando, há três grandes hipóteses acerca da natureza da contingência, em particular, ou da modalidade alética, em geral.

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1. Na primeira, é contingente tudo o que é logicamente contingente. A ideia aqui é que se uma verdade for sintética, e não analítica, então é contingente: poderia ter sido falsa. Assim, dado que “A água é composta de hidrogénio e oxigénio” não é uma frase analítica, mas antes sintética, o facto de a água ser composta daqueles elementos é contingente: as coisas são assim, mas poderiam ter sido de outra maneira. Talvez a água pudesse ter sido um elemento, como se pensava na Antiguidade, em vez de ser um composto.

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2. Na segunda hipótese acerca da natureza da contingência, nem tudo o que é logicamente contingente é realmente contingente. O simples facto de ser logicamente contingente que a água é composta de hidrogénio e oxigénio não permite concluir validamente que as coisas poderiam realmente ter sido diferentes. Talvez a água seja necessariamente composta daqueles elementos. Ou talvez não. O ponto importante é que do simples facto de ser logicamente contingente que a água é composta daqueles elementos não se infere validamente que poderia não o ter sido.

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3. Finalmente, na terceira hipótese acerca da natureza da contingência, esta é simplesmente eliminada por ser uma ilusão filosófica. Segundo esta hipótese, não há qualquer contingência genuína, tal como também não há qualquer necessidade nem possibilidade genuínas. O que há é uma confusão filosófica, que faz as pessoas atribuir à realidade o que afinal diz respeito exclusivamente a nós e às nossas maneiras de saber das coisas. Quando sabemos de algo por meios puramente analíticos ou lógicos, parece-nos ilusoriamente que há aqui uma necessidade envolvida, mas isso é falso. Não é necessário, nem contingente, que os triângulos tenham três lados. Apenas têm três lados, e é tudo. Acontece apenas que, como sabemos a priori, por meios puramente lógicos, que têm três lados, inferimos confusamente que há aqui alguma necessidade envolvida que não a meramente epistémica.

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Dadas estas três hipóteses sobre a natureza da contingência, qual delas é mais promissora para formular e defender o princípio modal da razão suficiente?

A terceira hipótese torna o princípio claramente implausível: quando não se sabe a priori que algo existe, essa entidade existe devido a outra que se sabe a priori que existe. Isto é implausível, pois não se vê por que razão o que explica a existência das entidades haveria de depender do que se sabe a priori. Considere-se duas entidades, a e b, sendo que b é a origem da existência de a; caso se saiba a priori que b existe, a sua existência é a razão suficiente da existência de a; mas caso os poderes cognitivos humanos sejam mais modestos e só a posteriori se saiba da sua existência, a sua existência não é a razão suficiente da existência de a. Isto não é plausível, para não dizer que é obviamente falso.

Uma saída desta dificuldade é fazer uma leitura mais estritamente epistemológica do princípio. Não se trata então de pensar que a existência das entidades contingentes tem nas necessárias uma razão suficiente ligada ao que é responsável pela sua existência; ao invés, trata-se apenas de dizer que são os seres humanos que não têm uma razão suficiente que explique a existência de uma entidade a menos que invoquem uma entidade que saibam a priori que existe — mas isto nada tem a ver com o que é responsável pela sua existência.

Esta perspetiva da explicação é bastante implausível, pois as explicações bem-sucedidas têm uma forte conexão simultaneamente com os interesses epistémicos humanos e com a natureza das coisas que se quer explicar. Todavia, deixe-se esta dificuldade de lado e aceite-se a leitura meramente epistemológica do princípio modal da razão suficiente. Nesse caso, o preço a pagar é que se torna irrelevante aceitá-lo porque fica inócuo. Para ver porquê, imagine-se que se aceita essa leitura do princípio. Oferece isso alguma boa razão para pensar que a primeira hipótese não é verdadeira? Não; permite apenas concluir que, se esta hipótese for verdadeira, não há uma razão suficiente da existência das entidades contingentes. Mas como o conceito de explicação recebe agora um tratamento puramente epistémico, esta limitação explicativa humana não tem qualquer impacto metafísico — ou seja, a limitação epistémica humana não oferece qualquer boa razão para pensar que a realidade não está de acordo com a primeira hipótese. Não há qualquer razão para pensar que a realidade é assim tão solícita que se apresse a acomodar-se às limitações explicativas humanas.

