Falando de MúsicaHistóriaÓpera

Especial Revolução Russa

Sergei Prokofiev e Dimitri Shostakovich

O dia 25 de outubro marcou os cem anos da Revolução Russa. A seleção de dois textos da postagem de hoje é parte da minha colaboração  sobre a memória de tais anos terríveis. O primeiro deles, um editorial do Pravda atacando Shostakovich. O segundo, uma carta de Prokofiev curvando-se, artificiosamente, presume-se, à estética oficial soviética 

por Leandro Oliveira

No dia 17 de janeiro de 1936, Joseph Stálin assistiu à performance do espetáculo “O plácido Don” de Ivan Dzerchinsky (1909 – 1978), baseado na novela de Mikhail Solokov. Segundo um comunicado oficial, Stálin teria feito questão de chamar a seu camarote o compositor, o regente e o diretor da casa, dando um explícito sinal positivo “aos esforços do teatro no apoio à ópera soviética, notando os consideráveis méritos políticos e ideológicos da produção”. Tratava-se do primeiro evento de um Festival de música soviética realizado naquele período, e o Pequeno Teatro de ópera de Leningrado levaria ao Teatro Bolshoi de Moscou duas de suas mais recentes e bem sucedidas produções. A outra era “Lady Macbeth do distrito de Mtsensky” de Dimitri Shostakovich (1906 – 1975), que foi apresentada no dia 26 de janeiro.

Com uma segunda sinfonia dedicada à revolução de Outubro e já um nome internacionalmente respeitado como representante da nova música soviética, Shostakovich estava longe de ser uma voz da resistência ao projeto revolucionário bolchevique. Mesmo o libreto de “Lady Macbeth”, sobre o texto de Nikolay Leskov, matiza parte do elemento patológico da protagonista Katerina Izmailova. Ela é, na ópera, quase uma vítima do “patriarcado”, como se poderia dizer hoje em dia, o que eventualmente seria uma forma bastante envolvente de atualizar a narrativa original para o novo projeto da cultura russa pós-revolucionária (que tinha entre suas linhas mestras, ao menos por referências auto-declaradas, a emancipação feminina).

Mas não foi assim que Stálin entendeu o espetáculo. O edital do dia 28 de Janeiro do Pravda – muito possivelmente ditado pelo próprio Stálin – demonstrava isso.

Caos em vez de música

(Editorial do Pravda, 28 de janeiro de 1936)

Com o desenvolvimento cultural geral de nosso país, cresceu também a necessidade da boa música. Em nenhum momento e em nenhum outro lugar  compositor teve um público tão  sensível, ávido por boas canções, boas obras instrumentais e óperas.

Para esta nova e madura realidade cultural do público soviético, os teatros estão apresentando a ópera Lady Macbeth de Shostakovich como uma grande realização inovadora. A crítica musical, sempre pronta a servir, elogiou a ópera elevando-a aos céus, dando-lhe glórias retumbantes. O jovem compositor, em vez de ouvir críticas sérias que poderiam ajudar em seu amadurecimento e futuros trabalhos, só ouve elogios entusiasmados.

Pois desde o primeiro minuto, o ouvinte fica chocado com a dissonância deliberada e o fluxo incessante de sons – fragmentos de melodias, rugidos, guinchados. Seguir essa “música” é difícil – recordá-la, impossível. O canto no palco é substituído por gritos. O lirismo é suplantado pela selvageria de ritmos caóticos; a paixão é expressa por ruídos. Se há caminho para melodias claras e simples, o compositor decide atirar-se de volta ao deserto de seu caos musical deliberadamente. É evidente que tudo isto não é devido à falta de talento, ou falta de habilidade para descrever emoções fortes e simples em música.

Música feita como que de cabeça para baixo, apenas uma reminiscência de ópera clássica – e nada em comum com a tradição sinfônica ou com a simples e popular linguagem musical acessível a todos. Essa música é construída sobre a base da rejeição – a mesma base em que a arte “de esquerda” é acusada de afetada na simplicidade do teatro, na clareza realismo, nos recursos de imagens sugestivas ou no falar das palavras. Tudo aquilo que leva o teatro às características mais negativas do “meyerholdism” é, aqui, com a música, infinitamente multiplicado. A típica confusão “de esquerda” em vez da música humana natural. O poder da boa música para infectar as massas tem sido sacrificado por uma expressividade de pequeno-burguês, “formalismo” em busca da originalidade de um clowning barato. Trata-se de um jogo de ingenuidade “inteligente” que pode acabar muito mal.

O perigo dessa tendência para a música soviética é claro, assumindo a distorção de esquerda na ópera a partir das mesmas fontes que levaram a distorção de esquerda na pintura, poesia, ensino e ciência. “Inovações” pequeno-burguesas que rompem com a arte real, a verdadeira ciência e literatura. O compositor de Lady MacBeth foi forçado a usar em sua música elementos do jazz nervoso, convulsões e espasmos, a fim de emprestar “paixão” para seus personagens… Ele revela os comerciantes e as pessoas monotonamente, bestialmente. A mulher predadora é retratada como uma espécie de “vítima” da sociedade burguesa.

