Falando de Música

Sergei Rachmaninoff e seu Terceiro Concerto para Piano

por Leandro Oliveira

Nos anos sessenta, a vida musical clássica realizou uma imersão curiosa no universo da historisch informierte Aufführungspraxis – HIP para os íntimos, acrônimo do inglês historically informed performance, finalmente, “prática de performance historicamente orientada”. Os ouvintes se viram mergulhados nas exigências de certo repertório, digamos das obras de J. S. Bach para teclado mecânico, ou os Concertos de Brandenburgo com instrumento de época, e as performances deste repertório por Wendy Carlos com sintetizadores elétricos, a despeito das inovações evidentes, passa a ser recebida como mera curiosidade ou esquisitice.

Desde então, as salas de concerto passaram por uma revolução curiosa na expectativa e no costume dos ouvintes. E a justificativa para tais revoluções era um valor positivo: a fidelidade. De algum modo, argumenta-se, é preciso ser fiel às intenções do compositor, assumidas a partir da letra fria do texto que, com toda sua precariedade, passa a ser matizado por meio de uma série de referências documentais de diversas matrizes histórico-musicológicas.

Foi a corrida pela fidelidade autêntica que criou uma certa literalidade viciosa e autocomplacente, que foi tema de um longo texto para este site, sobre a história da interpretação do texto de Beethoven na tradição alemã de interpretação dos seus Concertos para piano.

Semana passada, tivemos na Osesp uma leitura absolutamente impecável do “Quinto Concerto” do gênio de Bonn, com o pianista mexicano Jorge Federico Osório. E como temos agora, com a mesma Osesp, o “Terceiro Concerto” de Rachmaninoff, retomei com gosto as ideias daquele texto original para apresentar outra questiúncula que eventualmente servirá de interesse para o amante dedicado da música – a fidelidade desmentida pelo próprio compositor.

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No universo da interpretação do repertório concertante de Rachmaninoff, temos hoje o privilégio de contar com fontes primárias especialíssimas que são as gravações realizadas pelo próprio compositor. Nesse sentido, as gravações de Rachmaninoff são a encarnação do historisch informierte Aufführungspraxis.

Após algumas poucas publicações para Edison Records (e paralelamente ao registro de alguns rolos de piano), em 1920, Rachmaninoff assinou um contrato de gravação com a Victor Talking Machine Company, e iniciou sua longa associação com a RCA – sua última gravação seria em 1942. Particularmente renomadas são suas interpretações do “Carnaval op. 9″ de Robert Schumann e “Sonata op. 35″ de Chopin – além de muitas peças mais curtas de J. S. Bach, G. F. Hãendel, W. A. Mozart ou Alexander Borodin, entre outros.

Para a gravadora, Rachmaninoff registrou todos seus quatro concertos para piano com a Orquestra da Filadélfia. O primeiro, terceiro e quarto concertos foram gravados com Eugene Ormandy em 1939-41; o segundo concerto foi gravado duas vezes, sempre com o maestro Leopold Stokowski (1924 e 1929). Rachmaninoff realizou também a estreia mundial da gravação do “Rapsódia sobre um Tema de Paganini”, logo após a primeira apresentação em 1934, também com Stokowski.

Elas são, ou deveriam ser, ao lado da comparação dos manuscritos e dos textos publicados pelas editoras Gutheil (Moscou) e a Boosey & Hawkes (Londres), uma fonte definitiva para a tomada de decisões interpretativas de todo pianista, servindo de baliza para avaliação crítica de performances públicas e gravações atuais.

São, ou deveriam ser. A ideia de “fidelidade”, nos termos quase fetichistas da década de sessenta, é absolutamente estranha ao compositor. Em uma entrevista a James Francis Cooke, de 1917, Rachmaninoff diz:

Cada peça é uma peça em si mesma. Deveria, portanto, ter sua própria interpretação peculiar… um intérprete de sucesso deve ter uma forte individualidade, e todas as suas interpretações devem ter a marca dessa individualidade, mas, ao mesmo tempo, deve buscar variedade constantemente… Cada peça deve se destacar por possuir uma concepção individual e, se o intérprete não transmitir essa impressão ao público, é pouco melhor do que algum instrumento mecânico.

