Cinema

FOCO – A Justa Medida de um Homem: o cinema de Bernardo Bertolucci

por Bruno Andrade

uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

Em O Cinema de Poesia, texto escrito no ano de 1965 em ocasião da 1ª Mostra Internacional do Novo Cinema de Pesaro, Pier Paolo Pasolini define um procedimento formal que irá chamar de “discurso livre indireto”, cujo emprego ele atribui aos filmes de Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard e Bernardo Bertolucci. Discorrendo sobre o autor de O Deserto Vermelho (1964), Pasolini explica da seguinte forma um dos princípios formais do discurso livre indireto: “A sucessiva justaposição de dois pontos de vista, de inexpressiva diferença, se dá a partir de uma mesma imagem: ou seja, a sucessão de dois enquadramentos que recortam o mesmo fragmento de realidade, primeiro de perto, depois um pouco mais longe; ou primeiro frontalmente e depois um pouco mais obliquamente; ou, finalmente, mantendo o mesmo eixo, mas com duas lentes diferentes. O resultado é a insistência que se torna obsessiva: como um mito da substancial e angustiante beleza autônoma das coisas”.

Mais adiante no texto, Pasolini descreve da seguinte forma a estrutura composicional de Antes da Revolução (1964), realizado quando Bernardo Bertolucci ainda era um jovem e emergente autor do cinema europeu moderno: “Praticamente todo o sistema estilístico de Antes da Revolução é uma longa subjetiva livre indireta, fundada sobre o temperamento dominante da protagonista do filme, a jovem tia neurótica. Mas enquanto em Antonioni a substituição da visão da neurótica se dá em bloco, com a visão de formalismo febril do autor, em Bertolucci essa substituição não se dá em bloco; ao invés disso, houve a contaminação entre a visão de mundo da neurótica e a do autor, as quais, sendo inevitavelmente análogas, não são facilmente distinguíveis, fundindo-se uma na outra: elas requerem o mesmo estilo”.

No começo dos anos 1970, após se notabilizar como um dos principais nomes dos novos cinemas que tomaram de assalto as cinematografias de todo o mundo, Bertolucci compromete o desenvolvimento desse recurso ao discurso livre indireto por uma guinada acadêmica que afeta quase todo o restante de sua obra. Ao recusar a coordenação eclética de um entusiasmo juvenil frenético por um talento refinado para a poesia regional, ao abandonar uma ambição pastoral que se concretiza apenas no momento em que internaliza a sua crise (a sequência à beira do Rio Pó em Antes da Revolução) ou quando manifesta o seu impasse (como em Partner, 1968, ou Agonia, 1969, curta-metragem do filme em episódios Amor e Raiva), Bertolucci introduz na sua poética as pompas de um academicismo internacional “para exportação” cujos pressupostos formais vedam a exploração do discurso livre indireto. Um esforço ingrato e uma ambição desmedida empolam os artifícios que nos seus primeiros filmes propiciaram a exploração de possibilidades formais, e as tentativas de grandes espetáculos “populares” resultarão em filmes cada vez mais estanques, como 1900 (1976) e O Último Imperador (1987), os quais apenas ressaltam o abismo que separa Bertolucci de Sergio Leone e Luchino Visconti.

A Tragédia de um Homem Ridículo (1981) representa, dois anos após La Luna (1979), a última tentativa de reivindicação de uma posteridade, deliberadamente impura, do neorrealismo rosselliniano na obra de Bertolucci. Observamos na sua construção o mesmo procedimento formal adotado em Antes da Revolução e Partner: o ponto de vista do cineasta se funde ao do protagonista da trama. Contudo, há neste filme uma novidade em relação aos seus antecessores: Bertolucci não tenta mais, como em Antes da Revolução, tomar emprestada uma personagem do Stendhal de A Cartuxa de Parma que teria passado por um filme de Ingmar Bergman antes de aportar no filme de um jovem poeta parmesão, nem, como em Partner, abordar a inconsciência e a inconsistência de uma personagem jovem, da sua geração, ainda assim suficientemente composta (a referência aqui é o Dostoiévski de O Duplo) para desempenhar mais do que um mero e autocomplacente papel de autorretrato. Após abordar a fundo as questões da composição do universo romanesco em cinco dos seus seis primeiros longas-metragens, é compreensível que Bertolucci se interessasse em prosseguir com a exploração do discurso livre indireto a partir de outros modelos narrativos. A originalidade de A Tragédia de um Homem Ridículo no interior da obra de Bertolucci deve-se ao fato de que, por uma vez, um recurso poético de construção narrativa é aplicado a um universo e a uma personagem que não pertencem ao fundo cultural nobre da literatura e da poesia nem costumam frequentar as obras de autores renomados: como em outros filmes seus, Bertolucci estabelece um jogo que ora integra o ponto de vista do seu protagonista ao seu a partir da construção narrativa, ora assume um recuo que pontua a estruturação do ponto de vista a partir da construção fílmica. Ocorre que o protagonista, interpretado por Ugo Tognazzi, é uma personagem que Bertolucci tomou, como ao seu ator, emprestada da commedia all’italiana, o que faz com que o filme adquira os próprios contornos da commedia all’italiana através desse processo em que o ponto de vista do protagonista e o do autor se entrelaçam.

