Cinema

FOCO – A estétyka identitária de Glauber Rocha, cineasta terceyromundysta

por Ana Júlia Galvan

Uma parceria com a Foco – Revista de cinema

Eu não faço um cinema convencional. Quer dizer, o meu tipo de filme é uma coisa que sai… de um outro espaço, e não obedece muito as leis da dramaturgia convencional, de modo que as pessoas ficam chocadas
(Glauber Rocha)

O Brasil é um país curioso. Somos latino-americanos, mas não temos vizinhos que partilhem da mesma língua; somos um país subdesenvolvido, mas temos características que nos distanciam dos países que compartilham dessa categoria conosco; somos índios, somos negros, mas também somos europeus — e até hoje não sabemos bem como nos inserimos no mundo. Temos quinhentos e tantos anos de história, e cada canto do país é ligeiramente estrangeiro para o canto oposto. Estas são questões de extrema importância — mas, ainda assim, são assuntos que ficam de fora da pauta da maior parte dos grupos (que pelo menos se dizem) preocupados com as grandes questões nacionais. Damos demasiado peso à política, à economia e a outras assombrações do tipo, e por algum motivo esquecemos que nem sequer sabemos o que, de fato, significa ser brasileiro.

A percepção destas questões de identidade — ou melhor, da falta de definições no que concerne a identidade brasileira — abre uma série de questionamentos e leva à necessidade de investigações profundas acerca das raízes e dos problemas deste gigante deslocado, desta nossa pátria amada, salve, salve. Um brasileiro que se ocupou de refletir sobre esses assuntos foi o cineasta baiano Glauber Rocha.

Pioneiro do Cinema Novo, Glauber nem sempre foi levado a sério. Seu jeito combativo e sua maneira peculiar de se expressar provocavam — e provocam ainda hoje — tanto o encanto quanto a repulsa. Uma de suas maiores preocupações era a de descobrir como o Brasil se insere no mundo, como nos inserimos na América Latina, como podemos usar o riquíssimo potencial desta vasta terra para escrevermos a nossa história a punho próprio e abrirmos nós mesmos os caminhos da nossa trajetória.

Para Glauber, o cinema brasileiro — bem como as artes em geral — precisava passar por um processo de “descolonização”: o Brasil deveria parar de simplesmente importar e integrar cegamente os produtos culturais de outros países — especialmente o cinema, que Glauber sabia ser um dos meios de mais fácil introjeção (por parte do produtor, ou do “colonizador”) e de absorção (por parte do receptor, ou do “colonizado”) — e desenvolver a partir de suas raízes tão diversificadas e tão ricas uma cultura própria, e assim também uma identidade própria. Por que insistir nas formas antigas de montagem e nesse olhar viciado sobre as nossas imagens, tão desconhecidas mesmo dentro do contexto nacional, se o cinema ainda tinha (ainda tem?) um potencial de expressão imensurável? Por que usar os jeitos estrangeiros de filmar e de montar um filme brasileiro, se o Brasil é um terreno tão fértil para a criação de novas formas de se ver e de se pensar o mundo? Por que falar sempre de um jeito similar dos temas que nos são recorrentes?

Na visão de Glauber, a descolonização deveria acontecer não apenas no campo do tipo de história a ser contada, mas na noção mesma de que o cinema existe para contar histórias. Afinal de contas, cinema não é teatro, não é televisão, não é romance. Cinema é cinema — e “cinema é para ver e ouvir”, conforme disse o diretor inúmeras vezes. Era preciso romper com a ideia de que um filme deve mostrar uma narrativa completa, linear, “correta, branca, suave, muito limpa, muito leve”, para usar as palavras de outro rapaz latino-americano. O terceyromundysmo é uma condição de vida, e não um estilo de vida — diferença aparentemente sutil mas bem pouco sutil na prática, e que talvez algumas alas intelectuais da Europa, interessadas na obra de Glauber, não tenham captado corretamente —, e por isso mesmo deveria se manifestar também nas artes. Não podemos fugir dele; não podemos simplesmente ignorá-lo: ele ataca feito cobra pronta para dar o bote. É impossível esquecer a fome, a miséria e a dificuldade de se viver em meio a tanta esculhambação. O melhor, então, seria integrar as nossas misérias à nossa expressão e à nossa identidade, ao invés de tentar escondê-las e produzir arte morna e deslocada para inglês ver (e aprovar). A ideia, parece-me, era que parássemos de nos fazer reféns de nossa situação e a usássemos como o próprio caminho para a redenção.

Ainda que tenha conseguido certa projeção em alguns países europeus como Itália e França — chegando até a participar de Vent d’Est (1970), filme do diretor francês Jean-Luc Godard —, o brasileiro não parecia ver nisso um grande êxito: em declarações variadas e em diversas ocasiões, o diretor afirmou que, embora alguns de seus filmes provocassem a admiração dos cineastas estrangeiros, estes não entendiam a origem de sua estétyka: a fome brasileira — não só do vazio das barrigas, mas também de justiça, de cultura popular e da estruturação das condições mínimas de existência — era para eles uma realidade desconhecida e talvez até inimaginável.

Contudo, Glauber não teve só aprovação. Muitos de seus filmes, por serem tão alheios à realidade europeia — mesmo em países cujos níveis de pobreza e de fome poderiam, em teoria, aproximá-los da realidade brasileira —, também foram veementemente rejeitados, provocando às vezes discussões e polêmicas. Foi o caso de Terra em Transe (1967), obra que gerou rebuliço e ajudou a aumentar a tensões políticas já exaltadas à época nos meios culturais do velho continente.