O demérito da leitura mecânica do texto musical – algo alçado ao status de valor de modernidade por volta da década de trinta por ninguém menos que Igor Stravinsky – é bastante sugestivo. Para Rachmaninoff, o intérprete deve justificar-se em um filosofia de leitura que, desejando a autenticidade, a busca em outro lugar que não na literalidade do texto, mas nos espaços abertos pelo texto. De fato, essas são duas visões contraditórias. Para todo profissional a comparação entre os textos e as gravações deixadas por Rachmaninoff, geram o centro de um insuperável problema hermenêutico.

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A história da interpretação do Terceiro Concerto é mais ou menos mapeada. Após sua estréia em Nova Iorque no 28 de novembro de 1909 (com repetição dois dias depois), sob a direção de Walter Damrosch, Rachmaninoff retorna à cidade no dia 16 de Janeiro de 1910 para apresentar a obra com a Filarmônica de Nova York, sob a regência de Gustav Mahler. A crítica norte-americana vaticinou uma referência que talvez deva sempre ser levada em consideração: o som do compositor era notável pela ausência de variedade (resultado, imagino eu, das horas de estudo sobre um teclado mudo), e o crítico sugeria que muitos pianistas poderiam fazer a parte do solista com mais interesse que o compositor.

Naquele mesmo ano, Rachmaninoff apresentou a obra em Moscou (Abril e Novembro), São Petersburgo (Fevereiro de 1911), Liverpool e Londres (Setembro e Outubro de 1911). Em janeiro de 1918, o compositor transfere-se com sua família para Copenhague, na Dinamarca, e, endividado, aos 44 anos, percebe que sua carreira como compositor era economicamente muito restritiva. Mesmo com repertório pequeno, retornou à prática regular de piano, reorganizou sua técnica e aprendeu novas peças – tornando-se assim, um pianista profissional em tempo integral. Sabemos que entre as tantas performances do “Terceiro Concerto” realizadas pelo compositor, nesta nova fase, poucas a satisfizeram: notórias, nesse sentido, são aquelas com a Filarmônica de Berlim e Furtwängler (11 e 12 de Novembro de 1928), duas em Londres em 1932 e 1936, outra em Nova Iorque, já em 1933 (com a Sinfônica da Filadélfia e Eugeny Ormandy).

Já em 1911, a obra foi realizada por um jovem aluno do Conservatório, Samuel Feinberg, que diplomou-se tocando o Terceiro Concerto. E sua carreira auspiciosa fez com que, já na década de 1930, começasse a ser acolhida com triunfo em apresentações pelas mãos de grandes virtuoses como Vladimir Horowitz (que foi o primeiro a gravar a obra em disco), e Walter Gieseking – que apresentou a obra em 1939 com a presença do compositor na plateia (momento em que Rachmaninoff decide não mais tocá-la em público).

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Entre as duas visões hermenêuticas há maior ou menor ênfase na oralidade no que poderíamos chamar por “tradição de leitura” – aquela que dá suporte à expressão de certo sinal escrito como correspondente a certo significado sonoro. Quando lidamos com obras como o “Terceiro Concerto”, teríamos a princípio, a partir da gravação, como determinar as relações unívocas de correspondência de cada trecho da partitura, já que a gravação do compositor nos daria toda a matriz de intencionalidade do texto.

Mas não é assim. Não apenas pelas liberdades com que o compositor trata seu próprio texto, não apenas por suas limitações eventuais como pianista, mas por outro motivo: embora não tenha deixado alunos, Rachmaninoff reconhece documentalmente que tanto Horowitz como em Gieseking rendem versões de altíssimo nível. Horowitz deixou ao menos três gravações, Gieseking duas. Todas muito diferentes entre si: senão compare, apenas pelo prazer didático, o tempo de cada intérprete já na apresentação do primeiro Tema do primeiro compasso.

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No caso específico, poderemos ouvir esta semana o “Terceiro Concerto, op. 30” com o pianista cubano Jorge Luis Prats. Prats é um pianista impressionante, um dos grandes virtuoses do teclado de nosso tempo – a despeito de sua presença escassa nos palcos de todo mundo. Com uma formação cosmopolita, foi aluno de Rudolf Kehrer (1923 – 2003), que por sua vez foi um dos alunos de Heinrich Neuhaus (1888 – 1964) – um dos grandes mestres da escola moderna de piano. Para além da agilidade e potência, que quando o ouvi, há mais de vinte anos, muito me impressionaram, será um prazer conferir o quanto ele é disposto a encarnaro papel de porta-voz desta rica matriz pianística russa. A conferir.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.