Tendo como principal cenário uma fábrica de queijo e de abate de porcos na campanha de Parma, com uma narrativa extremamente elíptica e tergiversada, cujas lacunas introduzem no filme as tintas discretas do fantástico, Bertolucci consegue capturar e comentar essa natureza e essa poesia parmense que escaparam tão flagrantemente da estrutura colossal (cinco horas e dezesseis minutos) de 1900. O romanesco volta a decorrer da temporalidade atmosférica específica de um lugar que instiga os dons do poeta e narrador, o que confere, como em A Morte (1962), Antes da Revolução, La via del petrolio (1967) e A Estratégia da Aranha (1970), solidez e intensidade documentária à ficção, na qual o filho de um industrial é sequestrado por radicais de esquerda, o que leva a mãe do rapaz a entrar em crise enquanto o pai arquiteta um golpe no qual o dinheiro do resgate será reinvestido na sua empresa para que esta não quebre. Primeira singularidade do filme: apesar da aparente fragilidade da personagem da mãe diante da situação inicial, é o pai que parece sofrer mais com o rapto, chegando mesmo a assistir ao sequestro do alto da sua fábrica enquanto desfruta do presente que recebera do filho: um quepe de marujo e um binóculo. Com o tempo o industrial vem a descobrir, em contato com a namorada do filho (uma das funcionárias na fábrica de queijo), que ele o desprezava.

Despojando-se de alguns dos excessos acumulados nos filmes que realizou nos anos 1970, Bertolucci com A Tragédia… consegue recuperar sua identidade, a qual permaneceu encoberta pela síndrome de Don Juan exibida em filmes como O Último Tango em Paris (1972) e O Céu que nos Protege (1990), e o faz de tal modo que, como nos tempos de Antes da Revolução e Partner, como nos tempos de Pasolini e Rossellini, torna-se necessário posicionar o filme num determinado contexto cultural e político da sociedade italiana. O que Bertolucci mostra e de certa forma recupera nas últimas horas de vida do cinema popular italiano, num momento em que esse cinema começava a perecer em função do abandono do que fez a sua grandeza e lhe deu uma personalidade, é justamente o homem descoberto pelo neorrealismo: não mais o homem “maior que os heróis, mais belo que os deuses”[1] do cinema hollywoodiano, mas o homem que o cinema italiano descobriu nas ruas, em meio aos escombros da Segunda Guerra, aquele mostrado com uma franqueza e uma honestidade que desconcertavam como um soco enquanto ele reconstruía a Itália das cinzas, aquele que mais tarde viveu o auge do milagre econômico, a loucura imobiliária, as canções, o “boom” e a superação dos velhos costumes. É um pouco essa a história do protagonista de A Tragédia…, uma espécie de fundo comum a todo o cinema italiano do pós-guerra, e é a partir dela que Bertolucci dá prosseguimento à principal descoberta desse cinema no período neorrealista, acompanhando a tragédia e a graça desse “homem ridículo” ao qual o próprio Pasolini (em Accattone, 1961, ou Gaviões e Passarinhos, 1966) dedicou suas atenções antes dele se tornar o pivô da commedia all’italiana.

