Cinema

FOCO – O mundo imperfeito de Clint Eastwood

por Valeska G. Silva

Uma parceria com a Foco – Revista de cinema

O tema de Eastwood

Após a parceria com Sergio Leone e os seus primeiros trabalhos como realizador (de Perversa Paixão [Play Misty for Me, 1971] a Raposa de Fogo [Firefox, 1982]), Clint Eastwood passa a demonstrar um interesse por personagens marcadamente trágicas a partir de Honkytonk Man, no ano de 1982. Desde então ele nunca mais deixou de se fascinar pela vida “das exceções”, como disse Tolstói a respeito do universo do colega Dostoiévski. Assim como o escritor, Eastwood escolheu almas capazes de suportar o sofrimento que o mundo impinge, e mesmo com a consciência da existência do mal no mundo (que pode ou não acompanhar a ideia da permissão de tal estado por Deus, como no caso de Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal, 1997), elas se mantêm em pé até o fim apenas pela coragem, diferentemente das personagens épicas que esperam salvar o mundo e redimi-lo em busca de algum tipo de redenção para si. Nos filmes de Eastwood as personagens já não têm esperança, estão entregues à agonia e possuem um olhar desencantado sobre seu tempo. Elas nos fascinam na medida em que aderem à vida através da fragilidade da vida. Dostoiévski inseriu a batalha entre o bem e o mal no interior das personagens, preconizando o existencialismo, a psicanálise, o niilismo existencial. Eastwood retrata essa batalha no mundo, na cultura do estoico americano médio, capaz do maior feito que um ser humano pode realizar: salvar a vida de outro ser humano.

Clint Eastwood é filho de um metalúrgico. Na juventude foi bombeiro, pianista e atendente em posto de gasolina. É possível supor que um homem que já passou por tantos mundos sabe que para amar o ser humano (a personagem) a admiração irrestrita é algo completamente dispensável: a vida é imperfeita, o ser humano é imperfeito. Dostoiévski no prefácio do seu último livro ficcional, um dos mais emblemáticos, Os Irmãos Karamazov, abre com uma questão retórica, prevendo que seu leitor a faria quando em contato com a história: “Em que é notável Alieksiéi Fiódorovitch, para que tenha sido escolhido como herói?” E ele comenta: “A meus olhos, é ele notável, mas duvido bastante de que consiga convencer o leitor. O fato é que ele age seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura. Uma coisa, no entanto, está fora de dúvida: é um homem estranho, até mesmo um original.” Em meio ao absurdo geral coletivo em que vivemos, essa busca do escritor e do cineasta por revelar e valorizar a potência humana escondida, adormecida, e singular, pode nos soar completamente estranha. Ainda mais quando, por exemplo, o paroxismo se impõe à personagem, e salvar vidas significa também eliminar vidas (Sniper Americano, 2015; Gran Torino, 2008; Impacto Fulminante, 1983); ou quando salvar o outro é uma questão de sobrevivência também (Sully e 15h17: Trem para Paris); ou ainda quando salvar o outro é apenas dar vazão ao próprio talento (Crime Verdadeiro, 1999). É nesse contexto que as histórias reais que serviram de inspiração para tantos filmes de Eastwood (Bird, 1988; Coração de Caçador, 1990; Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal) passaram a ser submetidas a exigências ainda mais concretas: a presença mesmo das pessoas reais que protagonizam tais histórias foram trazidas à frente das câmeras, como se para o cineasta não bastasse mais contar suas histórias, e por isso seria necessário ir além (como no caso de Sully em 2016 e mais recentemente 15h17: Trem para Paris).

