Falando de Música

A Filarmônica de Berlim e seu novo chefe

por Leandro Oliveira

Kirill Petrenko, o novo regente titular e diretor da Filarmônica de Berlim a partir da temporada 2018/2019, não estava – qual cardeal Bergoglio – em nenhuma das listas dos especialistas. Mas Petrenko foi escolhido por predicados musicais incontestáveis. Antes da seleção, suas performances com a Filarmônica contaram não apenas com programas estimulantes e corajosos (o Poema do êxtase de Scriabin, ou a Segunda Sinfonia de Elgar) mas também um conhecimento atualizado dos clássicos – ao menos, como pudemos averiguar, numa mais que tensa Sinfonia dos Salmos de Stravinsky ou, sobretudo, acompanhando um concerto para piano de Beethoven de altíssimo nível.

Em parte, seus dotes como regente vêm da ópera: praticamente toda sua carreira (feita na Alemanha) foi entre teatros do gênero: foi diretor do Komische Oper de Berlim, passou várias temporadas em Bayreuth e recentemente esteve no comando do Teatro de Ópera da Bavária. Seu acesso e domínio deste repertório não devem ter contado muito para sua escolha, mas é provável que influencie nos rumos da Filarmônica durante alguns anos.

Entre suas qualidades extra-musicais há uma humildade comovente. Sua entrevista, realizada à ocasião de sua segunda apresentação com a orquestra em 2009, torna isso explícito: embora contasse a altura já com 37 anos, o nome da orquestra lhe pesava às costas, o que lhe faz parecer na entrevista um garoto deslumbrado.

Com 37 anos, a título de comparação, Mahler assumia o posto na Ópera de Viena. Petrenko assume aos 46 seu posto em Berlim – um ano a menos que Simon Rattle em 2002, e dez anos menos que Claudio Abbado em 1989. De algum modo, a Filarmônica de Berlim dobra a aposta feita em Rattle há dezesseis anos: mais uma vez terá por chefe um jovem decidido, com grande capacidade de trabalho e um líder que inspira os músicos sem marcas explícitas de vaidade ou carreirismo inoportuno.

À ocasião de sua escolha, Norman Lebrecht fez um pequeno inventário sobre o opinião de outros músicos tarimbados. Pela amostragem de Lebrecht, parece haver algo de visionário na escolha e a referência a Carlos Kleiber não passa incólume. Ao que parece, Petrenko é tido como um músico entre músicos, o tipo de maestro cujo trabalho nos ensaios e concertos galvaniza especialmente o melhor dos professores da orquestra, com perfeccionismo, ar franco e atitude deliberadamente desarmada.

A meu ver, a Filarmônica de Berlim, 16 anos depois, dobra a aposta numa liderança jovem mas qualificada – não apenas pela inteligência, mas sobretudo pela experiência e conhecimento intrínseco do mercado. Inteligência, experiência e conexões: é todo o necessário para uma gestão, no mínimo, profissional.

Mas não é tudo. Petrenko é um grande artista. E pode não ser tão midiático quanto Rattle a sua idade, mas é, a meu ver, tão carismático quanto (é coisa de gente boba confundir carisma com exposição e sensibilidade no trato com a mídia). Agora é torcer para que a Filarmônica siga inspirada. A música clássica precisa que a orquestra siga em boas mãos.

* * *

A despeito do impacto dos programas comunitários da Filarmônica e o projeto bem sucedido do Digital Music Hall (ideia que não foi de Rattle), todos nós fãs de música clássica sabemos que os anos de Sir Simon são controversos. A orquestra segue com o moral elevado mas não com o mesmo prestígio artístico de finais da década de 90. A era Rattle contou também com alguma programação heterodoxa e eventos popularescos que, a despeito do impacto na grande mídia, não fizeram da orquestra melhor – para alguns, a fizeram flagrantemente pior.

Em um país onde a crítica musical é levada a sério – e é um termômetro para os administradores entenderem as próprias escolhas – 2006 já havia trazido uma série de referências públicas nada entusiasmadas com o rumo que a orquestra tomava e com o papel de Rattle. Já àquela ocasião, a reação do maestro, como bem aponta Lebrecht, foi absolutamente desproporcional à crítica, o que nos deu, a todos estudiosos do assunto, a real dimensão de que ele, a despeito de sua aparente frugalidade, era um jogador político hábil e com bons contatos nos setores de comunicação.

Com todas suas vitórias, excessos ou controvérsias, Sir Simon Rattle terá estado à frente da instituição por 16 anos. Mais do que tudo, algo de sua impetuosidade deixará saudades. Possivelmente a coisa mais extraordinária que fez foi a montagem da Paixão Segundo São Mateus de J. S. Bach dirigida por Peter Sellars. Austera, bela e pungente, a montagem entra para a história da música clássica do século XXI como um marco – depois nas nossas vidas emocionais como algo inesquecível. Rattle mostra com ela que por vezes o risco vale mais do que qualquer acerto institucional. Pois quando o risco se faz Arte, deixa não só ao publico mas à própria ideia de Cultura eventos memoráveis.

