Política

O comando do Exército, os cisnes negros e o autoritarismo furtivo

por José Eduardo Faria

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Ao afirmar que o general Eduardo Pazuello não transgrediu o regimento disciplinar do Exército ao subir num palanque político com o presidente da República, no Rio de Janeiro, em 23 de maio — uma vez que não há campanha antecipada porque 2021 não é um ano eleitoral e que o presidente da República atualmente sequer está filiado a algum partido político —, o comandante daquela Força e seus assessores mostraram que não aprenderam, em sua formação, a distinguir raciocínio lógico de silogismo falacioso.

A lógica é um dos temas fundamentais da disciplina de filosofia, que aprendi no ensino médio seguindo um manual clássico escrito por Régis Jolivet, um respeitado pensador neotomista francês. O raciocínio lógico é decisivo para que que possamos pensar clara e coerentemente e resolver problemas, dirimindo os equívocos e mal-entendidos comuns ao uso ambíguo da linguagem cotidiana. Ele consiste num modo de raciocínio que nos leva a chegar a uma conclusão ou a resolver um problema, por meio da indução, da dedução ou da abdução. Esse tipo de raciocínio pode ser pode ser ilustrado, por exemplo, pela afirmação de que se os gatos são vertebrados, os siameses, por serem gatos, são necessariamente vertebrados.

Já o silogismo falacioso é um modo de raciocínio aparentemente baseado na dedução, mas com falhas na relação entre a premissa maior e a premissa menor. Ou seja, ele parte do geral, a partir de uma afirmação verdadeira, para o particular — mais precisamente, para uma nova afirmação que se pretende que também seja verdadeira, chegando então a uma conclusão necessária. Por meio de um conjunto de premissas ou atributos, extrai-se assim uma assertiva que é aplicada a todos seus proponentes. O problema é que, algumas vezes, é falsa a inferência tirada da relação entre a premissa maior e a premissa menor. Esse tipo de raciocínio falacioso pode ser ilustrado, por exemplo, pela afirmação de que, se a Ursa Maior é uma constelação de estrelas e os ursos são animais, logo as constelações são animais.

Ao afirmar que o comício do qual Pazuello foi um patético coadjuvante ocorreu num ano sem eleições e que o presidente da República ainda se inscreveu no partido pelo qual se candidatará à reeleição, em 2022, o comandante do Exército e os oficiais de seu gabinete desprezaram o raciocínio lógico, optando pelo silogismo falacioso. Em outras palavras, inverteram a ordem natural do julgamento, que previa a aplicação de um dispositivo concebido para evitar afronta ao princípio de autoridade, quebra de comando e o subsequente risco da politização dos quartéis e, por consequência, da anarquia militar. Não partiram de uma premissa maior (no caso, a proibição regimental de que militares da ativa se envolvam na política e participem de comícios), mas da conclusão — a ordem dada por Bolsonaro de que não queria a aplicação qualquer punição a Pazuello, o que abre caminho para que militares alinhados a ele apoiem suas iniciativas autocráticas.

Diante disso, para evitar a incidência da regra (premissa maior) e chegar à conclusão ordenada ou encomendada pelo presidente, só lhes restou a saída de usar como termo médio, em seu raciocínio lógico, um engodo ou uma artimanha retórica: tiveram que descrever como apolítica, não eleitoral e apartidária uma evidente manifestação que era tudo isso e algo mais. No fundo, é como se tivessem afirmado que, como todos os cisnes não são negros e alguns pássaros são cisnes, logo todos os pássaros não são negros. Mas, com essa premissa menor, só podemos concluir sobre alguns pássaros: certamente alguns pássaros (os cisnes) não são negros. Certamente o que se viu foi o envolvimento ilícito e constrangedor de um militar da ativa em uma manifestação política.

Mais curvos e servis do que propriamente obedientes, pois não souberam invocar o regimento disciplinar para barrar uma ordem intempestiva e sem fundamento legal do presidente, o comandante do Exército e seus assessores foram além de se desmoralizarem perante a tropa, perante as instituições e perante a própria sociedade. Eles também cometeram um grave equívoco. Ao recorrer a um silogismo falacioso para interpretar o regimento militar, abriram um precedente que pode atingir a própria ordem constitucional. Isso porque, com base nesse precedente, Bolsonaro e seu entorno familiar e palaciano passarão a partir de agora a pressionar os tribunais superiores — inclusive o Supremo Tribunal Federal — a adotar as mesmas artimanhas hermenêuticas na interpretação da Constituição.