Essa tomada de consciência sobre uma personagem que atravessa todo o cinema italiano dos anos 1945-1980 permite a Bertolucci abrir um caminho que mais tarde será seguido por, entre outros, Nanni Moretti. Quando, em meados dos anos 1990, Moretti pega a sua lambreta e vai até o campo de futebol onde encontraram o corpo de Pasolini (Caro Diário, 1994), com a câmera acompanhando fixa e detidamente a sua trajetória, ele está de certa forma prolongando o que Bertolucci fez aqui, e em mais de um sentido. Se, como disse o crítico francês Jean-Claude Biette, A Tragédia… é “o primeiro filme italiano feito depois da morte de Pasolini”, ele o é por afrontar o cinismo e a desesperança que tomaram a Itália, e grande parte do cinema popular italiano, nos anos 1970 e 1980, mobilizando para isso o espólio cultural, artístico, político e midiático da sociedade italiana nessas décadas, principalmente naquele que permanece, junto com o giallo, o seu último grande gênero cinematográfico popular. Relacionando este filme ao que seu autor fez de melhor, a impressão que se tem é que Bertolucci redescobre algo que parecia ter se perdido completamente em O Último Tango e 1900, algo que trazia humor a um filme com uma atmosfera tão anômala como Partner, regozijo a um filme com uma atmosfera tão saturada de decadência como Antes da Revolução: o prazer do ritmo e da composição, que na realidade corresponde ao sentido verdadeiro, o sentido primeiro, da escrita poética. É evidente que as coisas aqui são mais complicadas, mais interessantes do que a narrativa de sequestro: basta ver a forma cômica como a própria construção do filme reproduz os meandros e os labirintos de uma sociedade que no período de uma década passou por episódios turbulentos como o assassinato de Aldo Moro e as brigadas vermelhas, a maneira como subjaz na ambientação e na trama do filme os hábitos de uma cultura completamente pervertida pela democracia cristã (que Pasolini já havia reconhecido, alegorizado e denunciado em Pocilga, 1969, e Salò, ou os 120 Dias de Sodoma, 1975). É nesse contexto que a personagem interpretada por Ugo Tognazzi é relacionada às outras personagens: elas também são ridículas (os ricos decadentes que vão ao leilão na mansão dos pais do moço sequestrado, os policiais atabalhoados que são absolutamente incapazes de fazer avançar qualquer investigação, como se desejassem que o filho do industrial permanecesse desaparecido), mas Tognazzi, ao contrário delas, adquire a consciência da sua condição ridícula. É essa a sua tragédia.

Agora que as circunstâncias forçam esse homem a adquirir uma consciência sobre si, a deixar de ser um entre vários, a deixar de se sentir um entre vários, nada pode ser como antes. Um homem é aquele capaz de tomar decisões difíceis, aquele que reduzido pelo peso das circunstâncias ainda é capaz de assumir uma posição ativa, ainda que pouco digna. A esposa (Anouk Aimée) decidiu casar-se com este homem porque ele trabalhava mais do que os outros e a fazia rir. A fábrica de queijo tem a mesma idade do filho; são estes os dois legados do casal, suas riquezas. Mas de que importa ser rico quando se é ridículo? A Tragédia de um Homem Ridículo é a tentativa de revelar o absurdo da vida pela forma realista, e para que isso ocorra o filme passa por um deslocamento análogo ao do seu autor, que mantém o ponto de vista do poeta enquanto filma um universo do domínio da prosa (a commedia all’italiana, a comédia popular). O industrial levanta o binóculo que ganhou de presente do seu filho; corte; vemos a fachada da fábrica filmada de baixo para cima, como se o filme adotasse na sua própria organização visual o ponto de vista de alguém que observa a realidade por um binóculo. Passados os anos do “cinema de poesia”, o discurso livre indireto ganha novo fôlego e volta a ser passível de invenção formal, quem diria, através do campo explorado nos anos 1960 e 1970 por realizadores como Mario Monicelli, Dino Risi, Antonio Pietrangeli e Ettore Scola. Uma clássica história de conflito geracional permite a um dos autores mais célebres do cinema moderno europeu apurar a sua paleta: soluções que talvez tenham nascido de contingências da realização em A Morte, Antes da Revolução e La via del petrolio são aqui decisões orquestradas, construções cuidadosamente compostas (os cortes abruptos, os saltos no tempo e no espaço que se dão sem que nenhuma elipse acuse o intervalo entre duas ações distintas) que autorizam, aqui, um virtuosismo necessário, nos antípodas daquele gratuito de O Último Tango, como se o filme aglomerasse suas riquezas em compostos espaço-temporais que nos surpreendem a todo instante com invenções plásticas e rítmicas.