Parece razoável considerar, pois, que caso se defenda o princípio modal da razão suficiente, herda-se a tarefa difícil de rejeitar a hipótese de o próprio conceito de contingência, no sentido metafísico do termo, ser uma fantasia filosófica que confunde a nossa maneira humana de saber das coisas, com a natureza das coisas. Não é uma tarefa invejável, e não é de esperar que seja facilmente bem-sucedida.

Resta saber qual das duas outras hipóteses acerca da natureza da contingência será mais favorável a quem defende o princípio modal da razão suficiente.

Imagine-se que se aceita a hipótese de que há contingências lógicas que, contudo, não são contingências genuínas, ou seja, metafísicas. Nesse caso, não há boas razões para pensar que as entidades logicamente contingentes, como os planetas, são também metafisicamente contingentes — isto porque, deste ponto de vista, a contingência metafísica não se conclui validamente da contingência lógica. Portanto, talvez os planetas, e muitas outras entidades, existam necessariamente, caso em que a resposta à pergunta “Por que razão existem essas coisas todas?” é apenas, do ponto de vista de quem defende o princípio modal da razão suficiente, “Porque não poderiam não existir”.

A única tábua de salvação de quem pretende usar o princípio modal da razão suficiente para chegar a algo como Deus é insistir que todas essas coisas que constituem o universo são realmente contingentes; a dificuldade é ver como se defenderá tal coisa, uma vez que não basta mostrar que são logicamente contingentes. Defender que os planetas são contingentes porque poderiam nunca se ter formado caso as condições iniciais tivessem sido diferentes é circular: as condições iniciais do universo são sem dúvida logicamente contingentes, mas o que não se sabe é se são metafisicamente contingentes.

Em conclusão, aceitar que algumas verdades necessárias não são verdades lógicas não é promissor caso se queira usar o princípio modal da razão suficiente para chegar a algo como Deus. Consequentemente, a hipótese acerca da natureza da modalidade mais favorável a quem defende o princípio modal da razão suficiente é a primeira: ideia de que todas as contingências lógicas são contingências metafísicas. Infelizmente, esta é a hipótese menos plausível, e quase certamente falsa, acerca da modalidade. Consequentemente, herda-se todas as dificuldades, algumas talvez mortais, que esta hipótese acerca da natureza modalidade enfrenta.

Segundo essa maneira de ver as coisas, Deus só existe necessariamente se for uma verdade lógica que Deus existe — não no sentido estrito de “Nenhum solteiro é não-solteiro” mas antes no amplo de “Nenhum solteiro é casado”. Deste ponto de vista, quando se procura a razão suficiente da existência de um planeta, talvez se encontre várias outras entidades e acontecimentos cuja existência esteve na sua origem: poeiras cósmicas, o Big Bang e tudo isso. Contudo, admitindo que todas estas entidades e acontecimentos são também contingentes (uma vez que são logicamente contingentes), será então preciso remontar a uma entidade que existe necessariamente para encontrar uma razão suficiente da existência desse planeta. Essa entidade é Deus.

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‘A benção da mão direita de Deus Pai’, Girolamo dai Libri, c. 1555

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Mesmo depois de se conceder tudo isto, é ainda falso que a mera existência de Deus — ainda que necessária — constitua uma razão suficiente da existência de um dado planeta. Isto porque há agora duas hipóteses: ou Deus poderia não ter criado o planeta (direta ou indiretamente, criando o que milhares de milhões de anos depois deu origem ao planeta), ou Deus o criou necessariamente. E em qualquer dos casos é o seu ato criativo que explica a existência do planeta, e não a mera existência de Deus.