E tudo isso é grosseiro, primitivo e vulgar. O compositor aparentemente nunca considerou o problema daquilo que o público soviético procura e espera na música. Ele ignorou a demanda da cultura soviética que todas as grosserias e selvageria ser abolido de todos os cantos da vida soviética. Como que deliberadamente, ele escreve atabalhoadamente sua música, confundindo todos os sons de tal modo que essa música somente alcançará os estéreis “formalistas” que já perderam toda a integridade de gosto.  He ignored the demand of Soviet culture that all coarseness and savagery be abolished from every corner of Soviet life. Some critics call the glorification of the merchants’ lust a satire. But there is no question of satire here. The composer has tried, with all the musical and dramatic means at his command, to arouse the sympathy of the spectators for the coarse and vulgar inclinations and behavior of the merchant woman Katerina Ismailova.

Lady MacBeth está tendo grande sucesso com o público burguês no exterior… Nossos teatros têm despendido uma grande quantidade de energia em dar ópera de Shostakovich uma apresentação completa… Infelizmente, isso serviu apenas para realçar características vulgar da ópera mais vividamente. A atuação de talento merece gratidão, os esforços desperdiçados – arrependimento.

***

O retorno de Sergei Prokofiev (1891 – 1953) à União Soviética na década de trinta é, em diversos níveis, inexplicável. Sua decisão é tomada exatamente no momento em que o aparato do Estado passa a ditar as normas oficiais para a cultura – e nem na Itália Fascista ou na Alemanha Nazista foi pensada uma teoria que pudesse transformar as artes em um sistema de publicidade oficial. O realismo socialista, hoje sabemos, toma por base diversas doutrinas nacionalistas do século XIX. Mas é também a oportunidade para a censura oficial e os necessários jogos de duplo sentido por parte da burocracia.

Prokofiev sofre em seus anos soviéticos. Lina, sua esposa, estava em seu apartamento em Moscou uma noite em 1948 quando é presa. Acusada de espionagem e traição sofreu nove meses de interrogatório e tortura. Os arquivos soviéticos revelam o depoimento que ela apresentou ao procurador-geral em 1954: “Por três meses e meio … Eu não tinha permissão para dormir. Eu fui levada ao ponto de loucura … Tendo ficado doente … o investigador me consolou: ‘Não se preocupe, você estará gritando ainda mais alto quando sentir meu porrete aí embaixo’.”

No mesmo ano, Sergei Prokofiev, recém-acusado de propagar música formalista – o que um dicionário soviético da época definia por “a separação artifical da forma e conteúdo, e a elevação da forma em seus elementos individuais em algo de importância primária e auto-suficiente, em detrimento do contéudo” – envia uma carta a ser lida pelo alto comissariado da Assembléia Geral dos Compositores Soviéticos.

Carta de Prokofiev

O meu estado de saúde não permite comparecer à Assembleia Geral dos Compositores Soviéticos. Gostaria, por conta disso, de expressar minhas ideias sobre a Resolução do Comitê Central da União dos Partido Comunista de 10 de fevereiro de 1948, na presente carta. Peço para que seja lida na Assembleia se houver possibilidade.

A Resolução do Comitê Central distinguiu o tecido decadente na produção criativa de nossos compositores daquele saudável. Não importa quão doloroso possa ser para os compositores, eu mesmo incluído, eu dou boas-vindas à Resolução, que estabelece as condições necessárias para o retorno de toda saúde do organismo da música soviética. A Resolução é particularmente importante por demonstrar que o movimento formalista é estranho ao povo soviético, que leva ao empobrecimento e declínio da música. Aponta com claridade definitiva os objetivos a serem almejados pelos compositores Soviéticos para prestar o melhor serviço ao povo soviético.

Naquilo que me compete, elementos de formalismo são peculiares à minha música desde pelo menos 15 ou vinte anos atrás. Aparentemente, a infecção foi realizada pelo contato com as ideias ocidentais. Quando o erro formalista na ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk foi exposto pelo Pravda em 1936, meditei de forma não breve sobre os componentes criativos de minha própria música, e cheguei à conclusão que meu método de composição era errado.

Como resultado comecei a buscar por um idioma mais significativo e claro. Em muitas de minhas obras posteriores – Alexander Nevsky, Um Brinde a Stálin, Romeu e Julieta, a Quinta Sinfonia – forcei a libertar-me dos elementos do formalismo e, me parece, fui bem-sucedido até certo ponto. A existência do formalismo  em algumas de minhas obras é provavelmente explicada por uma certa complacência, uma realização insuficiente fo fato que é completamente não desejada por nosso povo. A Resolução balançou o centro da consciência social de nossos compositores, ao tornar claro que tipo de música é ansiada pelo nosso povo, e os caminhos da erradicação da doença formalista também ficou evidente. (…).

Para concluir, gostaria de expressar minha gratidão para nosso Partido pelas diretrizes precisas de sua Resolução, o que auxiliará minha pesquisa de uma linguagem musical acessível e natural a nosso povo, à dimensão de nosso povo e nosso grande país.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.