Em Crime Verdadeiro, filme que fecha o século passado destacando mais uma personagem dostoievskiana com suas fragilidades em meio a um relato panorâmico de um tempo, Eastwood coloca-nos frente a doze horas da vida de um jornalista, Steve Everett. Ev, como é chamado pela colega Michelle, é uma dessas personagens recorrentes na cinematografia eastwoodiana (o jornalista em As Pontes de Madison, 1995; o ladrão de joias em Poder Absoluto, 1997), dotadas de um singular talento em um universo que não suporta e não se adapta a singularidades. Everett é casado e muito mais velho que Michelle, sua nova conquista. Os dois estão no balcão de um bar, com uma música calma e agradável de fundo, e discutem as intempéries que a moça, profissional recém-formada, sofreu por parte do editor do jornal onde trabalham, Alan, que “derrubou” a matéria mais importante feita por Michelle, sobre um assassino condenado à morte, Frank Beechum. Michelle percebeu algo errado no caso, mas o abordaria de forma enviesada. “É aquela [matéria] em que você dizia que a mídia glorificou a vítima para mascarar nossa cultura patriarcal?”, pergunta Steve de forma um tanto sarcástica, e Michelle responde: “[essa cultura] criou a violência que a destruiu”. Steve, de forma quase premonitória, já havia dito antes: “Michelle, você tem 23 anos, você não sabe o que é importante.” Não se passaram cinco minutos do filme e temos a impressão de já saber tudo o que precisamos sobre a história, mas é apenas no último quarto de Crime Verdadeiro que percebemos que, mesmo que tudo tenha sido colocado com clareza desde o início, é pela montagem procedente do trabalho investigativo de Everett, a verificação das pequenas evidências pelas intuições do jornalista, que o discurso e o ponto de vista do filme foram de fato construídos. É desta forma que Eastwood frequentemente provoca e estimula a inteligência do espectador nos seus filmes, fiel àquilo que Serge Daney classificou como “filmes que implicam o espectador”.[1]

Gostei da falta de vaidade da personagem, ela sabe que é um fracasso na maioria das atividades normais ligadas a relacionamentos humanos, e não tenta fingir que é melhor do que realmente é. Apesar disso ela não deixa o remorso ou qualquer outra falsidade distrair o seu talento, que é encontrar a verdade em uma história

disse Eastwood sobre a personagem de Everett, descrevendo de certa forma o tema do filme.

Mas o filme não é apenas o seu tema.

O cinema de Eastwood

“[N]ão acredito em justiça neste mundo ou no próximo. Não me importo com o que é certo ou errado. Nunca me importei”, é o que diz Everett a Frank Beechum no momento em que revela acreditar na sua inocência. Mais tarde, enquanto Everett prossegue no encalço de mais pistas, ele escuta no rádio do seu carro a divulgação em detalhes minuciosos de como será a execução de Beechum. Ao nos defrontarmos com essa cena de Crime Verdadeiro a pergunta inevitável é: por quê? Talvez faça parte da educação de um povo, pela intimidação. Talvez faça parte da deseducação de um povo, diria Clint.

Em A Sombra da Forca (Time Without Pity), filme de Joseph Losey de 1957, a personagem de Michael Redgrave é um escritor alcoólatra que está livre do vício há algum tempo e tem um filho condenado à morte. Esse filme, tal como Crime Verdadeiro, descreve as doze horas que antecedem uma execução. No filme de Losey é o pai, com inúmeros problemas de adaptação ao mundo, a única pessoa capaz de salvar o condenado inocente da morte prematura. São filmes extremamente semelhantes e extremamente diferentes: no filme de Eastwood não temos a luz dura do teatro, as paredes com pinturas insólitas estrategicamente posicionadas no espaço da cena, a presença maciça do cenário e as interpretações carregadas do filme de Losey. O cinema de Eastwood de forma alguma pode ser considerado impressionista, mas apesar disso o efeito dramático dos dois filmes pode ser comparado, uma vez que compartilham o mesmo movimento: ambos partem de um pesadelo e esforçam-se exaustivamente para ascender à realidade. Enquanto Eastwood trabalha em uma nota baixa e sobe apenas nos minutos finais ao seu ponto máximo, Losey faz o contrário, iniciando seu filme com uma nota muito alta que é conduzida até os minutos finais, quando chega a zero.