Talvez esta não seja uma dificuldade séria, mas é certamente uma desilusão, pois significa que o princípio modal da razão suficiente não é, afinal, uma condição suficiente da explicação cabal da existência de qualquer entidade contingente; na melhor das hipóteses, é uma condição necessária. O que o princípio quer realmente dizer não é que a mera existência de Deus é a razão suficiente da existência do planeta, mas antes que a sua existência é uma condição necessária, ainda que não suficiente, dessa explicação. A verdadeira explicação suficiente da existência do planeta é o ato criador de Deus — mas esse ato não existiria, claro, caso Deus não existisse. A desilusão é que a ênfase explicativa parece estar no lugar errado. A expectativa razoável quando se ouve falar do princípio modal da razão suficiente é que se trata de um critério que determina se uma dada explicação da existência de algo é cabal ou não; agora descobre-se que a mera conformidade ao princípio modal da razão suficiente também não fornece uma razão completa da existência de um simples planeta. A razão incompleta que fornece é que o planeta só existe porque Deus existe necessariamente — mas esta não é a razão completa porque o planeta não existiria caso Deus não o tivesse criado.

Talvez esta desilusão não seja uma dificuldade significativa. Contudo, é muito difícil insistir que o dilema já mencionado não é uma dificuldade significativa — talvez mortal. O dilema, como se viu, é o seguinte: ou Deus criou mas poderia não ter criado, ou criou necessariamente. A dificuldade é que estas são as únicas alternativas, mas nenhuma é promissora.

Não é razoável pensar que Deus criou mas poderia não ter criado porque, nesse caso, seria preciso considerar ou que Deus atua arbitrariamente, e não segundo razões, ou que as razões para criar são em si contingentes. No primeiro caso, acaba-se por não ter qualquer explicação adequada da existência do planeta: existe porque Deus o criou, mas criou-o sem qualquer razão. Isto não é grande coisa em termos de razão suficiente da sua existência.

No segundo caso, concede-se que a existência do planeta, que, para obedecer ao princípio modal da razão suficiente, deveria ser integralmente explicada pela existência de uma entidade necessária, é afinal explicada por uma razão contingente. Isto parece incompatível com o próprio espírito, ainda que talvez não com a letra, do princípio.

Além disso, é duvidoso que existam razões contingentes, quando se fala de razões últimas. Há uma razão não-última ou instrumental para fazer algo quando isso é um meio adequado para outra coisa que se quer, e esta para outra ainda, até se chegar a uma razão última. Quando se tem uma razão última, pela sua própria natureza, não tem em si variações — as variações existirão exclusivamente em função das diferentes condições. Assim, uma razão para beber água é que se tem sede; mas não se teria essa razão caso não se tivesse sede. Isto significa que se tem apenas uma razão instrumental, e não última, para beber água. Em contraste, tem-se uma razão última para acreditar nas verdades lógicas — e aqui não se encontra qualquer variação. Dada a posição especial de Deus no ato criador, e a sua natureza racional perfeita, é implausível pensar que em algumas condições ele teria razões adequadas para criar e noutras não as teria, precisamente porque na situação criadora radical em que se encontra não há condições diferentes: antes de criar o universo, ele está como que sozinho com as suas razões, digamos. Parece mais plausível pensar, portanto, que Deus tinha razões necessárias, e não contingentes, para criar o universo. Porém, isto significa que se acabou por abandonar a primeira alternativa do dilema inicial e se aceitou a segunda: Deus não poderia não ter criado o universo.

A dificuldade fatal é que agora é preciso aceitar que nem tudo o que parece contingente é realmente contingente, nomeadamente a existência de entidades como planetas e chinelos de quarto. A existência destas entidades não é contingente porque não poderiam não ter sido criadas por uma entidade que não poderia não existir. Isto é uma dificuldade fatal porque, recorde-se, começou-se por rejeitar a hipótese acerca da natureza da modalidade segundo a qual algumas contingências lógicas não são contingências genuínas ou metafísicas; mas agora admite-se que algumas contingências lógicas, como a existência de planetas, não são contingências genuínas ou metafísicas, porque Deus não poderia não os ter criado. Caiu-se, pois, em contradição.

