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Fomos dados em espetáculo ao mundo: o drama divino e humano em Kevin Vanhoozer – Parte 1

Detalhe do “Cristo morto” na “Deposição” de Caravaggio: o drama divino ao qual o cânone serve de roteiro

por Fabrício Tavares de Moraes

“Para lá do deserto da crítica, queremos ser interpelados de novo”, disse Paul Ricouer em sua obra A Simbólica do Mal. O deserto no qual ele e outros perambulavam era precisamente a crítica textual e a hermenêutica modernas que somente ofereciam miragens, mantendo-os num eterno êxodo que impedia tanto a entrada na terra da promessa do sentido do texto quanto o retorno à realidade referencial.

A morte do autor, a hermenêutica da suspeita e a epistemologia da dúvida aparentemente são elos numa cadeia que atravancou, quando não aprisionou, a compreensão e o famigerado “prazer da leitura”. O desconstrucionismo, por exemplo, sagrou no meio acadêmico a concepção do texto como uma espécie de mise en abyme, um eco de outros ecos numa regressão sem fim.

Se um texto é somente um diálogo, confronto ou reapropriação de outros textos, torna-se impossível uma eventual intervenção da realidade, ou a libertação dos críticos literários ou exegetas de seu cativeiro linguístico. E, com efeito, o próprio Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas, pensou as imagens (isto é, as metáforas pelas quais vivemos) como jaulas que nos mantêm cativos.

Mas, por fim, veio o resgate, ainda que provisório; e hermeneutas, dentre eles Ricoeur, já em meados do século passado, lançavam as bases do que hoje se chamam a análise do testemunho. Tanto por questões humanitárias (as vítimas do Holocausto, por exemplo) quanto por questões forenses, o testemunho tem sido reabilitado como uma categoria cognitiva ou mesmo evidência científica.

Em primeiro lugar, esforços como a criação do Museu Estadunidense Memorial do Holocausto, que reúne arquivos, fotos, gravações de relatos das vítimas sobreviventes do nazismo (em especial, as amplas contribuições de Elie Wiesel) constituem fonte fidedigna dos terríveis eventos ocorridos dentro e fora dos campos de concentração. Acrescente-se a esse quadro os estudos sobre a questão do trauma, surgidos a partir dos eventos trágicos de genocídios, limpeza étnica e deslocamento forçado de populações há poucas dezenas de anos. Cathy Caruth tem sido a mais importante referência nesse âmbito; e uma de suas principais percepções é precisamente a literalidade do trauma, a sua incapacidade de metaforização.

Em segundo lugar, a própria ideia de comunidade científica, ainda que de maneira sutil, pressupõe o testemunho e relato confiáveis dos experimentos. E, em vista de debates vários, não é surpresa a ascensão – ou, antes, a retomada – dos estudos das virtudes segundo os modelos aristotélico e cristão.

Obras como Virtues of the Mind: An Inquiry into the Nature of Virtue and the Ethical Foundations of Knowledge [Virtudes da Mente: Uma Investigação Sobre a Natureza da Virtude e dos Fundamentos Éticos do Conhecimento], de Linda Trinkhaus Zagzebski e também Intellectual Virtues: An Essay in Regulative Epistemology [Virtudes Intelectuais: Um Ensaio Sobre a Epistemologia Regulativa], de Robert C. Roberts, publicadas respectivamente pelas editoras Cambridge e Oxford, demonstram a preocupação geral, acadêmica e pública, com relação às virtudes que dirigem e fundamentam o próprio ato cognitivo.

De certo modo, essas correntes retomam, ainda que não alegadamente, o insight de Paul Ricoeur no tocante à etimologia e significado seminal do termo “martírio”. Tecendo sua defesa hermenêutica da confiabilidade dos relatos dos evangelhos, o filósofo francês nos relembra que o significado básico da palavra grega mártys não é a vítima ou o indivíduo morto por uma causa, mas sim a testemunha. A conclusão imediata é que uma testemunha carrega desde sempre, em cada fibra de seu ser, a dedicação ou confiança à pessoa ou causa pela qual morre.

É nesse quadro intelectual que surge Kevin Vanhoozer, teólogo e hermeneuta protestante, cuja tese, defendida em Cambridge, analisa precisamente a filosofia interpretativa de Paul Ricoeur. Partindo da percepção deste último de que a hermenêutica é não somente um processo cognitivo, mas também um modo de existência, Vanhoozer formulou ao longo do tempo um novo modelo de atividade exegética, nomeadamente, sua chamada abordagem canônico-linguística.

Antes, porém, listemos alguns de seus pressupostos. Ora, todo choque de civilizações é precedido ou ocasionado por um choque de hermenêuticas. E, de fato, o Iluminismo mostrou-se como um poderoso aríete golpeando os portais da Cidade de Deus. Ao contrário do que se pensa, contudo, muitos philosophes não negavam a veracidade do cânone bíblico, mas simplesmente reduziam-no a um tratado deísta que simplesmente antecipava, por meio de profecias ou divinações, aquilo que a razão eventualmente alcançaria. Segue-se, pois, que a razão, em seu sentido iluminista, suplantaria eventualmente as Escrituras cristãs, tornando-as desnecessárias.