* * *

A Filarmônica de Berlim publicou uma breve estatística sobre os anos Rattle à frente da orquestra. São referências sobre a programação e a formação da orquestra – o núcleo nervoso de uma direção artística. Pois, como é notório, a importância da direção de uma instituição sinfônica de alto nível não se mede apenas pela qualidade do que o maestro apresenta no palco – afinal, entre tantos regentes convidados, fica sempre claro que muitos podem superar o titular em rigor e “química” com a orquestra; a mais alta de suas responsabilidades está na seleção e direção dos novos músicos que irão fazer parte da formação pelos anos vindouros.

Assim como um Presidente da República que escolhe os ministros dos tribunais superiores, o diretor deixa um verdadeiro e bem concreto legado à posteridade neste sentido. Rattle teve a oportunidade de renovar praticamente um terço da orquestra – 53 entre 128 músicos (cf. Quadro 1 abaixo). Hoje a orquestra é muito mais cosmopolita e, item importante, certamente muito mais jovem. Muitos entre esses músicos certamente ultrapassarão a gestão de Kirill Petrenko.

As estatísticas trazem algumas entre as peças mais tocadas e a presença da nova música. Neste sentido, a Berliner seguiu a tendência internacional, de consagrar parte significativa de sua programação para obras novas ou de artistas contemporâneos. Foram 40 estreias em 16 anos. A nacionalidade dos autores varia imensamente, mas é evidente a concentração de artistas alemães.

Abaixo, seguem alguns destes dados sobre a era de Rattle extraídos do website da Filarmônica:

2002 – que ano! Os alemães estavam se acostumando ao Euro como a nova moeda única da União Européia, chuvas pesadas e prolongadas causaram graves inundações nos rios Danúbio e Elba, e o chanceler alemão Gerhard Schröder lutou pela reeleição. Para a Orquestra Filarmônica de Berlim, havia sinais de mudança: a venerável orquestra foi transformada em uma fundação sob a lei pública, a fim de criar as condições ideais para que o novo chefe Sir Simon Rattle tomasse posse. Uma nova era começou para a orquestra. Com o programa de educação iniciado por Rattle, a Berliner Philharmoniker conseguiu transmitir seu entusiasmo pela música clássica para pessoas de todas as idades, de diferentes origens sociais e culturais e níveis de habilidade. O ano de 2009 viu o lançamento do Digital Concert Hall, onde os fãs de música clássica de todo o mundo podem hoje acompanhar os concertos da orquestra em uma transmissão ao vivo. O que mais moldou a era Simon Rattle? Nesta página, damos mais alguns fatos. Há uma ‘lista de sucesso’ dos trabalhos mais realizados, você pode descobrir quais músicos se juntaram à orquestra no período, e obter uma visão geral das estreias mundiais pela Filarmônica de Berlim na era Rattle.

 

QUADRO 1

Novos membros da Berliner Philharmoniker desde que Rattle assumiu o cargo

2002
Stefan Schulz (Alemanha)
Simone Bernardini (Itália)

2003
Cornelia Gartemann (Alemanha)
Christophe Horak (Suíça)
Jonathan Kelly (Inglaterra)
Edicson Ruiz (Venezuela)

2004
Micha Afkham (Alemanha)
Martin von der Nahmer (Alemanha)
Raphael Haeger (Alemanha)

2005
Gábor Tarkövi (Hungria)
Andreas Buschatz (Alemanha)

2006
Thomas Leyendecker (Alemanha)
Alexander Bader (Alemanha)

2007
Solène Kermarrec (França)
Mor Biron (Israel)

2008
Philipp Bohnen (Alemanha)
Alexander von Puttkamer (Alemanha)
Simon Rössler (Alemanha)

2009
Matthew McDonald (Australia)
Rachel Helleur (Inglaterra)
Guillaume Jehl (França)
Daishin Kashimoto (Japão)
Jesper Busk Sørensen (Dinamarca)
Ignacy Miecznikowski (Polônia)
Krzysztof Polonek (Polônia)

2010
Dorian Xhoxhi (Albania)
Joaquín Riquelme García (Espanha)
Amihai Grosz (Israel)
Stephan Koncz (Austria)

2011
Andreas Ottensamer (Austria)
Marlene Ito (Japão)
Stanis?aw Pajak (Polônia)
Simon Roturier (França)
Máté Szücs (Hungria)
Gunars Upatnieks (Letônia)
Andrej Žust (Eslovênia)