E caso se encontre alguma maneira de sanar esta contradição, fica-se como se estaria caso se tivesse desde o início aceitado a hipótese de que algumas contingências lógicas não são contingências metafísicas. É que, nesse caso, não é preciso Deus para obedecer ao princípio modal da razão suficiente. Basta dizer que todas essas entidades que, aparentemente, poderiam não ter existido, na verdade não poderiam não ter existido, e é essa a razão suficiente da sua existência.

Em suma, e em primeiro lugar, o princípio modal da razão suficiente é algo enganador porque afinal é apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para se ter uma explicação cabal da existência de qualquer entidade contingente. Em segundo lugar, ou Deus criou sem quaisquer razões e poderia não ter criado, ou teve razões para criar e criou necessariamente. A primeira hipótese obriga a admitir que afinal não há qualquer explicação cabal da existência de entidades contingentes como os planetas; a segunda obriga a admitir que são afinal necessárias todas as entidades cuja existência é aparentemente contingente, o que anula quaisquer razões adequadas para rejeitar esta mesma ideia quando quem a propõe rejeita que tudo o que é logicamente contingente é contingente e não precisa por isso de Deus para explicar por que razão há algo em vez de nada.

Nenhuma das alternativas parece, pois, promissora.

Acresce que se aceitou até agora, para efeitos de discussão, que o princípio modal da razão suficiente é plausível. Porém, sê-lo-á, realmente? Ao contrário do que se pressupõe nesse princípio, quando se pergunta por que razão algo existe, não parece fazer muita diferença se essa entidade existe contingente ou necessariamente. Responder que Deus existe porque não poderia não existir pede obviamente outra pergunta: “Por que razão Deus não poderia não existir?” Não é óbvio que seja adequado responder que não poderia não existir, porque esse é um facto bruto. Nesse caso, com a mesma tranquilidade se afirmará então que quando uma entidade existe, ainda que contingentemente, isso é um facto bruto. Qual seria a diferença?

O princípio modal da razão suficiente pressupõe que a existência contingente exige uma explicação especial que a necessária não exige, mas não é fácil ver porquê. Claro que a negação de verdades logicamente necessárias são impossibilidades — contradições lógicas no sentido amplo — e isso não acontece no caso das verdades contingentes; mas não é fácil ver por que razão isso faz por si a diferença. Talvez a diferença seja que no caso dos existentes necessários haverá, ou é de esperar que haja, uma prova puramente lógica da sua existência. Neste caso, seria isso a razão suficiente da sua existência. A dificuldade desta saída é que ainda não se explicou o que há assim de tão especial com as provas puramente lógicas, que as distinga das provas pelo menos parcialmente empíricas. Prova-se que existem necessariamente quatro números primos entre dez e vinte, mas também se prova que existem oito planetas no sistema solar; a primeira prova é inteiramente lógica, a segunda é parcialmente empírica. O que é claro é que ambas provam que algo existe; não é claro que uma delas, mas não a outra, forneça uma razão suficiente da existência. Ou ambas o fazem, ou nenhuma. Não é fácil ver por que razão só uma delas o faz.

Vale a pena acrescentar uma última nota. Tanto quanto se sabe, e ao contrário do que parece, a ideia científica muitíssimo bem fundamentada do Big Bang está mais próxima da primeira hipótese acerca da origem última da realidade, do que da segunda. Quando se fala do Big Bang, imagina-se por vezes um início a partir do zero, mas cientificamente as coisas não são exatamente assim. O Big Bang é uma singularidade, na qual há sempre um momento anterior a qualquer momento dado. Não há um tempo antes do tempo, nem um espaço antes do espaço. Falar do Big Bang engana porque parece que se está a falar do momento zero, digamos, que surgiu do nada. Mas a verdade é diferente: não existe um nada antes do momento zero; este sempre existiu, no sentido em que ao regredir do momento 1 para o zero é como regredir do número 1 para o zero na escala dos números racionais: há sempre mais um número entre quaisquer dois racionais.

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(Reprodução: Hubble eXtreme Deep Field)

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Desidério Murcho

Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.