À época do lançamento de A Tragédia… o crítico Louis Skorecki, que passa longe de ser um admirador de Bertolucci, escreveu um texto entusiasmadíssimo sobre o filme no nº 329 dos Cahiers du cinéma, intitulado Un homme comme les autres (“Um Homem Como os Outros”).Esse título, certamente por coincidência, remete a Godard, ex-companheiro de armas de Bertolucci tornado desafeto após o italiano se alinhar, nas palavras do cineasta franco-suíço, aos impérios Brezjnev-Mosfilm/Nixon-Paramount no início dos anos 1970. Godard certamente se referia a O Conformista, filme coproduzido pela Paramount Pictures, e não deixa de ser curioso que no mesmo ano em que seu colega italiano realizou o trabalho que o catapultou à fama ele tenha realizado um filme chamado Un film comme les autres (“Um Filme Como os Outros”). É possível que Skorecki tenha percebido que A Tragédia de um Homem Ridículo tratava menos da conclusão do arco de uma geração (a de 1968, embora o filme também seja o retrato desarmante de um homem dessa geração que se tornou, como diz o título, ridículo e trágico) que de todo o fundo comum a filmes como os de Dino Risi (Esse Crime Chamado Justiça, 1971, com Tognazzi), os de Luigi Comencini (O Grande Engarrafamento, 1979, também com Tognazzi), Ettore Scola (O Terraço, 1980, novamente com Tognazzi) e Mario Monicelli (Um Burguês Muito Pequeno, 1977, sem Tognazzi).

O que Bertolucci parece descobrir, favorecido pela irreverência e a liberdade de tom da commedia all’italiana, é uma forma de desvencilhar o sentimento da pura pose, de captá-lo pelo registro mais direto no momento em que ele ainda palpita, descobrindo-o tanto onde ele tem origem como nos redutos onde ele se refugia (as gramíneas de trigo balançadas pelo vento da noite logo após Tognazzi localizar um sapato do seu filho no local do sequestro). Para isso, a colaboração com Tognazzi é de uma importância vital: é difícil imaginar outro ator, mesmo do calibre de um Vittorio Gassman ou um Alberto Sordi, conjugando de maneira tão clara o que a personagem desse “industrialotto cafone” tem ao mesmo tempo de patético, tocante e terrível. É o que vemos na sequência final, quando Adelfo (Victor Cavallo), amigo do filho da personagem de Tognazzi, desata a dançar ao som da inacreditável Horror Movies: a emoção explode de um corpo jovem que contrasta com uma câmera cujo registro é o mais impassível possível enquanto Tognazzi, cansado, conforma-se definitivamente à sua condição de homem ridículo, que pertence a uma geração que já não dança mais, que fica sentada à espera da banda local enquanto os jovens dançam punk rock. O moço continua dançando tresloucadamente mesmo enquanto os outros jovens esvaziam o pavilhão e a banda se prepara para tocar para os aldeões, todos velhos. Segundos depois os olhos de Tognazzi encontram dois pés, um calçado e o outro descalço, que dançam do lado de fora; é o seu filho, acompanhado por sua mulher e pela namorada; mas segundos depois os dois pés aparecem calçados. O que aconteceu? O que mudou? Como no Rossellini de Onde Está a Liberdade? (1954), é a narrativa que cede lugar de uma vez por todas à fábula. Nada pode ser como antes: nem a commedia all’italiana, que entrará num declínio irreversível nos anos que se seguiram a este filme, nem o cinema de Bertolucci, que não fez algo nem mesmo remotamente tão bem-sucedido como este filme na sua carreira posterior. É hora do homem ridículo e daquele que o filmou desaparecerem para sempre.

[1] Jacques Serguine, “Educação do Espectador (ou a escola do Mac-Mahon)”, Cahiers du cinémanº 111, setembro de 1960, pp. 39-45.

Bruno Andrade

Bruno Andrade é crítico de cinema e editor da Foco - Revista de Cinema.