Cinema

FOCO – Eu Não Sou um Engano

por Valeska G. Silva

uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

A primeira história que problematiza acontecimentos fantásticos tratados como verídicos data do século II. História Verdadeira é reconhecida como a primeira ficção científica (embora não seja esse um consenso). Foi escrita por Luciano de Samósata, considerado um precursor da prosa moderna – aquela consciente da própria linguagem. Na introdução de seu romance Luciano requisita ao leitor sua credulidade, sua vontade em aceitar como verdadeira as premissas de um trabalho de ficção, e o faz através de uma confissão: assume-se um autor mentiroso, “como tantos outros”. Pois quase 2.000 anos depois o diretor de cinema indiano naturalizado americano M. Night Shyamalan utiliza dados estatísticos acerca do consumo de gibis nos Estados Unidos na abertura de seu filme de super-heróis, Corpo Fechado (Unbreakable), e é com essa dosagem de realidade reconhecível que encaminha-nos com eficiência à fabulação. 

Um traço realista, uma referência ao mundo real em mundos imaginários, sempre bastou como convite para nos desarmar diante de uma obra ficcional. 

O que o homem procurou no século do nascimento do cinema?

A função mais antiga da arte, ao menos de que se tem conhecimento, foi a de proporcionar alguma satisfação às necessidades espirituais. Da fase grega à baixa Idade Média o artista esteve no centro da cultura espiritual. O empirismo, o pragmatismo, passando pelos avanços tecnológicos, abrem portas à era cientificista, e é no século XX que um novo horizonte inaugurado por um mundo cada vez mais dependente do consumo, receptivo a uma arte muito abstrata, por vezes deslocada do real, incentiva a formação de um ambiente propício para que a ciência da psique surja e ocupe um papel que permanecera vago na vida do homem.

O cinema nasceu nesse contexto como diversão curiosa, e não tardou para que passasse a ser encarado como um veículo ideal para a popularização das grandes dramaturgias, as quais por muito tempo estiveram relegadas ao proveito de poucos pelo teatro e pela literatura. Foi mais tarde, porém, e apesar de todo o potencial de sagração da sala escura, que o cinema se viu em risco de se tornar apenas uma imagem entre tantas dentro de um eletrodoméstico como a TV ou o computador. O cinema tenta buscar uma saída pela redefinição das suas convenções de linguagem. Mesmo com o cinema passando por encruzilhadas, ora reivindicando sua autonomia, ora se entrelaçando com outras artes, alguns poucos autores passaram ilesos por esses períodos de atribulações e continuaram aperfeiçoando um cinema dramático e narrativo, dando prosseguimento a uma articulação extremamente sofisticada entre a história visível, que reúne temas e convenções que podem ir do mais banal ao mais original, e uma disposição mais subterrânea, menos visível dessas convenções através da construção fílmica. Se em um primeiro momento foram as obras de Richard Fleischer, Alfred Hitchcock, Orson Welles e Fritz Lang que ofuscaram os limites entre experimentação ambiciosa e apreço às convenções, entre autonomia autoral e identidade no seio da indústria, mais recentemente Michael Mann, James Gray e M. Night Shyamalan foram os cineastas que o fizeram.

A Esposa, o Segurança e o Senhor Vidro

David Dunn, interpretado por Bruce Willis, caminha até seu carro estacionado no enorme pátio da igreja. Acaba de assistir à missa em homenagem aos 131 passageiros do acidente de trem do qual foi o único sobrevivente. Ao se aproximar do automóvel encontra no para-brisa um cartão com o logotipo “edição limitada”. Dentro dele uma única pergunta: “Algum dia de sua vida você já esteve doente?” Com o cartão nas mãos Dunn se volta para o espaço vazio atrás de si, que agora parece isolá-lo. Corpo Fechado difere de tantos outros filmes baseados em ficção fantástica de super-heróis e que tratam das distopias do mundo político em suas narrativas. Shyamalan está interessado em algo diverso; seu tema é o homem. David Dunn, o pai de família melancólico e deslocado, será colocado em uma trajetória de descoberta e aprofundamento do seu lugar no mundo, de forma a acabar com a tristeza e o medo que sente “todas as manhãs”. O cineasta russo Andrei Tarkovski não fez um cinema como o de Shyamalan, embora possamos ver, e mesmo estabelecer, relações entre alguns de seus filmes, pelo menos tematicamente: Sinais e Sacrifício; Stalker e Corpo Fechado. O foco principal dos filmes dos dois cineastas pode passar por, mas nunca está no julgamento moral da sociedade, na reflexão simplificada sobre a degeneração a que chegamos. Existe o entendimento de que a mudança vital que precisa acontecer antes de qualquer outra, é a do próprio homem.

Imagem 1 e 3: Corpo Fechado, de M. Night Shyamalan, 2000; imagem 2: Stalker, de Andrei Tarkovski, 1979.

David Dunn é segurança em um estádio de futebol, sendo que no passado foi um próspero futebolista. Seu chefe menospreza sua inteligência abertamente; sua colega, uma velha secretária, responde às suas indagações sem ao menos olhá-lo. Dunn possui um uniforme verde que leva a inscrição do cargo que ocupa, “SECURITY”, e uma capa de chuva igualmente verde com a mesma descrição, os quais mantêm guardados no armário do estádio (pelo menos até certo tempo). Ele é casado com a fisioterapeuta Audrey Dunn (Robin Wright), que não esconde seu orgulho e idealismo frente à própria profissão (“eu não me casaria com um jogador de futebol, é o oposto do que eu faço: o jogador é recompensado por machucar o oponente”). Foram doze anos de união que parecem ter chegado ao fim. Um casal acostumado às conversas sobre os umbrais e limiares de portas, uma troca de informação num encontro furtivo na escada que separa seus quartos. A falta de proximidade e intimidade foi conquistada durante os anos e pode ser sintetizada na sequência em que o marido está no closet do seu quarto vasculhando uma pasta antiga de recordações.