Mas é uma pena que o foco de atração de críticos e de acadêmicos brasileiros esteja tanto no potencial explosivo de seus filmes e nas inúmeras polêmicas nacionais e internacionais de que Glauber jamais fugiu; e é uma pena também que o motivo da repulsa de muitos seja o seu posicionamento à esquerda. Não é este o nosso interesse aqui. Embora fosse realmente explosivo e estivesse de fato à esquerda, essas inegáveis características não eram capazes de conter Glauber inteiramente: a sua busca mais persistente e, parece-me, mais importante era a da identidade brasileira. Falar disso, que é um tema importantíssimo e que, contudo, não é discutido com a devida seriedade, e expor com brutal honestidade o que percebia sem ter medo de dar nome aos bois — eis aí a canalização de sua veia revolucionária.

O que mais chama a atenção na vida e na obra de Glauber Rocha, contudo, não é necessariamente o seu interesse na revolução social, mas sim a luta do artista — aquela que o artista genuíno trava entre si mesmo e o mundo, entre a ideia e a expressão da ideia, entre a norma e a quebra da norma, enfim, entre a intuição e a consciência. Foi nesse impasse constante que surgiram os seus filmes e as suas declarações estranhas, que juntavam num mesmo plano e numa mesma sentença ideias marxistas sobre classes e símbolos de antigos rituais de origem africana.

Para desenvolver a si mesmo em plenitude, o artista — e uso aqui o termo com sua antiga significação, ou seja, a do artista como todo homem que dedica a vida a desenvolver-se em suas melhores habilidades, manifestando-as no mundo através de objetos e de serviços, inserindo-se, assim, na sociedade e ao mesmo tempo colocando-se à sua disposição —, o artista precisa de uma base social que funcione adequadamente. Glauber entendia isso, e por isso mesmo utilizou-se das armas que tinha (sua vocação de cineasta e a possibilidade concreta de realizá-la) para lutar pela sua comunidade — a dos brasileiros. A bem da verdade, se assistirmos os filmes de Glauber hoje em dia, veremos que o cineasta começa a carreira em experimentações de imagem e de ação, segue pela valsa com o discurso ideológico, chega ao cinema como obra de arte e abre caminho rumo ao delírio.

Sua obra está intrinsecamente relacionada à realidade brasileira em suas formas mais brutais, mais nuas e cruas, e mesmo assim seus filmes não conseguiram atingir o público brasileiro, não caíram no gosto do povo — justamente deste povo que era a preocupação máxima do diretor. Alguns o tinham, curiosamente, como demasiado intelectual e elitista; talvez porque o diretor tinha conhecimento sobre artes plásticas, sobre música, sobre literatura e ainda por cima falava uma boa quantidade de línguas estrangeiras — mas isso é fruto do pensamento torto de que, se é do povo, é necessariamente inculto. O intuito de Glauber era falar do povo para o povo, mas sua fala não conseguiu penetrar nas massas, que não entendiam o que ele queria dizer ou que simplesmente não tinham interesse em seu discurso. No fim das contas, sua fala foi adotada pelos acadêmicos, por quem o diretor não parecia ter muita simpatia. Por infelicidade do destino, a imagem que colou foi a do artista louco e barulhento que a gente acha engraçado, mas a quem não se dá muito crédito. A vida tem dessas.

Mas é importante lembrar que o legado da obra de Glauber Rocha não é só o alcance por ela atingido; é muito mais do que isso. O próprio diretor não via nessa dificuldade de comunicação um impedimento ou um sinal de sua fraqueza como cineasta: “…. a beleza da criação, que é a vida, reside justamente nesta luta contra o obscurantismo”, escreveu ele, certa vez. A criação, que era a vida de Glauber, surgia pelo combate.

Como era grande a presença de Glauber Rocha! A confiança do homem na própria obra, a fidelidade às suas ideias e o valor dado às suas origens não são coisas banais e não deveriam passar despercebidas, nem deveriam ser tidas como meras curiosidades relativas ao universo glauberiano — são elas a própria essência deste universo. Glauber é um exemplo de sujeito que entendeu perfeitamente qual era a sua vocação e criou os próprios meios de cultivá-la e de fazê-la dar frutos — coisa tão bela e infelizmente tão rara em nosso país.

Temos a ingrata tendência de relegar os grandes nomes brasileiros à poeira do passado. Eles, contudo, vivem em nossa história, e é importante relembrá-los: neles encontramos força e figuras nas quais podemos nos espelhar. O Brasil é uma terra propícia ao surgimento de artistas de personalidade sólida e de firme vontade. Precisamos revitalizar os nossos mestres, valorizar os nossos gênios, dar força e base aos nossos vocacionados.

Será que algum dia teremos estruturas razoavelmente saudáveis que permitam o florescimento de nossos talentos? Será que conseguiremos pelo menos aprender a usar o subdesenvolvimento que pesa sobre nossos ombros para nos desenvolver? E, tão importante quanto, quem é que vai ter a coragem de expor as nossas chagas e as nossas vitórias com coragem e maestria similares às de Glauber? Questões e mais questões…

Ana Júlia Galvan é revisora, tradutora e estudante das artes.