Portanto, o século XX viu-se marcado pelos vários esforços em prol da reabilitação da hermenêutica. Porém, dois nomes centrais na história do pensamento, e fundamentais para a hermenêutica de Vanhoozer, deram os passos cruciais nesse projeto de repristinação. Karl Barth, vivendo e enfrentando o jugo do nazismo, compreendeu a Revelação como juízo contra as tentativas prometeicas do homem. E Hans Urs von Balthasar, amigo íntimo de Bento XVI, entendeu que a Bíblia, muito mais do que uma cartilha moral ou sistema doutrinal, é uma apresentação dos feitos divinos, um drama de Deus, ou teodrama.

Com isso em mente, Vanhoozer une ambas essas epifanias, e enquanto lecionava na Universidade de Edimburgo, lança sua obra Há sentido nesse texto?, uma resposta profunda ao livro Is This a Text in This Class? [Há um texto nesta aula?], de Stanley Fish, bem como às teorias de Derrida e Rorty.

Porém, sua contribuição maior, conforme já dito, é precisamente sua nova abordagem quanto à doutrina. Vanhoozer compreende que as Escrituras são mais do que um conjunto de proposições cognitivas, percepções sensoriais e líricas e estruturas culturais-linguísticas – as famosas concepções exegéticas de George Lindbeck, professor de Yale.

Cruzando a aridez desértica que compreende a doutrina como uma formulação estanque e restritiva, Vanhoozer propõe que o cânone bíblico apresenta não somente uma narrativa, mas um teodrama que abrange também o drama humano, seja por meio da Encarnação, seja porque encena as venturas e desventuras de homens comuns (Abraão, Davi, Jó) e de todo um povo marcado pelo seu martírio (testemunho), nomeadamente, Israel e a Igreja.

No entanto, diferentemente de Balthasar, Vanhoozer enfatiza o papel essencial que a humanidade representa nesse drama divino. Ademais, acrescenta ele, o teodrama abarca não apenas os atos, mas também as palavras divinas. De fato, Balthasar, recorrendo ao Fausto de Goethe, já havia cunhado o termo Tatwort (palavra-feito), porém Vanhoozer vai além e nos remete à teoria dos atos de fala (em especial, os estudos de John Searle) que cada vez mais percebem a relação inextrincável entre a palavra e ação. De modo bastante conciso, a fala é evidentemente uma ação, e todo ato comunica algo.

O drama, portanto, conjuga num enredo tanto os atos quanto a fala, fundindo num só evento os polos artificialmente opostos da palavra e ação, teoria e prática. Além disso, diz o teólogo, “a ação dramática é qualitativamente distinta de cadeias causais ou processos biológicos. Só o drama retrata a história do espírito, o exercício da liberdade”.

Se vivemos ainda sob a visão épica de Hegel em relação à história, que prevê a marcha inexorável do Geist à sua autorrevelação, é certo que os eventuais contratempos e retrocessos rumo ao progresso serão visto como pequenas anomalias indignas de atenção. Dessa forma, as pequenas narrativas – e neste ponto a crítica dos pós-modernistas contra a historiografia não é de todo injusta – que são corporificadas em existências individuais ou em pequenas comunidades são deliberadamente ignoradas.

Portanto, sendo a percepção dramática a única capaz de perceber os movimentos internos da alma humana, é curioso como, de fato, o drama bíblico de Israel e do Cristo (um povo então politicamente frágil e um pregador nazareno, isto é, figuras nada épicas) constituíram-se como os paradigmas interpretativos ou símbolos para grande parte da história ocidental, tanto para civilizações (desde o sionismo até o Destino Manifesto americano) como para indivíduos (a proteção à vítima, hoje aspecto inegável do pensamento político ocidental).

Um dos pontos mais esclarecedores de Vanhoozer, em especial para aqueles que jamais acompanharam a história da hermenêutica ou as controvérsias exegéticas dos últimos dois séculos, é precisamente o aspecto multiforme do cânone bíblico.

A despeito da atual conotação pejorativa que o adjetivo “canônico” adquiriu, é certo que, para qualquer leitor honesto, as Escrituras transmitem uma certa unidade temática (a ideia de aliança, o monoteísmo ético e o senhorio de Javé) por meio de uma variedade de gêneros: narrativa, parábolas, poesia, epitalâmios, literatura sapiencial, apocalíptica, dentre outros. Nesse sentido, o cânone é dramático em essência: “como testemunho do teodrama, é o documento fundador da aliança que está no centro da relação de Deus com a humanidade”. Dessa maneira, a abordagem canônica “lê cada passagem e cada livro individualmente como elementos que integram o drama divino da redenção. O cânon é nada menos que o roteiro autorizado para aqueles que desejam entender o drama divino e nele participar”.

Curiosamente, esse roteiro não apenas direciona, mas também situa a ação humana dentro da estrutura do drama, prevendo inclusive a improvisação. Um périplo que talvez se resuma à expressiva compreensão de Nicolás Gómez Dávila, segundo o qual todas as coisas são triviais, caso o universo não esteja comprometido com um drama metafísico.

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Fabrício Tavares de Moraes

Fabrício Tavares de Moraes é Professor Adjunto da UFMA. É também tradutor e Doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London).