Quanto mais a lente da câmera se aproxima das imagens do passado, mais a imersão e o tormento de David silenciam tudo ao redor, como se nada mais na casa existisse, saindo do transe apenas com o chamado de Audrey. A esposa bate à porta e não entra; ele não a convida. Ela anuncia uma decisão, faz uma pergunta, insiste por três vezes que a resposta que ouvir, independentemente de qual seja, não abalará em nada o que já tomara como decidido; mas não é essa indiferença proclamada que verificamos após ele responder que nunca a traiu, pois Audrey se entrega ao choro. David mantém-se imóvel, visivelmente perturbado.

O risco da família se degradar é um grande tema shyamaliano (O Sexto Sentido, Sinais, Corpo Fechado, Depois da Terra e A Visita), que por vezes tomou o corpo de uma pequena comunidade (A Vila e A Dama na Água), ou ainda de toda a humanidade (Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e, de certa forma, Fragmentado). Em Corpo Fechado, não diferente dos outros filmes deste autor, encontramos diversas chaves para o aprimoramento intuitivo da personagem. Enquanto Dunn permanece ignorante dos seus poderes, da sua fortuna sensitiva, nada aponta para qualquer mudança: sua vida parece fadada.

Mas é ao conhecer o vilão – Elijah Price, o Sr. Vidro, interpretado por Samuel L. Jackson – que David descobre mais sobre si mesmo e consequentemente se reconcilia com a sua família. Elijah se aproxima de Dunn, torna-se seu amigo e o estimula a procurar as respostas dos seus tormentos no passado, esquecidas e encobertas por uma mentira que depois de anos foi assimilada como verdade – o fundamento de toda degradação familiar, que quase levou à separação dos entes que se amam.

“Você não pode conter o que você é.”

Em um dos momentos mais reveladores do filme, Dunn retorna do trabalho e, ao se deparar com o filho jogando futebol, adverte-o que a mãe ficaria furiosa se descobrisse. O menino pergunta se o pai vai contar, e então fica claro o lado opressivo que Audrey exerce na família. Ao mesmo tempo, é através desse controle que ela conseguiu manter longe da família o que mais abomina: a violência. Mais tarde, na volta de um jantar de reconciliação, ao ouvir da babá que o emprego que David ambicionava em outra cidade (e que os levaria à separação de fato) se concretizara, Audrey desata a dizer aquilo que não sente, visivelmente contrariada, sem encarar David, que permanece sem reação diante da fala que nega toda a esperança que aquela noite havia inspirado no casal.

Quando o casal finalmente se reconcilia, David, sem acordar a esposa, a toma em seus braços. Nesta altura já conhecemos a geografia da residência: o quarto em que a esposa vinha dormindo, no primeiro andar, fica separado por uma grande escada do quarto no segundo andar, ocupado pelo marido e o filho. Audrey desperta, percebendo que está sendo carregada pelo marido ainda no meio do trajeto. David não sente o peso da esposa como incômodo: nenhuma trepidação, não é preciso nenhum gesto para assentar um corpo no outro, o movimento remete diretamente à levitação. Só vemos o braço de David e ela o olhando apaixonadamente.

Já perto do final do filme, o filho do casal desce as escadas, dirige-se à cozinha e se depara com algo inesperado: os pais sentados juntos à mesa, e muito próximos. Bruce Willis, que interpretara até aqui uma personagem apática, agora sorri. Inclinado, ele volta o rosto para a porta onde o filho está e o olha sem esmorecer o sorriso que oferecia a esposa. Somos levados a ver o sorriso de Bruce Willis registrado em tantos filmes e que esteve completamente ausente neste. Shyamalan conseguiu com este filme inscrever no cinema a falta e a presença de um sorriso como choque. 

O silêncio cúmplice entre pai e filho é um momento de extrema beleza. Um pai que vinha se mantendo afastado da família por se sentir pequeno, triste, com medo, sem um lugar no mundo, faz um retorno fugaz ao seio familiar, no tempo do espaço de uma noite, após finalmente enfrentar seu destino como um super-herói (“SECURITY”). O seio familiar está simbolizado pelo ambiente da cozinha, que durante todo o filme sofreu mudanças de muitas formas, começando pelos enquadramentos diversos, que exploram-no em 360º, marcando as diferentes etapas na evolução das trocas familiares. 

O uniforme de David Dunn agora é guardado em casa e não mais no armário do estádio. Nesse encontro do homem consigo mesmo, Shyamalan recapitula a função mais antiga da arte.

Corpo Fechado, lançado em 2000, abre uma trilogia que se completará só agora, em 2019, com Glass. A proeza da manutenção do casting, mesmo com essa distância no tempo, merece menção. O herói do primeiro filme, o segurança David Dunn, interpretado por Bruce Willis, aparece nos minutos finais do segundo filme, Fragmentado (Split), lançado em 2016, juntamente com a magnífica trilha composta por James Newton Howard para Corpo Fechado, causando uma verdadeira comoção junto ao espectador e comprovando que de fato foram necessários 20 anos para que se confirmasse um sucesso que cresceu com o tempo e sobreviveu a todas as mudanças na carreira do seu autor.

Valeska G. Silva

Valeska G. Silva é crítica de cinema e co-edita a Foco - Revista de Cinema