Eastwood trabalha com a cultura de um país, apontando como a teoria dos meios de comunicação interfere no caos social, enquanto Losey centra-se mais nas diferenças de classe, mas mesmo partindo de premissas distintas, tanto Eastwood quanto Losey são levados a perscrutar o drama de indivíduos: Steve Everett é também um alcoólatra tentando abandonar seu vício, com uma família se desmoronando e sua vida profissional por um fio. Mas se A Sombra da Forca é marcado por um ritmo enérgico repleto de estridências, Crime Verdadeiro possui o ritmo aprazível e desprendido típico dos filmes de Eastwood. Em inúmeras ocasiões o “homem sem nome” declarou que é preciso ter coragem para fazer um plano durar sem mexer a câmera, que bons atores e uma boa paisagem são suficientes para a cena falar por si, que o realizador que mexe a câmera demais, e sem razão, acaba revelando um desejo de chamar a atenção para si – e que, enfim, se perde muito tempo quando “bastaria um único belo plano”. Losey não se encaixa em tal crítica absolutamente, uma vez que a ação dramática de A Sombra da Forca impõe motivações profundas para o deslocamento constante da câmera, mas o que quero destacar é que Clint acredita e se dedica a um cinema do ator, a uma dramaturgia mais clássica.

No teatro kabuki há um gesto que indica “olhar para a lua”, quando o ator aponta o dedo para o céu. Certa vez, um ator, que era muito talentoso, interpretou tal gesto com graça e elegância. O público pensou: “Oh, ele fez um belo movimento!” Apreciaram a beleza de sua interpretação e a exibição de seu virtuosismo técnico.

Um outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele tinha ou não realizado um movimento elegante, simplesmente viu a lua. Eu prefiro este tipo de ator: o que mostra a lua ao público. O ator capaz de se tornar invisível

(Yoshi Oida, O Ator Invisível)

Eastwood obedece muito livremente às exigências de cada cena. Ele não prescinde do que chamamos anteriormente de “desprendimento”, tanto que acaba muitas vezes entregue ao risco de ser mal compreendido. Eastwood sabe como manipular seu aparelho de trabalho – lida com ele há 60 anos, o que acabou por levá-lo a uma situação bastante confortável. Não é o caso de sacrifício ou desmazelo, como muitos críticos atribuem, mas de uma junção de domínio e pragmatismo. A cena do passeio pelo zoológico em Crime Verdadeiro é um exemplo vibrante dessa integração: Everett tem muito pouco tempo para um passeio com sua filha (interpretada por Francesca Eastwood, filha do cineasta/ator) e, tentando não errar mais uma vez como pai, inventa um passeio arriscado, a “corrida no zôo”. Everett perde o controle da cadeira para bebês, que se desgoverna numa velocidade considerável, e ocasiona a queda dramática da menina no chão. A ação é acompanhada e descrita em uma sucessão de cortes rápidos após a curva que levará a menina à queda, e o suspense é incentivado durante a corrida em frente às jaulas dos animais. Nesta cena Eastwood “apontou para a lua”: as manobras da câmera não ganham nenhum destaque, o espectador não é levado a perceber as articulações da montagem, a composição da cena, o contorno do movimento de câmera; tudo simplesmente acontece. Eastwood mostra o que precisa ser mostrado, e neste caso mostra a falha do pai como protetor, em momento algum à custa do prazer que poderia proporcionar caso filmasse a queda de uma criança de forma espetacular.

Eastwood é um contador de histórias, e não é como “um artista” que deve ser visto (na acepção empregada por Baudelaire em Sobre a Modernidade, que declara o artista como um especialista, como que restrito a algumas normas). Antes um homem do mundo, aquele “que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes, e quer saber, compreender, apreciar tudo o que acontece na superfície de nosso esferóide”. E se para traduzir esse mundo ele precisa ser despojado, sob as aparências do desmazelo ou da inconsistência (juízos que muitas vezes correspondem mais aos humores e temperamentos dos críticos que às formas e estruturas dos filmes), ele o será.

 

[1] Cinéjournal – Volume I (1981-1982). Traduzido por Letícia Weber Jarek para o blog Vestido Sem Costura.

Valeska G. Silva

Valeska G. Silva é crítica de cinema e co-edita a Foco - Revista de Cinema