2012
Luiz Felipe Coelho (Brasil)

2013
Egor Egorkin (Rússia)
Álvaro Parra (Chile)
Bruno Delepelaire (França)

2014
Michael Karg (Alemanha)
Noah Bendix-Balgley (EUA)

2015
Allan Nilles (EUA)
Mathieu Dufour (França)

2016
Helena Madoka Berg (Alemanha)
Václav Vonášek (República Tcheca)
Luis Esnaola López (Espanha)

2017
Anna Mehlin (Alemanha)
Andre Schoch (Alemanha)

QUADRO 2

TÍTULOS entre os DEZ MAIS TOCADOS

1º lugar – 34 vezes

Johannes Brahms – Sinfonia nº 2 em ré maior, op. 73

2º lugar – 26 vezes

Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 9 em ré menor, op. 125

3º lugar – 21 vezes

Igor Strawinsky – Le Sacre du Printemps (versão revisada de 1947)

4º lugar – 19 vezes

Johannes Brahms – Sinfonia nº 4 em mi menor, op. 98

Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 3 em mi bemol maior, op. 55

5º lugar – 16 vezes

Johannes Brahms – Sinfonia nº 1 em dó menor, op. 68

Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 6 em fá Maior, op. 68

6º lugar – 15 vezes

Alban Berg – Três peças para orquestra, op. 6

Ludwig van Beethoven – Sinfonia n º 7 em lá maior op. 92

7º lugar – 14 vezes

Claude Debussy – La Mer

Johannes Brahms – Sinfonia nº 3 em fá maior, op. 90

Ludwig van Beethoven – Sinfonia No. 4 em si maior, op. 60

8º lugar – 13 vezes

Gustav Mahler – Sinfonia n º 5

9º lugar – 12 vezes

Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 5 em dó menor, op. 67

Anton Bruckner – Sinfonia nº 9 em ré menor

Franz Schubert – Sinfonia nº 8 em dó maior; D 944

10º lugar – 11 vezes

Anton Webern – Seis peças para orquestra, op. 6b (versão revisada de 1928)

Gustav Mahler – Sinfonia nº 2; Sinfonia n º 7; Sinfonia nº 9

Joseph Haydn – Sinfonia nº 86 em ré maior

Richard Strauss – Ein Heldenleben

 

ESTREIAS (2002 – 2018)

Hans Abrahamsen – Três peças para orquestra (26 de maio de 2018)

Thomas Adès – Tevót (21 de fevereiro de 2007); Powder Her Face Suite (31 de maio de 2017)

Julian Anderson – Incantesimi (8 de junho de 2016)

Unsuk Chin – Chorós Chordón (3 de novembro de 2017)

Brett Dean – Queda de Komarov (16 de março de 2006); Notturno inquieto (14 de junho de 2018); Os últimos dias de Sócrates (25 de abril de 2013)

Jonathan Dove – Was lauert da im Labyrinth? (20 de junho de 2015)

Tan Dun – Terra secreta (17 de junho de 2004)

Pascal Dusapin – Reverso (1 de julho de 2007, Aix-en-Provence)

Henri Dutilleux – Correspondências (5 de setembro de 2003)

Heiner Goebbels – Aus einem Tagebuch (6 de março de 2003)

Sofia Gubaidulina – In tempus praesens (30 de agosto de 2007, Luzern)

Georg Friedrich Haas – dark dreams (20 de fevereiro de 2014); ein kleines symphonisches Gedicht (25 de agosto de 2017)

Jonathan Harvey – Weltethos (13 de outubro de 2011)

Paul Hindemith – Klaviermusik mit Orchester (9 de dezembro de 2004)

Simon Holt – Surcos (5 de maio de 2017)

Toshio Hosokawa – Moment of Blossomin (10 de fevereiro de 2011)

Betsy Jolas – Uma pequena suíte de verão (16 de junho de 2016)

Christian Jost – Heart of Darkness (7 de novembro de 2007)

Magnus Lindberg – Agile (14 de junho de 2018); Seht die Sonne (25 de agosto de 2007)

Wynton Marsalis – Swing Symphony (9 de junho de 2010)

Benedict Mason – Musik für die Philharmonie (2 de dezembro de 2012)

Siegfried Matthus – Konzert für Fünf (28 de maio de 2009)

Andrew Norman – Spiral (14 de junho de 2018); Zum Mond und zurück (17 de junho de 2017)

Matthias Pintscher – Em direção a Osiris (16 de março de 2006)

Wolfgang Rihm – IN-SCHRIFT 2 (20 de outubro de 2013); Gruß-Moment 2 – in memoriam Pierre Boulez (10 de fevereiro de 2017)

Kaija Saariaho – Asteróide 4179: Toutatis (16 de março de 2006); Lanterna Mágica (28 de agosto de 2009)

Johannes Staud – Maria »Apeiron« (15 de junho de 2005)

Mark-Anthony Turnage – Relíquia da Memória (22 de outubro de 2004); Ceres (16 de março de 2006)

Jörg Widmann – Trauermarsch (18 de dezembro de 2014); Tanz auf dem Vulkan (27 de maio de 2018)

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.