Como imaginar que o mais novo ministro da mais alta corte do País, um magistrado obscuro que só chegou ao cargo por ter aceito publicamente “tomar tubaína” com quem o indicou, terá coragem de fundamentar seus votos por raciocínio lógico — e não por silogismos falaciosos — na interpretação da Constituição? Neste momento em que são tensas as relações entre os Poderes, de que modo esperar conhecimento doutrinário, rigor analítico, ponderação de princípios e clareza conceitual na interpretação das normas constitucionais de quem já foi e de quem será escolhido com a determinação de começar a construção de seus de seus votos pelo fim? Ou seja, não pela premissa maior, que deve orientar o raciocínio lógico da magistratura, porém pelas ordens que receberá de um Palácio do Planalto ocupado por gente medíocre e ignara, a exemplo do que acaba de acontecer com a cúpula do Comando do Exército?

Um dos problemas mais graves que as democracias contemporâneas hoje enfrentam é sua corrosão progressiva por meio de um autoritarismo dissimulado ou furtivo. Trata-se da estratégia de governantes autocratas que recorrem à ordem normativa vigente e aos procedimentos democráticos com o objetivo de reduzir as mediações institucionais, minar garantias fundamentais, corroer liberdades públicas, inviabilizar juridicamente eventuais resistências e liquidar com os direitos das minorias. E, também, com o objetivo de converter instituições de Estado, como as Forças Armadas, em “meu Exército”, sob a justificativa insólita de que (a) militares são “seres políticos”, (b) de “que decidem em qualquer país do mundo como um povo vai viver”, (c) de que “o futuro do Brasil vai depender da vontade deles” e (d) de que “vocês vão atuar dentro das quatro linhas [sic] da Constituição, se necessário for”.

A fala pode primar pelo português primário, de quem não aprendeu a se expressar por meio de sujeito, verbo e predicado. Contudo, seu potencial antidemocrático é explícito.  O que se vê com base nela é que, de um lado, temos um governante autocrata que apela para certos instrumentos do regime democrático apenas em busca de uma tinta de legitimidade. Qual é o real sentido da afirmação de que os militares atuarão dentro das “quatro linhas” da Constituição, “se necessário for?” De outro lado, contudo, por permitir que os intérpretes possam atribuir a um texto normativo — seja ele o Regimento Disciplinar do Exército, seja a Constituição — o significado que melhor atender a suas conveniências corporativas e políticas, a artimanha hermenêutica baseada em silogismos falaciosos, de que se valeu o comandante do Exército e equipe para absolver Pazuello, é um dos perigos para a preservação da democracia brasileira.

Segundo os cientistas políticos que estudam a capacidade dos regimes democráticos de resistirem à corrosão do autoritarismo furtivo ou dissimulado, a sobrevivência da democracia depende do modo como ela souber impor “normas de comedimento presidencial”, impedindo os chefes de Estado de promoverem “ações que, embora respeitem a letra da lei, violem o seu espírito”[1]. Assim, se o autoritarismo furtivo ou dissimulado de Bolsonaro e de seu inepto e patético entorno familiar e militar não for detido em tempo pelo Supremo Tribunal Federal, à medida que a Corte for sendo aparelhada pelas indicações do Planalto, ela corre o risco de passar a desprezar os entendimentos que foram construídos desde a redemocratização do país pelos operadores de direito e pela jurisprudência por eles firmada.

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Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Reprodução: Stephanie Mitchell)

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Como foi evidenciado pelos argumentos apresentados pelo comandante do Exército para não punir Pazuello, o silogismo falacioso como método de viabilização pragmática de uma vontade presidencial flagrantemente contra legem permite, no limite, que palavras extraídas da ordem constitucional que signifiquem “alguma coisa” passem, na boca dos próximos ministros a serem indicados, a significar “qualquer coisa”[2]. Se e quando isso ocorrer, estaremos não mais numa democracia, porém sob a tutela de um segmento do oficialato que abandonou o uniforme e as insígnias, adotando um comportamento que, mantido o ritmo da atual marcha da insensatez, não os distinguirá de milicianos e das falanges bolsonaristas armadas. Quem poderia supor que o Exército de Caxias ou de Osório correria o risco de chegar a esse ponto, no século 21?

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Luís Osório, Marechal do Exército do Império do Brasil, c. 1868

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Notas:

[1] Cf. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 127.

[2] Ver, nesse sentido, Constitucionalismo de Realidade: democracia, direitos e instituições, Fernando Leal organizador. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

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José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).